Marcel, 30 - Conferência 2

27/01/2006 Relato da Conferência: “A Instituição artística sob suspeita” - Lisette Lagnado

Por que juntar Broodthaers e Oiticica na 27a bienal?

Lisettte Lagnado traçou em sua palestra as linhas que permitem enxergar a “convivência” de Marcel e Hélio. Desdobrando a questão central da 27a Bienal de S. Paulo -- “Como Viver Junto?”, tema inspirado pelas palestras de Barthes no Collège de France em 1976-77– , Lagnado revelou os instrumentos conceituais que permitem juntar Broodthaers e Oiticica. Ainda que eles nunca tenham se encontrado pessoalmente, seus trabalhos compartilham certa zona de atuação, onde viveram juntos.

Essa área comum foi delineada pela curadora da bienal a partir de “afinidades diferenciais”, como as noções de acaso e bloco lançadas por Mallarmé e pelos procedimentos de construção que tanto Marcel quanto Hélio admiraram chez Schwitters. Identificando também rompimentos dessas linhas de junção, as análises de Lagnado sobre o ambiental, o décor e sobre o cinema de Oiticica e Broodthaers mantiveram o público atento até o final de uma noite tão estimulante quanto exaustiva. Coerente com um projeto embasado na obra de Hélio Oiticica, o início da 27a Bienal apresentou uma curadoria à procura de participantes: intensidade e resistência são requisitos de seu público. De fato, o comentário que Lisette Lagnado fez a respeito da função desses seminários – uma reflexão que exige esforço e que não pretende ser confortável – pareceu inspirar-se em Artaud, para quem o público deveria ir ao teatro como quem vai ao dentista: não em busca de diversão, mas em busca de uma experiência necessária.

O poema de 1897 Un coup de dés jamais n'abolira le hasard, de Mallarmé, é a procedência dos conceitos de bloco e acaso que uniram as obras de Hélio e Marcel no início da apresentação de Lagnado. Para Broodthaers, Mallarmé é o “inventor do espaço moderno para a poesia visual”, e o artista belga realça a visualidade e os blocos de composição apagando todas as palavras de Un coup de dés..., substituindo-as por retângulos pretos. Ao eliminar palavras, Marcel traz à tona a plasticidade da construção do poeta. Já Oiticica, que cita várias vezes o acaso o jogo de dados em seus escritos, apanha idéias lançadas por Mallarmé e devolve-as em novo lance através de Newyorkaises, um livro de fragmentos escrito nos ninhos de Nova Iorque. [os textos de Oiticica que citam explicitamente o acaso e o lance de dados podem ser selecionados por uma busca no arquivo virtual “Programa Hélio Oiticica”, elaborado sob coordenação de Lisette Lagnado.].

Lagnado lê Newyorkaises também como um esforço enciclopédico, de junção de todos os criadores que interessam no universo de Oiticica e salienta que o acaso “está subjacente na formação (sempre incompleta) de uma coleção e na construção (também difícil de concluir) de uma enciclopédia”.

Partindo para a segunda “afinidade diferencial” entre Oiticica e Broodthaers, Lisette Lagnado comenta que o primeiro filme de Broodthaers foi dedicado a Schwitters e juntando-se a Jacques Rancière, identifica um sentido de “construção”, tanto em Schwitters quanto em Broodthaers. Construção, sabemos, é o cerne dos “programas para a vida” de Hélio Oiticica. Aqui a aproximação que Lisette faz entre Broodthaers, Oiticica e Schwitters sugere ao ouvinte a ficção de um encontro dos três na Merzbau. Mas o tema da “casa” do artista transformando-se em obra de arte será explorado em outro ponto da apresentação. Nessa parte da apresentação, interessou a Lagnado discutir as utopias de aproximação entre projetos de vida e obras de arte. Apesar de considerar os “programas para a vida” de Oiticica como “utopia datada”, Lagnado recorre a Rancière para permitir que “datado” possa também significar uma data futura. O sentido de construção acionado por Schwitters, Broodthaers e Oiticica seria o dispositivo capaz de dobrar o tempo nessa espiral:

O segundo bloco conceitual da Bienal se concentrará em torno da expressão de HO, "programas para a vida". É uma utopia certamente datada, mas Rancière nos concede uma brecha possível: "Os projetos de vida que queriam substituir as obras de arte se tornaram obras de arte em si como outras onde simplesmente as técnicas mistas substituem os pigmentos de outrora." O raciocínio de Rancière segue fazendo uma crítica à autonomia da arte (uma "involução", segundo ele) pregada por Clement Greenberg, deixando claro que essas superfícies precisam ser "reativadas". E como podem ser reativadas? "Formulando uma arte identificada com a construção de um mundo novo" ou "economia única da construção das formas da vida moderna, sob o modo da simultaneidade, construtivista [ ...]". [1]

Após citar Rancière e a reativação de projetos de vida construtivistas através da criação de “um mundo novo”, Lisette discutiu obras de Broodthers e de Oiticica que utilizam projeções de slides, salientando que os nomes de duas dessas obras, Un autre monde (Broodthaers) e Cosmococas (Oiticica/ Neville) carregam em seus títulos a proposta contrutivista articulada por Rancière: “cosmo” é um mundo. Em 1968, Broodthaers embaralha projeções de cartões postais do século 19 sobre caixas com inscrições: "picture" [imagem] / "with care" [com cuidado] / "keep dry" [manter seco] / "fragile" [frágil], acionando uma discussão sobre o filme como objeto e do objeto como filme. Lisette salienta que o cinema de quadros não contínuos é para Broodthaers uma experiência com um outro sistema de leitura (o que teria como conseqüência um “outro mundo”). Já Oiticica, Lagnado adverte, preocupa-se mais em transformar a relação espectador-espetáculo quando elabora com Neville de Almeida as Cosmococas (carreiras de cocaína sobrepostas a fotografias de outros artistas inventores como Jimmi Hendrix e Yoko Ono) ou quando compõe Neyrótica, obra que também integra a série de Quase-cinemas mas que até hoje foi bem menos analisada por comentadores da obra de Oiticica. Os quase-cinemas, é importante ressaltar, incluiam também trilhas sonoras e instruções para o espectador.

