Da reprodução vivemos

Stéphane Huchet


DA REPRODUÇÃO VIVEMOS

 

Stéphane Huchet

Mesa Redonda

 

A organização desse Simpósio particularmente ambicioso demonstra duas coisas: a existência global de uma “massa crítica” considerável de profissionais brasileiros em história e crítica da arte e um certo sentimento de que a arte brasileira ainda está por parte na borda do caminho da integração global, como o título da Mesa Redonda pode sugeri-lo.

A questão da relação entre cenário nacional e cenário internacional é complexa porque se, de um lado, o Brasil é capaz de se projetar no futuro, acreditando que este define uma parte de sua essência, ele parece ser dificilmente capaz de estruturar de maneira duradoura uma “retro-perspectiva” histórica sobre, por exemplo, sua arte. Não é por sua relação com os artistas anteriores que a produção brasileira se situa predominantemente, salvo a referência repetida a Oiticica, por exemplo. Mas essa referência esconde a floresta. Pelo contrário, a arte brasileira me parece não dever muito à perspectiva diacrônica, para melhor estender seus braços e compor uma parte do grande corpo da arte contemporânea global.

Objetivamente, por suas gramáticas, seus procedimentos, etc., a arte brasileira sustenta facilmente qualquer comparação. O problema é que a grande horizontalidade que ela configura com toda a arte que vemos nas mega-exposições internacionais – um brasileiro pode substituir, as vezes, facilmente, um artista de outro país, o processo de autoria sendo já desagregado potencialmente pela multiplicidade das práticas que um único artista pode assumir – , cria um conjunto de enxertos interartísticos projetados pelo mercado curatorial. Nesse sentido, os Panoramas e as Representações nas Bienais são apenas recortes locais no meio de outros recortes praticados em outros lugares. Toda arte, hoje, e a arte contemporânea brasileira não escapa a essa lei, é formada pela justaposição e pela soma das idiossincrasias. Gosto sempre de dizer que, como na mônada leibniziana, cada artista aspecta e reflete a parte do mundo que lhe convém aspectar e refletir, segundo e seguindo as capacidades que sua individualidade artística e estética tem de iluminar fragmentariamente essa parcela. O leque de “expressões” artísticas hoje – expressões que, conforme a conceituação deleuziana da expressão, movem uma força de envolvimento… –, é abissalmente amplo. Como sintetizar aquilo tudo numa imagem “nacional”, sabendo que a arte pode dificilmente cimentar um projeto nacional, a não ser que seja instrumentalizada nos seus aspectos mais arcaicos e clichês. Se a arte brasileira moderna acompanhou no século XX um certo projeto modernista falsamente liberador, ela não pode mais fazê-lo, senão através de operações simbólicas quase sempre agindo na escala da proposta individual. A dinâmica de grupo, por exemplo, raramente deixa de ser reposta pela força dos desafios sociais que afronta na situação de uma pequena sociedade experimental reduzida à condição de frágil singularidade tática.

  

Como uma nação pode aparecer através de sua arte? O que nos garante que as linhas de forças que podemos ressaltar numa produção dita “nacional” não se parecem com as de outros países? Me ocorreu há poucos meses, quando escrevi um artigo sintético sobre a arte brasileira contemporânea para uma revista francesa (Art Press nº309, fev.2005) que nela, se pode destacar vários eixos de trabalho e pesquisa:

         uma certa relação crítica com a história da arte, que gera uma atitude de ironia cultural perante o património, à memória, ao arquivamento e à representação.

         uma permanência da prática pictórica que é ela mesma uma forma de posição praxeológica perante a herança da tradição pictórica moderna internacional.

         um privilégio dado à estrutura cromática, a cor sendo um agente de espacialização que suscita uma ampliação disciplinar. O vermelho é a cor das artes plásticas brasileiras.

         uma investigação sobre a espacialidade que integra a escultura mas que amplia-se em uma prática da instalação.

         uma estética da presença que articulada com outros conceitos.

         uma práxis de ordem conceitual onde os dispositivos são tantas semiologias ativas e diagramas polisémicos do sentido.

         uma crítica da circulação do valor de arte vinculada ao primeiro item ressaltado acima, o da atitude de ironia cultural perante a história da arte.

