Conferência 6

Relato da conferência “O direito à terra”, proferida por Marina Silva, em 11 de novembro de 2006

Por Paula Alzugaray

 

Marina Silva, Ministra de Estado do Meio Ambiente, havia sido convidada para dar uma conferência na abertura do Seminário Acre. Ao convidá-la a ocupar a mesma mesa do geógrafo norte-americano David Harvey, o co-curador José Roca tinha a intenção de introduzir o tema do Seminário lançando questões como justiça ambiental e o direito à terra em comunidades tradicionais. Mas compromissos oficiais adiaram a participação da Ministra e o projeto inicial de José Roca não se realizou. Em troca, Marina Silva brindou o auditório da Fundação Bienal com uma palestra de forte tom agregador, que encerrou com otimismo a série de Seminários Internacionais, iniciada em janeiro e concebida para dar ao público uma propagação gradual dos conceitos que nortearam a curadoria da 27ª Bienal.


Mostrando disposição em articular conceitos e abertura para dialogar com os outros conferencistas, Marina Silva produziu um relato vivencial sobre o direito dos povos da floresta à terra amazônica. Mas, aos poucos, deixou-se levar com espontaneidade, por temas de natureza interdisciplinar como alteridade e diversidade.


A conferência começou por apontar a especificidade da Amazônia em relação ao resto do País e a importância de seus movimentos sociais de luta pela terra não terem se pautado pelo modelo de distribuição eqüitativa de estoques públicos de terras, adotado por movimentos do Sul e do Sudeste. Como acreana, nascida no Seringal Bagaço, território de exploração de seringueiros a 70 quilômetros de Rio Branco, Marina Silva entende a terra amazônica em toda a diversidade social e cultural de suas populações indígenas, ribeirinhas e de seringueiros. E compreende a terra como um espaço de construção de identidades.


Marina, que começou sua ação política nas comunidades eclesiais de base, nos movimentos de bairro e no movimento dos seringueiros – antes de fundar a CUT do Acre e de sagrar-se como a única Vereadora de esquerda na Câmara Municipal de Rio Branco, em 1988 -, localizou duas etapas na luta dos povos amazônicos pela terra. A primeira batalha foi a constituição de uma identidade própria, a partir do reconhecimento da biodiversidade, dos bens materiais e simbólicos da floresta. Segundo ela, isso foi conseguido à custa de esforços físicos e pessoais de homens, mulheres, idosos e crianças, que, para defender os meios naturais que garantem suas vidas - igarapés, matas, castanheiras, seringueiras, peixes, animais – utilizaram o próprio corpo nos “empates”.


“Empates” são correntes humanas de isolamento de áreas ameaçadas, formadas a fim de impedir desmatamentos. Marina conta que eles foram criados por Chico Mendes e os seringueiros do Acre, em resistência aos acontecimentos da década de 70, quando os seringais foram vendidos e convertidos em pastagem. Entre 1972 e 1974 um “plano de desenvolvimento” arquitetado pelo governo militar suspendeu empréstimos para seringalistas financiarem sua produção de borracha e muitas áreas de seringais foram vendidas a preço baixo para criadores de gado do Sudeste do País.


A resistência às motoserras e à destituição dos valores materiais e simbólicos das terras do Acre – que, segundo a Ministra, além de Chico Mendes, sacrificou muitas vidas – foi muito bem descrita na conferência. Mas também está representada nos trabalhos expostos no Pavilhão da Bienal. A artista canadense Susan Turcot que esteve no Acre, dentro do programas de residências da 27ª Bienal, documentou em desenhos a grafite os desmatamentos e a mobilização das comunidades nos “empates”. Já entre as pinturas do artista acreano Helio Melo, há imagens de vacas que brotam de seringueiras e do estranhamento que moradores locais sentiram diante do gado e os costumes vindos do Sul.


