Seminário Arquitetura - Conferência 5

01/04/2006 Relato da Conferência: “Do informe à negação da forma: desencontros produtivos”, de Guilherme Wisnik. Relato de Durval de Lara Filho e Paula Braga.

As Artes Plásticas e a Arquitetura são duas dimensões que oscilam entre a convergência e a separação. Em alguns momentos a convergência foi fecunda, como na Grécia clássica com Fídias, na Renascença com Michelangelo ao fundir arte e arquitetura na Igreja de Santa Maria Degli Angeli. Ou ainda no modernismo, com a Bauhaus, que propunha uma síntese das artes ou a ‘arte-total’. Já os distanciamentos ocorrem em momentos em que a Arte denuncia o ‘positivismo’ da Arquitetura, como em Piranesi, em seus espaços monumentais de caráter fantasmagórico e sombrio, ou com De Chirico ao explorar um vazio metafísico e que tem a arquitetura como tema. Para Guilherme Wisnik estas oscilações entre encontro-desencontro, junção-separação, caracterizam as relações entre Arte e Arquitetura.

Um desses encontros teria ocorrido entre Gordon Matta-Clark e Rem Koolhass, embora os momentos de produção de cada um deles tenham sido muito diferentes. Matta-Clark viveu e produziu nos anos 70, em Nova Iorque, época da valorização dos bairros populares, dos subterrâneos, da intensa vida das ruas, das discussões sobre as contradições da arquitetura e a irracionalidade da propriedade urbana. Rem Koolhaas chega a Nova Iorque no final dos anos 70 e em 1978 lança o livro Delirious New York: A Retroactive Manifesto for Manhattan que vai torná-lo uma figura conhecida no mundo da arquitetura e do urbanismo. Nos anos 80 a cidade passa por um ajuste conservador e liberal, pela transformação do Soho em área de butiques sofisticadas, pelo surgimento de shoppings nos píers, configurando uma grande transformação ideológica e espacial.

Uma aproximação entre Gordon Matta-Clark e Rem Koolhaas parece a princípio descabida, diz Wisnik, pois aparentemente eles se situam em campos opostos. Enquanto Matta-Clark insere-se na linha de crítica à positividade da arquitetura e trabalha os espaços que sobram, os resíduos - rasga, corta, perfura edifícios -, Koolhaas vê os espaços como se fossem uma “placenta tecnológica” e seus projetos incorporam a complexidade urbana, a fragmentação e o caos urbano das grandes metrópoles. No entanto, prossegue Wisnik, outras situações sugerem uma proximidade, já que ambos são artistas que aderem plenamente a seus momentos, pertencem à mesma geração e há uma espécie de continuidade entre eles. MC morre em 1978, mesmo ano do surgimento do livro de Koolhaas, ponto de partida na carreira do arquiteto. Mas além dessas coincidências ou curiosidades, Wisnik vê em ambos a influência do surrealismo: o fantasmagórico e o onírico em Matta-Clark e o método paranóico de Dali que vai ser retomado por Koolhaas

Mas onde estariam os pontos de encontro entre as obras de ambos? Na questão do informe, diz Wisnik, do informe como negação da forma, ou como a “supressão intelectual da forma”. O termo informe é emprestado de Rosalind Krauss1 que o utiliza a partir da noção de George Bataille e seu “projeto dissolvente”, anti-iluminista, que nega uma leitura linear do mundo e de leis que o expliquem2.

Enquanto Matta-Clark aborda o caráter informe do mundo, Koolhaas opera a partir de um partido arquitetônico que não é formal e suas preocupações são a grande escala (“bigness”) e o desprezo a qualquer tentativa de contextualização do edifício em seu entorno. Numa linha próxima está Venturi, com seus projetos que torcem a arquitetura popular norte-americana, e também Frank Gehry, cuja via formal caminha em direção à arte. No minismalismo e na lans art o artista vai se tornando um arquiteto e quase um engenheiro, tanto em raciocínio como em sua prática. Por seu lado, o arquiteto vai migrando para o terreno da arte ao criticar o movimento moderno, num caminhoinverso ao do artista.