Esses eixos  entrecruzam-se, recortam-se. O item 1 é o mais favorável a um tipo de produção baseada sobre referências “nacionais”, por exemplo (A.Varejão e os azulejos, Romagnolo  e a estatuária etc.. Muniz brinca com isso e Caldas fez maravilhas nesse âmbito). 

Mas o quê diz que tais vertentes seriam unilateralmente brasileiras, ou que também não iriam caracterizar perfeitamente outras produções? Por exemplo, o item “práxis de ordem conceitual onde os dispositivos são tantas semiologias ativas e diagramas do sentido” é válido para quase toda a arte contemporânea internacional.

A partir de sua situação específica a arte brasileira discute questões compartilhadas em outros lugares. Eu penso que poderia se falar de regionalismo “nacional” na produção artística internacional.

.Não penso que exista mais um perigo de “nacionalismo” dentro da arte contemporânea porque ela gera produções e expressões muito abertas. (O que, no entanto, pode cohabitar muito bem com um certo internacionalismo estético, é o espirito de “paróquia” de certas instituições, sim, mas isso não é nacionalismo). Tampouco “nacionalista” me parece ser a circulação da arte através das exposições que dão a ver sobretudo obras e trabalhos daqui. Na verdade, a produção brasileira alimenta “naturalmente” um território capaz  de ser auto-suficiente. No entanto, não podemos nos iludir porque somos satisfeitos de ver tanta arte brasileira produzida e exposta no Brasil. 

Existe uma dificuldade grande de a arte brasileira entrar no circuito oficial da historiografia global da arte. A vulgata historiográfica ainda é determinada por um eixo Oeste-Leste, o que costumo chamar de História da arte do G8. Prova disto é própria divisão que alguns operam ainda nos cursos de história da arte contemporânea: dividem facilmente a brasileira da não-brasileira. Este último módulo poderia e deveria ser reconfigurado por uma integração maciça da história da arte brasileira. Não penso que a famosa “saída do quadro” possa ser contada apenas através de Frank Stella e Donald Judd, sem levar em conta os aportes dos neo-concretos. Plasticamente,  as experiências espaciais de Oiticica são incontornáveis numa história da arte global. Aqui, claro, esbarramos na política cultural, na história do tempo e da vontade politica que o apoio e a difusão da arte “nacional” precisam para existir fora de suas fronteiras.

Devemos favorecer uma história da arte que possa reequilibrar os dados, tendo sempre como pano de fundo o fato de que, se nos é possível olharmos o resto da arte e de sua história a partir do solo do grande continente de produção artítistica no meio do qual vivemos, é necessário, porém, sabermos que no exterior esse continente afastado constitui apenas um horizonte remoto que reduz o que nos é proximo ao objeto de uma percepção e de um conhecimento anamorfóticos. Além disso, esbarramos no fato de que esse afatamento da arte brasileira também é gerado pela ausência de uma tradição historiográfica capaz de lançar e consolidar uma perspectiva histórica sobre a arte daqui. Não creio que seja possível existir uma arte brasileira cuja visibilidade e presença internacional possa prescindir de uma historiografia rica e conquistadora.

 

A partir dos anos 1960 e 1970, arte brasileira criou de maneira intrínseca formas históricas de integração a várias experimentações e produções internacionais. Na arte contemporânea, que é um sistema complexo, multifacetado, multi-mídia e transnacional dos símbolos – ou da pretensão dos objetos e dos dispositivos de se tornarem ou de alcançarem o estatuto de símbolos –, rente à circulação das propostas, deveriamos sempre procurar as tangências, os empréstimos inconfessados ou declarados, os enxertos secretos ou não, a circulacão subterrânea ou não dos “modelos”. Falava-se ontem, isto é, ainda na época das disciplinas artísticas tradicionais, de “epígonos”. Me pergunto se não assistimos mais do que nunca a uma época na qual é impossível decidir o que é singular e “original” ou o que é “epigonal”.

Tomemos dois exemplos, que deixam necessariamente o historiador e o crítico tocados:  como questionar e analisar uma seqüência artística que nos  mostra por exemplo como, em 1986, Robert Nikas apresenta sua exposição chamada Red , na Galeria Massimo Audiello em New York, em termos que são totalmente aplicáveis ao Desvio para o vermelho  de Cildo, enunciado bem anteriormente, mas montado mais recentemente (1967-84)?

