Conferência 1

Relato da conferência “Índios isolados e o direito à terra”, proferida por José Carlos Meireles, em 10 de novembro de 2006

Isolado junto
por Gilberto Mariotti.

 


"É paca, é jacu, é anta, é tatu". É assim que José Carlos Meireles descreve o tipo de caça comumente preferida pelos índios. Suas credenciais de indigenista experiente impõem-se através de uma fala imbuída da cultura do território em que vive e atua, feita de expressões nativas, nomes de etnias e de lugares, uma fala extremamente comprometida com os povos indígenas e as questões políticas ligadas à sua sobrevivência. Rapidamente o Acre como "metáfora", proposto na abertura do seminário por seu organizador José Roca, ganha dimensão, ritmo e densidade.

Meireles, na FUNAI desde 70, no Acre desde 76, vai contando das situações que, por razões econômicas ou políticas, imprimiram perigo à vida das populações indígenas da região. Explica como a extração da borracha era sempre precedida por matança organizada e como alguns grupos de indígenas contatados eram utilizados como milícia que exterminava ou expulsava outros grupos. Como a matança era seguida de epidemias ou da exploração do trabalho de povos escravizados por seringueiros. E fornece o dado que resume boa parte da relação que o homem branco manteve, até certo momento, com vários povos indígenas: "Após um ano de contato, dois terços da população morria".

Segundo Meireles o ponto de virada acontece em 88, com a criação pela FUNAI do Departamento de Índios Isolados. Adota-se uma nova postura na relação com os estes povos: não contatá-los. À demarcação de terras sem necessidade de contato alia-se um trabalho de mediação quando há conflitos por território. Tratou-se, como ele diz, de fazer os povos contatados perceberem que os parentes "brabos" também têm direito à suas terras e, principalmente, o direito de continuarem "brabos".

Apesar de parecer orgulhoso desses resultados, Meireles reconhece os limites da atuação da FUNAI. Em algumas localidades este órgão é o único representante do Estado brasileiro, mas arca com as conseqüências da falta de políticas estatais eficientes para uma economia sustentável não predatória. Deixa claro também que o próprio fato de ainda existirem povos isolados se deve a razões econômicas que conspiraram a favor desses grupos em determinado momento: o caráter itinerante da exploração do caucho, a queda do preço da borracha ou a simples falta de financiamento para matança de índios. E encerra cantando o perigo atual: a exploração ilegal de mogno pra lá da fronteira com o Peru está provocando a migração forçada de grupos isolados para o território brasileiro, acirrando as disputas com grupos de cá pelos territórios de caça.

O quadro apresentado por Meireles é complexo e dinâmico. É a fala de um lugar e do jogo de relações e tensões que um lugar desta riqueza pode abarcar.

Inevitável relacioná-la com a fala de David Harvey. O geógrafo partiu de uma série de definições histórico-filosóficas do Espaço para construir um histórico da evolução do pensamento neoliberal. A complementaridade das duas falas da noite é interessante, na medida em que aponta para a necessidade de reatar as dimensões global e local, em função de uma ação política de resistência ante a estratégia neoliberal que Harvey chama de “accumulation by dispossession”; um capitalismo focado na manutenção e ampliação da concentração de riqueza, ancorado em políticas que possibilitam taxar populações por algo que sempre lhes pertenceu.

O tema desta edição da Bienal ganha novas possibilidades de desdobramento. Harvey e Meireles denunciam o lado violento da inclusão; tanto de novos mercados consumidores na dinâmica globalizada das grandes corporações, como de povos indígenas convertidos em cidadãos de segunda classe. A integração, afinal, não deve ser valor positivo a priori, sob pena de se tornar meta impositiva. Como viver junto... e a que preço?

 

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