Wisnik chamou atenção para o uso distinto do termo “formalismo” na arte e na arquitetura. Na arte, o formalismo é a arte auto-referencial, que aponta para seus próprios procedimentos e afirma a planaridade e bidimensionalidade de um quadro, como defendido por Clement Greenberg. Na arquitetura, essa ênfase na auto-referencialidade é típica do funcionalismo. Costuma-se caracterizar como “arquitetura formal” justamente aquela que não prioriza o funcional, ou seja, não prioriza o que é próprio da arquitetura. Niemeyer foi citado por Wisnik como um “arquiteto formalista”: olhando seus prédios não é possível entender como as estruturas ficam de pé, quais materiais foram usados, pois são construções que não explicitam procedimentos, negam o que é próprio da arquitetura, e assim não são arquitetonicamente auto-referenciais.

 

Para enfatizar a aproximação que vê entre Matta-Clark e Koolhaas, Wisnik apresentou algumas obras, detendo-se em Cronical Intersect e no projeto da Biblioteca Nacional da França. Em Cronical Intersect Matta-Clark cria um cone através de um edifício por meio de cortes nas paredes e lajes que anulam o aspecto utilitário e que buscam uma reflexão crítica sobre o espaço. Wisnik vê neste trabalho mais do que um sentido destrutivo ou sombrio de questionamento e crítica à ordem da arquitetura: “existe também uma certa euforia pela potencialidade da experiência: o corpo do visitante, suas reações físicas, sua experiência de viver aquilo”.

Para Wisnik o arquiteto se aproxima do artista no projeto de Koolhaas para a Biblioteca Nacional da França (1989). A abordagem do projeto já demonstra uma atitude crítica e não convencional. A respeito do programa recebido, diz Koolhaas: “Ficamos irritados em pensar que teríamos que imaginar as cinco bibliotecas diferentes como cinco formas: uma divertida, uma feia, outra bonita e assim por diante. Em outras palavras, estávamos cada vez mais resistentes às normas de uma arquitetura que resolve tudo pela invenção da forma”, diz Koolhaas. Seu projeto prevê a construção de um enorme cubo com 73m de aresta e que, como uma pele, abrigaria as cinco bibliotecas em seu interior. A massa sólida do cubo seria ocupada pelo acervo e as áreas de uso comum seriam o resultado da “ausência de construção” ou de escavações de formas amebóides. Koolhaas parece lançar um olhar irônico sobre a complexidade do mundo contemporâneo. As novas relações espaciais propostas adotam um processo de eliminação e não de construção, de ‘invenção’ e não de ‘representação’. O resultado é um “corpo unitário e desorganizado, mais que uma composição estruturada de partes (clássico e moderno)”, conclui Wisnik.

 

Comentários

A aproximação entre a Arquitetura e a Arte nem sempre se dá de forma equilibrada, mas, ao contrário, geralmente um campo se sobrepõe ao outro. Ao tentar fazer uma aproximação entre Matta-Clark e Koolhaas, Wisnik o faz com base na questão do informe. No entanto, fica a impressão de que a única aproximação possível é no aspecto formal. Ambos têm como ponto de partida uma mesma cidade (Nova Iorque), uma mesma realidade fragmentada e globalizada, buscam seus fundamentos teóricos nos modernos (surrealismo) e na crítica radical. No entanto as semelhanças parecem se esgotar por aqui quando seus caminhos divergem: as questões abordadas são distintas, eles operam de formas diferentes e obtêm resultados quase opostos. É possível discutir este caminho divergente a partir de suas próprias vozes e de alguns de seus críticos.