Oiticica, Tropicália, 1967

 

Ao contrário do que ocorre nas projeções de Broodthaers, a ênfase no espectador/participador é fundamental no “programa ambiental” proposto por Oiticica, que abarca tanto os quase-cinemas quando outras de suas proposições ambientais como Tropicália – a mais “surrada” obra de Oiticica, segundo Lagnado, tamanha a profusão de interpretações inadequadas pelas quais essa proposição de 1967 passou. Mas Lagnado concede a Broodthaers um lugar no “ambiental” ao discorrer sobre o “Décor” (decoração, ou como sugerido por Huchet no segundo dia do seminário, cenário). Lisette então exibiu no telão imagens de Un Jardin d'hiver [Um Jardim de inverno] e L'Entrée de l'exposition [A Entrada da Exposição], ambas de 1974 e explicou a noção de “décor” com as palavras do artista belga: “Tenho procurado reacomodar objetos e pinturas, que foram feitos entre 1964 e este ano, de modo diferente com o objetivo de formar nas salas um tipo de arranjo. Ou seja, eu tenho tentado restituir uma função real ao objeto ou à pintura. O arranjo não é um fim em si. “

Marcel Broodthaers, Un Jardin d'hivern, 1974

 

Lisette interpreta o movimento de Broodthaers em direção `a “decoração” como mais uma ironia do artista, aqui direcionada ao futuro das obras de arte quando entram na casa de um colecionador, misturando-se a tapetes e sofás. Lagnado aproveita o escárnio de Broodthaers em relação aos arranjos de obras de arte com objetos domésticos como vasos de plantas para propor a discussão sobre os arranjos aceitáveis entre objetos e espaço museológico. Assim como um caldeirão de mexilhões de Broodthaers causaria estranheza em um lar de decoração burguesa, que tipo de objeto é considerado adequado num espaço museológico? E Lagnado pergunta: “será possível romper a expectativa que tem um visitante de museu, de galeria, ou mesmo de bienal? Ou seja, pode o museu se permitir expor algo que não seja uma ‘obra de arte’?” [ vale aqui lembrarmos uma frase de Oiticica sobre a impossibilidade de convívio entre os bólides, aliás melhor chamá-los de “ovo do novo”[2] , já que estamos perto do ovos de Broodthaers, e a decoração: “os bólides ficam horríveis nas casas burguesas” ].

A apresentação de Lagnado seguiu para uma breve menção da questão da representação na obra dos dois artistas e para a discussão da noção de autoria em Broodthaers e Oiticica: “Enquanto MB fez da assinatura do ‘artista’ um dos pontos culminantes de sua estratégia, usando suas iniciais em vários trabalhos, HO, por sua vez, apostou nas parcerias e colaborações, na participação do espectador, deixando até instruções para que cada um pudesse costurar seu próprio Parangolé-capa.” E Lisette deixa implícita uma questão: as instituições estão preparadas para parcerias? Broodthaers como “diretor de instituição” nunca indicou um desejo de dividir a autoria de seu museu e, nesse apego à arte e suas instituições como fetiche, novamente detona a crítica à cultura da instituição de arte.

Enquanto Broodthaers fez de sua casa um museu ou vice-versa, Oiticica aderiu ao “loft”: espaço sem divisões entre os cômodos que espelha o “blurring the boundaries” entre arte e vida. As similaridades entre Babylonest e Musée d'Art Moderne. Département des Aigles vão além do fato de ambos espaços serem também a habitação dos artistas (e vão além de uma coincidência não mencionada por Lagnado: ninhos em um caso, conchas/ovos em outro). O loft e o museu concentram, como notado por Lagnado, o melhor das produções de Oiticica e Broodthaers: “Radicalizando, ‘babylonests’ é o ‘département des aigles’, porque concentra o sumo da produção (…)”

Lagnado terminou sua apresentação com um jogo de adivinhações. Lendo uma frase enunciada em 1970, convidou o público a adivinhar se foi dita por Oiticica ou por Broodthaers:

“Creio que não se pode mais fazer arte sem uma profunda especialização cultural. Mas essa cultura deveria ser uma ferramenta; isto constitui parte de minha definição pessoal da arte. Faço coisas que se referem a uma cultura, usam essa cultura ou se apóiam nela. “

Eu tenho meu palpite, mas não vou estragar o jogo. Arrisco apenas a dizer que leio a palavra “cultura” mencionada nessa frase como a cultura institucional, que nas mãos dos dois artistas vira ferramenta para desmontar a própria instituição, ou melhor dizendo, o circuito artístico.

(por Paula Braga)


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[1] Lisette Lagnado informa que as referências a Jacques Rancière são da palestra L'espace des mots [O espaço das palavras], proferida no Musée des Beaux-Arts de Nantes, no dia 9 de janeiro de 2004, no âmbito da exposição "Marcel Broodthaers. Un jardin d'hiver..." e publicado em maio de 2005.

[2]cf. Oiticica, O Objeto na Arte Brasileira nos anos 60, 5/12/1977