Interface? Intervalo!

David Sperling

<< Voltar 

Para um observador em sobrevôo hipotético pelas obras de arquitetura de museus contemporâneos, a resposta à pergunta formulada na apresentação do Simpósio, ”considerando a equação atual que rege o sistema das artes: produção, circuito (instituições, artistas, museus, galerias, mercado) e recepção, como vai a arte contemporânea?”, seria direta: Vai muito bem, obrigado! O atual fenômeno de profusão de museus é, com certeza, inédito. Apenas para citar a atividade de um dos arquitetos mais comentados do momento, Rem Koolhaas projetou, de 1995 a 2005, 245.000m2 em museus (o equivalente a 43 campos de futebol)[1].

 

Mesmo no Brasil, onde se diz da ainda pequena abrangência do sistema da arte, de sua fragilidade e do descompasso entre suas necessidades e os apoios vindos tanto do poder público quanto da iniciativa privada, o movimento, mesmo que menor, caminha na mesma direção. Com toda a dificuldade propalada por muitas vozes, à sua maneira os espaços expositivos crescem no país: centros culturais privados, galerias e museus públicos (estes em bem menor número). E, neste processo, não é incomum o olhar para o estrangeiro na tentativa de resolução das questões que se nos colocam, dentre elas a gestão de museus públicos e privados e os paradigmas que se colocam para um museu que se deseja atuante no contexto contemporâneo. No que concerne especificamente ao “estado da arquitetura” de museus muito se veicula, mas ainda pouco se reflete sobre as últimas soluções.

 

A condição do museu de ser no espaço coloca uma premissa para sua proposição como interface. Toda e qualquer interface é antes uma interface espacial, o grau zero onde se processam relações entre corpos, espaços, dispositivos e sistemas. A premissa transforma a reflexão sobre a “instituição como interface” e aquela sobre sua concepção espacial numa mesma questão: que experiências espaciais o museu contemporâneo propicia?

 

Ao se referenciar aqui a arquitetura contemporânea de museus no singular não se trata de rasa generalização, mas da constatação de um estado de coisas com larga predominância. Algo que pode ser experimentado por aquele observador hipotético que desce do sobrevôo e passa a circular pelos museus de arte reverenciados na atualidade exatamente por seu dinamismo artístico e financeiro. Se por um lado o espaço expositivo do museu como o conhecemos hoje guarda ainda bases fundamentalmente modernas, por outro a requalificação de edifícios antigos, a ampliação de edifícios existentes e as construções novas atestam na arquitetura alterações decorrentes dos últimos desenvolvimentos do sistema da arte e do reposicionamento estratégico do museu na esfera cultural e econômica contemporânea.

 

Quanto às transformações pelas quais passam as práticas artísticas desde os anos 1960, os museus têm respondido a elas apenas com as “adequações” necessárias para a sua constante inclusão, impermeáveis à contaminação conceitual que requereria a reproposição de seu projeto. E as radicais transformações que vêm se processando na esfera da cultura em tempos de globalização do capital, se por um lado mantém certas características de ordem geométrico-espacial do museu, por outro, convertem-no em um componente de destaque dentro do sistema imagético-espacial de veiculação e consumo cultural.

 

Na introdução de “No interior do cubo branco”, obra de Brian O’Doherty que reúne célebres ensaios que tomam o espaço expositivo moderno como objeto de interrogação, Thomas McVilley aponta e contextualiza os objetivos do autor: é co-participante da vocação do século XX em “investigar as coisas dentro de seu contexto, a fim de percebê-lo como formador da coisa e, enfim, perceber o contexto como uma coisa em si”. Passadas quase três décadas de sua publicação, as análises sobre o cubo branco permanecem em muito válidas. A galeria ou, em última instância, o museu mantém-se como espaço privilegiado de validação de qualquer objeto como arte e de intermediação dela com o público e o sistema da arte.

 

Por outro lado, a análise da galeria como coisa-contexto de ordem fundamentalmente perceptiva, com implicação nas ações e nos objetos que nela se inserem, carece de seu reposicionamento como “coisa” dentro de um “contexto”, o contexto cultural e econômico contemporâneo. O idealismo estético que recorrentemente é apontado por O’Doherty como a ideologia do espaço institucional de intermediação da arte, no novo contexto, passa a ser tão somente uma das manifestações da cooptação do sistema da arte pela lógica dos últimos desenvolvimentos do capital. Tal visada, em última análise, permite aproximar os recentes desenvolvimentos na natureza das arquiteturas de museus com a de espaços característicos da contemporaneidade em que a visibilidade cede lugar à superexposição e a experiência histórica é cotidianamente substituída pela experiência prescrita.