Rem Koolhaas define o espaço das grandes metrópoles ocidentais (particularmente Nova Iorque), ‘como espaços-lixo’, nos quais a continuidade é a essência. O ‘espaço-lixo’ "aproveita qualquer invenção que permita a expansão, incorpora qualquer recurso que fomente a desorientação (os espelhos, as superfícies polidas, o eco), estende uma infra-estrutura de continuidade: escadas rolantes, elevadores, áreas cercadas, cortinas de ar quente, ar condicionado, etc. O espaço-lixo é fechado, mantém-se unido pela estrutura, ou por uma pele, como uma bolha”3. Koolhaas busca tirar partido disto tudo, isto é, converter-se numa “espécie de Rei Midas democrático”4, que procura encontrar a fórmula para que o inútil passe a ter algum valor, “onde até o sublime seja possível”. Em seu livro Delirious New York, analisando os edifícios de Manhanttan, Koolhaas encontra neles uma artificialidade que desafia qualquer intepretação dessa arquitetura “baseada na composição clássica” (idem, ibidem), pois eles a desconsideram, “eliminam as conexões interior-exterior, eliminam as certezas, substituindo-as por seqüências absolutamente imprevisíveis; eliminam a coerência das oposições arquitetônicas para substituí-las pelo acaso” (idem, ibidem). A coexistência da incerteza, da dissociação, desconexão, contraste e ruptura levam Koolhaas afirmar que a cidade não pode ser comparada a um tecido mas o local onde coexistem diferentes objetos que “quase nunca se articulam visual ou formalmente” (idem, ibidem).

Josep Maria Montaner descreve o processo de trabalho de Rem Koolhass como uma espécie de integração entre o surrealismo e a crítica radical com a cultura pop, resultando daí um rentável uso da cultura do fragmento. Suas premissas são que a arquitetura é comunicação e que o consumo é uma forma autêntica de atividade social. “Nesse sentido os projetos e as idéias de Koolhaas são emblemáticas de nossa condição pós-moderna. Koolhaas, como Venturi, representa uma linha irônica que realmente não supera a tradição moderna, mas que continua entendendo a cidade com uma mentalidade produtivista e funcionalista, constituída por objetos autônomos, que não se relacionam no contexto, na trama histórica e na complexidade da realidade”5.

Bem diferente de Koolhaas, Matta-Clark, analisando sua trajetória e seus trabalhos, afirma que "[a] maior parte das coisas que fiz que têm implicações 'arquitetônicas' são realmente acerca de não-arquitetura... Estávamos pensando sobretudo em vazios, brechas, espaços abandonados, lugares metafóricos que não foram desenvolvidos... Metafóricos no sentido de que seu interesse não estava em sua possível utilidade. ... É como brincar com a sintaxe ou desintegrar algum tipo estabelecido de seqüência de partes. (...) Eu queria alterar todo o espaço até suas raízes, o que significava um reconhecimento do sistema total (semiótico) do edifício, não de uma forma idealizada, mas usando os verdadeiros ingredientes de um lugar (...). Assim, por um lado estou alterando as unidades de percepção existentes, normalmente empregadas para distinguir a unidade de uma coisa. Por outro lado, grande parte das energias da minha vida tem a ver simplesmente com ser negado. Há tanta coisa em nossa sociedade que propositalmente visa a negação: negar a entrada, negar a passagem, negar a participação etc"6.

Corinne Diserens vê em Matta-Clark um gesto que transgride “o corpo arquitetônico e sua ordem”. Para Marianne Brouwer (citada no artigo de Desirens) Matta-Clark não desfaz o edifício, “ele desfaz a analogia arquitetônica que está contida nele... As palavras são removidas do edifício da linguagem, em um movimento que percorre o edifício, como se estivesse removendo cuidadosamente sua espinha dorsal semântica. Fundações são perfuradas, fachadas divididas, pedras-chaves removidas. Mas o edifício não desmorona. Sua lógica é meramente invertida em um ato de 'discreta violação' (Matta-Clark) de seu sentido de valor, seu sentido de orientação. A imagem do mundo como estrutura arquitetônica (um edifício) é despojada de suas metáforas mais banais ('pilares da sociedade', 'estruturas coerentes', 'fundações de teorias'). A transgressão engendra a série de metáforas que permitem que a obra de Matta-Clark seja 'lida' como uma antilinguagem, solapando e subvertendo a linguagem da arquitetura"(idem, ibidem).