Encontramos aqui o espaço de uma curiosa coïncidência. A descrição feita por Nikas encontra de maneira estranha aquilo que Meireles fez em Desvio, mesmo se vemos pelas fotos que a  instalação de Meireles é imensamente mais generosa, audaciosa, forte e rica. Eis o exemplo de uma  intenção – aquela formulada por Nickas para Red: – "minha idéia era de apresentar objetos da vida cotidiana de tal maneira que os monocromáticos quase parecessem quadros ordinários pendurados na parede […] Dentro do mobiliário, [o monocromático] tendo a função de quadros dentro de uma sala, em vez de monocromáticos dentro de uma galeria […] É o sonho (ou o pesadelo) do decorador de interior que se realiza: uma sala onde tudo combina perfeitamente com tudo o resto (menos quizá com  os visitantes, as únicas 'coisas' que não são tomadas em consideração "[1] – que converge muito bem com aquilo que Meireles tem  realizado bem antes em um outro lugar. Eis, portanto, um lugar – a exposição Red organizada por Robert Nickas em 1986 que não chega à mesma altura de suas intenções que a outra exposição – Desvio para o vermelho – que, ela, por sua vez, não tinha as mesmas intenções mas que, por uma estranha coincidência, as satisfaz e as comtempla plenamente. O lugar ou a manifestação de Red  rebaixa a pretensão crítica que a predeterminava  enquanto que a instalação que não segue aquela pretensão – Desvio – parece recriar-lhe a pertinência em um contexto cultural completamente outro. De um lado, uma exposição analítica – Red –,  de outro lado, uma instalação mais orgânica. Mas onde Red parecia precisar do parergon discursivo para melhor ser entendida, a instalação de Meireles transborda todo tipo  de intenção por uma soberana intentionalidade plástica.

Outro exemplo, mais recente: .Joël Hubaut, em Burô orange pour l’Agence C.L.O.M.-Trok, exposto em Micropolitiques (2000), propõe uma instalação cuja  informação visual é de tipo “meirelesco” – uma sala com um conjunto saturade de objetos vermelhos – mas resulta de um projeto de recolhimento participativo dos objetos em termos que têm tudo a ver com o projeto de Elida Tessler em Doador, um ano antes: como escreve Paul Ardenne:” consecutivo a um apelo feito na mídia, o artista recolhe e expõe uma multidão de objetos de uma mesma cor . O resultado, conforme os princípios do ‘Mix’ e da criação ‘epidémica’ guiando Hubaut, escapa a uma definição estrita: instalação? Escultura monocromática? Pintura social? Obra coletiva?”[2] etc. Acrescento: enxertos?, plâgios?, empréstimos? Ou a arte, como o “conceito” em Deleuze, é uma geologia viva? Na verdade, muito aponta para a existência de uma circulação das imagens, a dinâmica gerada por um grande cenário internacional e internetional da Reprodução. As nações não filtram a Reprodução. Da Reprodução vivemos…

É essa grande maquinaria da Reprodução como matriz de circulação de um Capital icônico, que suscita a impressão problemática que existe um hyper-epigonalismo estrutural e fascinante porque inevitável. Ele deve tudo à estruturação rizomática de uma arte constituída de propostas, de enunciações e enunciados eles mesmos prováveis, se respondendo, fazendo eco entre si, se isolando, copulando, engendrando, gerando, gerindo, digerindo, assimilando, metabolizando ou expulsando etc., através de uma grande “Plasticidade” hypertextu(r)al. A arte contemporânea não é aquele “n’importe quoi” denunciado pelos “reacionários” mas o cenário sem fim, a coreografia dos fragmentos, a grande erótica do poder-enunciar e do poder-simbolizar, a grande repetição do querer-dizer, repetição, no sentido de ensaio, de ensaiar e de reprodução infinita da variação sem fim do mesmo. A grande maioria das exposições, quando não apontam na força da discrição para introduzir à singularidade das propostas artísticas, parece sempre mais com os Salões cheios e saturados de 1880-1910: a exposição de uma matéria vulcânica e irrepressível, atestando que, como nunca, a arte não acaba mas relança seu corpo indomável…

 



[1] Robert Nikas citado In: POINSOT, Jean-Marc. Quand l'oeuvre a lieu. Genève: MAMCO, 1999, p.54

[2]  ARDENNE, Paul. Un Art contextuel. Paris: Flammarion, Col. Champs, 2004, p.128-29.


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