 

Dentro da cultura performática contemporânea, a arquitetura dos museus tem correspondido à altura; transformando-os em acontecimentos urbanos e midiáticos, criam a ressonância necessária aos investimentos implicados: desde as polêmicas veiculadas pela grande imprensa (como as inovações formais dos edifícios, as tecnologias envolvidas e as inserções urbanas), as análises mais detidas da imprensa especializada e, por fim, sua inserção no circuito do turismo cultural global. Por aí, o próprio espaço urbano torna-se espaço de exposição, dependente da “montagem” constante de obras arquitetônicas assinadas, as quais passam a conferir às cidades uma posição ao sol no competitivo circuito das movimentações globais.

 

A arquitetura de performance apresenta-se como a resolução apaziguadora das tensões existentes entre as premissas da arquitetura moderna e as proposições formuladas pela arquitetura pós-moderna. Na era atual a arquitetura deve ser eficaz. Espaço interno e envelope externo devem ser igualmente eficazes na produção das narrativas para a reprodução do capital. A arquitetura eficaz reprocessa a dimensão relacional da planta livre moderna e a dimensão comunicacional da forma da arquitetura pós-moderna e as associa.

 

A planta livre e a forma comunicante são igualmente performáticas. A primeira permite a rápida instalação de interfaces de mediação física entre o público e o espaço (arquitetura de interiores, mobiliário, programação visual e equipamentos) necessárias à função eficaz do espaço; o espaço interno é o solo infraestrutural que permite a montagem sazonal de intra-arquiteturas ou narrativas de ordem organizacional e cenográfica. A segunda é interface de mediação imagética (e de imaginário) entre o público e o espaço; como veículo e registro das últimas conquistas técnicas, tem a função eficaz de índice de atualização e dinamismo (da arquitetura, da cidade... da vida, de modo geral). Seu assunto tem sido a tecnologia - os materiais, os processos de projeto e de construção - e as soluções de vanguarda possibilitadas unicamente pelo próprio desenvolvimento tecnológico. A tecnologia torna-se duplamente meio, de construção e de comunicação, de si mesma.

 

A partir da segunda metade do século XX ganharam corpo, tanto no campo artístico quanto no arquitetônico, formulações e proposições críticas em direção à ações centradas na experiência desprogramada do espaço. A ação genuína do público refletiria na construção do espaço e na própria construção do sujeito. Para o arquiteto Bernard Tschumi, por exemplo, esta seria a formulação básica da sua noção de evento, um espaço de ação e percepção desprogramadas construído pelo usuário. O conceito, gestado como contraposição crítica tanto ao funcionalismo moderno quanto ao formalismo pós-moderno, efetiva-se na arquitetura eficaz exatamente como o seu contrário. O evento fenomenológico como noção de ação reflexiva, livre e irrepetível do sujeito no espaço cedeu lugar à noção de evento performático, efêmero, em que a montagem do espaço invariavelmente segue uma programação cultural/financeira na qual o antigo sujeito é transformado em massa destinada a acompanhar par-e-passo os últimos acontecimentos.

 

A arquitetura performática trabalha então em duas instâncias: a forma convertida em espetáculo e o espaço transformado em programação; um contínuo a ser visto e a ser feito. Quanto aos museus, a experiência de estar no interior do cubo branco de que fala O’Doherty é englobada por outra narrativa de maior alcance: a dos deslocamentos no exterior e no interior do cubo branco decorado. A condição do museu como “cubo branco”, normatizador quanto aos valores estéticos e aos comportamentos do público no “ambiente da arte”, se expande para a condição de co-participante na prescrição das experiências cotidianas. Somam-se à caixa expositiva uma série de aparatos técnicos e cenográficos que conformam o museu como um lugar prescritivo ou um não-lugar. Para Marc Augé, os não-lugares são lugares constituídos com fins específicos, normalmente vinculados ao trânsito de massa (de pessoas e ou de mercadorias), em que as relações que os indivíduos mantém com aqueles são previstas e programadas.