 

É difícil enxergar uma proximidade entre Koolhaas e Matta-Clark diante do que foi dito por eles próprios, por seus críticos e também por suas obras. A ação libertadora, crítica e transgressora do artista não encontra eco na atuação do arquiteto. Talvez a aproximação entre os dois tenha ocorrido não por suas semelhanças e sim por terem tido em certo momento a mesma cidade como campo de ação, Nova Iorque. Suas obras, assim, traduzem a mesma cidade em dois momentos, a cidade em transformação: em Matta-Clark há a Nova Iorque dos anos 1960, do desbunde, do despontar da contra-cultura, da revelação de aspectos da cidade encobertos pelas capas da sociedade; em Koolhass temos a arquitetura que reconhece a mudança e trabalha com a Nova Iorque dos anos 1980, do assentamento do conservadorismo e do neo-liberalismo.

1 Formless – A User’s Guide. Catálogo da exposição na exposição “L’informe: Mode d’emploi, realizada por Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois, no Centre Georges Pompidou, em 1996. Neste texto o termo informe (formless) não recebe propriamente uma definição, mas é caracterizado por quatro operações: horizontal, base materialism, pulse, and entropy. "the formless has its own legacy to fulfill, its own destiny -- which is partly that of liberating our thinking." FORMLESS: A USER’S GUIDE. Yve-Alain Bois and Rosalind Krauss. --N.Y.: Zone Books, dist. by MIT Press, November 1997.

2 Bataille descreve o informe como uma subversão da tradicional dualidade forma e conteúdo. No “Dicionário Crítico”, elaborado para a revista Documents, Bataille assim define o verbete “informe”: “Assim, informe não é tão somente um adjetivo com determinado sentido mas um termo que serve para desconcertar a exigência de que cada coisa, via de regra, tenha sua forma. Aquilo que ele designa carece de direitos, sob todos os aspectos e pode, a qualquer momento, ser amassado, feito uma aranha ou um verme. Com efeito, para que os acadêmicos estejam contentes seria necessário que o universo adquirisse forma. Aliás, toda a filosofia não tem outro objetivo: trata-se de dar uma sobrecasaca àquilo que é uma sobrecasaca matemática. Afirmar, entretanto, que o universo não se parece com nada e é apenas informe equivale a dizer que o universo é parecido com uma aranha ou com um cuspe” (BATAILLE, Georges. Informe in Oeuvres Complètes I. p. 217) in Raul Antelo. A Aporia da leitura. www.revistaipotesi.ufjf.br/volumes/v6n2/cap02.pdf. Consultado em abril de 2006.

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3 Kolhaas, R. "El espacio basura" en A.U. n° 74, oct. 2000. in Luis Moya. EL PROYECTO DEL ESPACIO VACIO. Madrid, octubre 2001. URBAN N° 7 – (Publicación de ETSAM - UPM). Consultado em abril de 2006. http://www.ub.edu.ar/revistas_digitales/Arquitectura/Numero1/catedras/arquitectura/espacio-vacio.htm

4 Alejandro Zaera. Encontrando libertades: Conversaciones con Rem Koolhaas.

http://www.nossa.unal.edu.co/biblos/BiografIa-Conversaciones-Koolhaas.doc. Consultado em abril de 2006.

5 Josep María Montaner. Rem Koolhaas. Todo en venta: de Le Corbusier a Prada. Summa, revista bimestral de Arquitectura y Diseño. http://www.summamas.com/57b.htm. Consulatdo em abril de 2006.

6 Catálogo Gordon Matta-Clark, IVAM. Todas as citações de Gordon Matta-Clark provêm deste catálogo, Centre Julio Gonzalez, Valencia, 1993, e de Matta-Clark, ICC, Antuérpia, 1977. in Corinne Diserens. O filme arquitetônico de Matta-Clark.– Trópico. Consultado em abril de 2006. http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1095,1.shl