Seminário Arquitetura - Conferência 6

01/04/2006 Relato da Conferência “Strategies of Transition”, de Marjetica Potrc. Relato de Paula Braga.

 

A escola da informalidade

(por Paula Braga)

Para se compreender e admirar a obra de Marjetica Potrc, a palestra da artista proferida no simpósio “Arquitetura” não foi suficiente. Talvez o que tenha faltado à apresentação tenha sido uma argumentação teórica que conectasse os três projetos apresentados: “Caracas: Dry Toilet”, “Istanbul: Rooftop Room” e a pesquisa sobre a arquitetura informal que está reerguendo cidades destruídas nos anos 90 durante a guerra nos Bálcãs como Zagreb (Croácia), Belgrado (Sérvia), Tirana (Albânia) e Pristina (Sérvia). Potrc apresentou imagens dos projetos com curtos comentários sobre motivações e materiais usados. Faltou acrescentar que sua obra não se trata de doar banheiros a uma favela em Caracas, mas de observar, aprender, e retornar ao mundo idéias que a artista/arquiteta colhe nas construções informais que hoje salpicam várias cidade do planeta.

 

Um dos principais ensinamentos que Potrc assimilou de sua pesquisa em cidades que se transformam sob os efeitos de desastres sociais, políticos ou naturais é a eficiência de obras arquitetônicas de porte modesto, em contraposição a grandes programas de construção de habitações ou infra-estrutura. Antes de se tornarem habitações, as obras que interessam a Potrc começam com a pequena ambição de serem abrigos. Alterações e melhorias nas estruturas propostas por Potrc ficam à cargo dos habitantes. Assim, inspirada na arquitetura informal das favelas, Potrc construiu para a Bienal de Istambul um teto de folha-de-flandres sustentado por vigas que a artista fincou no topo de uma casa cuja laje era plana o suficiente. Durante a bienal, uma família ocupou esse barracão suspenso, improvisando cortinas para se separar do espaço público. Um ano depois, a habitação tinha paredes e preservava o mesmo telhado, semelhante à cobertura dos populares barracões de zinco brasileiros. Mas não é exatamente isso que fazem os habitantes de baixa renda de qualquer cidade? Sim, e Potrc oficializa a importância arquitetônica do “puxadinho” numa época de colapso do poder público. Pisando nos astros distraída, a população excluída de programas oficiais de habitação fornece à arquiteta modelos que Potrc vai registrando em um projeto que leva o título de “Estratégias Contemporâneas de Construção” (Contemporary Building Strategies).



Istanbul: Rooftop Room. Building materials, energy and communication infrastructure, 2003
'Poetic Justice' The 8th International Istanbul Biennial, Istanbul

 

Potrc emula algumas dessas soluções informais em projetos concretamente realizados, como no caso do telhado de Istambul ou adiciona alguma pesquisa científica a essas estratégias, como fez na construção dos “banheiros secos ecológicos”, no bairro de La Veja, em Caracas, uma região da cidade excluída da rede de fornecimento de água e saneamento. Vale citar também que Potrc projeta objetos -- que não foram apresentados na palestra -- que poderíamos chamar de “infra-estruturais”, tais como o Hippo Water Roller, um tonel rolante para transporte de água, concebido na África do Sul, para as populações que buscam água em rios. Ao invés de esperar por água encanada, aquela comunidade beneficiou-se de outro tipo de infra-estrutura, algo advindo de um pensamento arquitetônico paralelo.

 


Hippo Water Roller Project,
Hippo Water Roller, South Africa

 

Recentemente, a pesquisa de Potrc voltou-se para a arquitetura paralela das cidades da ex-Iuguslávia. Potrc nomeia essas construções espalhadas pelos Bálcãs de “cidades paralelas” pois elas não destróem o que existia (ou o que restou) mas reutilizam as estruturas que encontram, em geral desafiando qualquer regra de respeito ao espaço público mas expressando uma admirável celebração da existência em uma época pós-catástrofe. Um exemplo marcante dessa arquitetura de dois gumes é uma fotografia de um terraço, no segundo andar de um prédio, que se projeta para fora com tanta ânsia de criação de espaço que chega a um poste público de iluminação e, sem qualquer pudor urbanístico, envolve-o e continua por mais alguns centímetros em direção ao outro lado da rua. Em outro prédio apenas a área externa de um dos apartamentos está pintada em cor de laranja, contrastando com o cinza do restante da fachada, ilustrando o que Potrc diagnostica como uma proposital quebra da unidade. Para a artista, esse tipo de intervenção na arquitetura sinaliza uma reação contra os pressupostos da globalização, e afirma um desejo de vida individual, privada, sem regras generalizantes. É o fenômeno que Potrc chama de “Balcanização”: uma celebração do fragmento, da parte em detrimento do todo, celebração do instante presente em detrimento do planejamento de longa duração. Essa quebra do todo já se anuncia, segundo Potrc, na existência de vários governos em uma mesma cidade: Pristina, por exemplo, está sob o governo Sérvio, Kosovar e da ONU.

 

O desafio a regras é detectado por Potrc também na cidade de Tirana cujo prefeito, Edi Rama, lançou um projeto de revitalização urbana baseado em pinturas decorativas nas fachadas dos prédios. Potrc selecionou imagens de prédios onde a pintura atravessa a fachada redesenhando as formas estabelecidas pela arquitetura. Assim, as cores não contornam janelas mas atravessam-nas, ignoram colunas e estabelecem faixam em outras direções, que descem em zig-zag até o térreo. É importante notar que, embora essas imagens tenham sido úteis na argumentação de Potrc a respeito da quebra de regras, qualquer rápida busca por imagens de Tirana na Internet revela que há na cidade também prédios com um padrão de pintura mais submisso à arquitetura.

 

Desafiando formas arquitetônicas com faixas coloridas ou construindo terraços salientes mas bastante espaçosos para a crescente população, as cidades dos Bálcãs parecem afirmar que é possível viver junto, desde que separadamente, cada um a seu modo. E o custo de um convívio desse tipo é a fragmentação e colapso do espaço público.

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