 

Como os grandes centros de compras e circulação, o museu constrói suas narrativas espaciais ao redor de objetos e serviços. É arquitetura multifuncional, de grandes dimensões, que prescreve as experiências do público sem distinção do modo como o fazem, no mundo contemporâneo, os edifícios contenedores não destinados à arte. Atração, recepção, informação, segurança-controle-quantificação, orientação espacial, disponibilização de cultura, consumo de objetos, serviços e lazer é a narrativa comum a todos. Fachada, logomarca, átrio de representação institucional, bilheterias, catracas e leitura ótica, detectores de metal, câmeras, folders, guias áudio-visuais, áreas de fricção entre circulação e exposição, áreas de descanso (restrooms ou lounges), climatização, iluminação controlada, circulações mecanizadas, livrarias, lojas com objetos diversos, acesso à internet, cafés, brindes...  A arquitetura, transformada em aparato técnico-comunicativo, é agente que disponibiliza as narrativas cenográficas em que experiência e exposição são ações que dizem respeito apenas ao consumo de tempo, de imagens e de objetos. Em última análise, a experiência espacial dos grandes museus contemporâneos vai se tornando similar a das lojas de departamentos.

 

Em “...And then there was a Shopping”, texto de Sze Leong presente no livro Havard Design School Guide to Shopping, co-editado em parceria com Rem Koolhaas, o autor apresenta dados concretos da inserção dos museus no fluxo hegemônico contemporâneo do consumo, o que denota uma correlata alteração nos programas arquitetônicos dos museus de arte nos Estados Unidos. Enquanto o faturamento da loja do Museu de Arte Moderna de Nova York é da ordem de US$ 18.830,00 por m2 de área de venda, o do maior centro de compras americano, o Mall of América, gira em torno de US$ 6.456,00 por m2 de área de venda. Acrescenta ainda que desde 1992 o espaço de galerias comerciais nos Estados Unidos cresceu 3%, enquanto as lojas de museus ampliaram seu número em 29%.

 

É certo que os museus brasileiros não exibem tamanho dinamismo financeiro, como também são habitados por especificidades que dizem respeito ao sistema de arte brasileiro; a falta de uma política consistente e duradoura de espaços públicos dedicados à experiência da arte é uma delas. Porém, a nacionalização de modelos globalizados já se fizeram e fazem sentir por aqui – desde o MASP embalado para as megaexposições dos anos 90 até a proliferação recente de espaços culturais geridos pela iniciativa privada que, com liberdade de pauta, convertem investimento público em marketing corporativo. Cabem respostas a uma pergunta similar àquela do início:”considerando a equação atual que rege a arquitetura de museus: atração e recepção, quantificação e controle, circulação e exposição, produção e mediação, lazer e consumo, como vai o museu contemporâneo?”  Muito bem, obrigado! Muito mal, obrigado! As respostas devem necessariamente levar à reflexão.

 

O entrecruzamento entre espaço e cultura que o museu historicamente propicia por meio do rebatimento de narrativas discursivas e espaciais, curatoriais e artísticas, está pois inserido em um contexto que o engloba, o das narrativas prescritivas das arquiteturas contenedoras contemporâneas. Outra pergunta que fizemos merece resposta: que experiências espaciais o museu contemporâneo propicia? As de uma grande instalação, um site inespecífico, que replica os códigos dos não-lugares da vida contemporânea. É a grande obra que, se fruída e experimentada com envolvimento, põe em evidência as ações cotidianas programadas que cada vez mais realizamos sem dar-nos conta.

 

Em “Spaces of Hope”, David Harvey considera a construção coletiva das cidades e a construção coletiva do próprio homem como uma única e mesma ação. Diz ele, “do mesmo modo como produzimos coletivamente as nossas cidades, também produzidos coletivamente a nós mesmos. Projetos que prefigurem a cidade que queremos são, portanto, projetos sobre (nossas) possibilidades humanas, sobre quem queremos vir a ser – ou, talvez de modo mais pertinente, em quem não queremos nos transformar”. Tomando a liberdade de fazer a transposição de sua formulação para o campo da arte e, mais especificamente, para a condição dos museus contemporâneos de arte, caberiam interrogações. Se é possível delinear a mesma reciprocidade entre a produção do museu e dos sujeitos, o que prefiguram os espaços de museus como possibilidades humanas e artísticas? O que queremos vir a ser ou em quem não queremos nos transformar são questões que movem os projetos de museus, em seu sentido mais amplo?  Quais os horizontes de uma arquitetura de museu que tencione os conceitos correntes de museu, se ela nasce de sua gestão? É possível vislumbrar o museu como uma interface efetiva da experiência da autonomia e da liberdade?

 

O museu como interface? Nessa direção penso na possibilidade do museu como intervalo, como fenda...



[1] Dados contastantes na exposição do arquiteto na 51º Bienal de Veneza, 2005.


<< Voltar