Se a proposta do seminário e da curadoria era considerar o Acre não apenas em sua realidade histórica e territorial, mas em sua condição metafórica de outras situações, poderíamos avançar ainda mais na exposição montada no Pavilhão e chegar a associações insuspeitas entre o Acre e as motivações artísticas. Chegaríamos, por exemplo, à artista cubana Ana Mendieta, que viveu cedo uma experiência de desgarramento de seu lugar de origem e procurou em seu trabalho artístico re-estabelecer elos de conexão de seu corpo com os elementos da natureza – terra, água, fogo e ar. Ana Mendieta demarcava o próprio corpo na terra. No Acre, as comunidades dos “empates” conseguiram garantir para si as reservas extrativistas, garantindo o usufruto da terra e dos bens naturais.


A segunda etapa da luta pela terra, segundo a Ministra do Meio Ambiente, apresenta essas conquistas: as reservas extrativistas e a criação da Universidade da Floresta, uma extensão da Universidade Federal do Acre (Ufac), voltada para pesquisa sobre a biodiversidade da região amazônica e o manejo sustentável da floresta. Na conferência da manhã do sábado, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha já havia destacado a possibilidade real de o conhecimento tradicional e o conhecimento científico “viverem juntos”, graças ao exemplo da Universidade da Floresta, que foi instalada em Cruzeiro do Sul, em 2005. Marina Silva não esteve presente à conferencia de Manuela Carneiro, mas em muitos momentos de sua palestra manifestou seu reconhecimento e respeito à atuação da antropóloga.


Ao salientar a importância do trânsito entre a ciência ocidental e os saberes das comunidades tradicionais, Marina Silva não apenas estabeleceu um diálogo com a pesquisa científica, como começou a se articular em relação a outras áreas do conhecimento. Olhou para seu colega de mesa, o professor e crítico de arte belga Thierry de Duve, e, de forma surpreendente, comparou o readymade de Duchamp à “desconstituição da visão tradicional da ciência”. Assim como o urinol foi deslocado da vida para o museu, ela afirmou que “o feito pronto, o empírico, aquilo que os índios e os seringueiros observam na natureza” também pode ser adquirido como conhecimento e ciência.


Destacando a importância desses “trânsitos” para a constituição de uma nova forma de conhecimento, a Ministra evocou (mesmo que sem saber) o seminário “Trocas”, em que o crítico francês Nicolas Bourriaud apresentou a sua “estética relacional”, e em que a psicóloga Maria Rita Kehl teceu um projeto de convívio “entre dessemelhantes”. Marina Silva não sabia que o seminário organizado pela co-curadora Rosa Martinez, em outubro, defendera a transferência e o intercâmbio como um novo paradigma relacional. Mas ela conhecia o tema da 27ª Bienal, “Como viver junto”. Havia visto uma reportagem sobre a Bienal em um programa jornalístico e contou o quanto ficou interessada no assunto. “O x da questão é a convivência”, disse, dando a entender que encontrara a palavra para traduzir os últimos 30 anos de luta pela terra em seu Acre natal. “A tolerância é arrogante. Conviver é aprender a transitar no diferente”.


Com a segurança e a liberdade de quem já transitara por territórios da ciência, da arte e de movimentos políticos e sociais, Marina Silva nesse momento produziu um giro em direção à história política, afirmando que “os líderes que deram certo foram aqueles que não lutaram para acabar com as diferenças”. Em seguida, em outra guinada, citou “O Mal-estar na Civilização”, de Sigmund Freud, para dizer que a civilização depende da capacidade de cada um de estabelecer o trânsito com o diferente, com o outro. “Quem não transita, morre”, lançou, antes de encerrar a palestra com um poema de sua autoria, sobre as atribuições do arco, da flecha, do caçador e do alvo.


Durante a conferência, a Ministra do Meio Ambiente disse algumas vezes que não queria falar de política. Mas talvez ela tenha compreendido que estar no espaço da arte não é estar em situação apolítica. A sociedade está aprendendo sobre a troca, diz Marina Silva. Sua conferência no seminário “Acre” foi uma mostra de que a convivência entre povos da floresta, cientistas, pesquisadores, políticos e artistas é uma realidade possível.

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