Marcel, 30 - Debate Final

Debate após as palestras “Correspondências para além do silêncio”, de Dorothea Zwirner, e “Speakers’ Corner, sopro a sopro”, de Rirkrit Tiravanija Sábado, 28/1

O recado e o silêncio

 

Na sua bela e estimulante intervenção neste primeiro Seminário Internacional da 27ª Bienal de São Paulo, Rirkrit Tiravanija desmontou a separação entre as categorias de "palestra" e "ação", travando um diálogo imaginário com Marcel Broodthaers, o artista belga homenageado neste ciclo (e aniversariante do dia). Oferecendo-lhe um microfone, inquiriu-lhe diretamente sobre algumas das questões que curadores, historiadores da arte e diretores de instituições procuraram responder em suas palestras. Uma saudável e necessária provocação em um seminário que discutiu aspectos relativos à permanência e o papel dos museus. A última questão dedicada a Broodthaers foi: "Como viver junto?"

Depois de a historiadora Dorothea Zwirner discorrer sobre "correspondências para além do silêncio", Tiravanija elegeu o silêncio como questão fundamental em Broodthaers. Silêncio expresso na ausência da palavra falada no filme Speaker's Corner, ou na mudez da fotografia projetada no palco do auditório. Mas as questões não respondidas por Broodthaers estimularam, afinal, Dorothea Zwirner a quebrar o silêncio do auditório e a abrir a sessão de debates do final da tarde de sábado, 28. Ela começou reconhecendo ser mais fácil fazer perguntas que dar respostas. "A partir da palestra de Rirkrit, fiz minhas próprias perguntas", afirmou Zwirner, lançando a dúvida se a questão de MB não seria muito mais relativa a um "circuito hermenêutico de entendimento e comunicação da arte" (como colocado pelo curador Stéphane Huchet na manhã deste sábado) do que ao Como Viver-Junto (título da 27ª Bienal, que foi emprestado dos cursos de Roland Barthes no Collège de France, entre 1976 e 1977).

Aqui não houve silêncio. A resposta veio da curadora geral Lisette Lagnado, que em sua palestra na noite anterior havia justificado o alinhamento entre Roland Barthes, Marcel Broodthaers e Hélio Oiticica na plataforma conceitual de sua curadoria. No debate, ela aproveitou para enfatizar a relação entre o Como Viver-Junto e a realidade brasileira. A resposta se dirigiu não somente a Zwirner, mas também a Stéphane Huchet, que teria questionado a pertinência dessa questão no Brasil, pelo fato do brasileiro ser reconhecidamente movido pelo "afeto". "Como Viver-Junto faz sentido no Brasil sim porque temos um disparate de desigualdades sociais", disse ela. "Na Bienal, não vamos fazer uma ilustração, mas trazer linguagens diferentes de pessoas que não conseguem se comunicar", afirmou Lagnado, recordando as palavras iniciais da palestra de Dorothea Zwirner: "'Lost in translation' é um sentimento muito apropriado para Marcel Broodthaers".

Foi justamente graças aos abismos da tradução e aos ruídos de comunicação - apontados por Zwirner como âmbitos de atuação de MB - que Rirkrit Tiranavija perdeu a pergunta que lhe foi dirigida a seguir por Martin Grossmann. O curador e diretor do Fórum Permanente havia perguntado a Tiravanija e à curadora geral da Bienal sobre os motivos da escolha de Marcel Broodthaers (e não de outros artistas conceituais, como Yves Klein ou Piero Manzoni, por exemplo). "E por que eleger como pauta a crítica à instituição num contexto em que ela vive em permanente crise?", emendou. Referindo-se à segunda parte da questão, Lagnado ironizou e passou a bola adiante: "A curadora da Bienal nunca foi diretora de museu". Por sua vez, Tiravanija, sem referir-se diretamente à pergunta (que lhe ficou incompreendida), foi reticente e restringiu-se a dizer que pergunta-se todos os dias sobre o sentido de fazer arte.

Foi Cristina Freire, uma das co-curadora da 27ª Bienal, quem alçou o debate para fora desse "não-lugar-lost-in-translation" e chamou a atenção para o Musée d'Art Moderne, Département des Aigues - o museu fictício que MB criou em seu apartamento entre 1968 e 1972 - como um espaço onde se discute os problemas da linguagem. "Ao fazer o museu em sua casa e fazer do espaço expositivo o espaço de criação, Marcel Broodthaers não faz desse museu uma ficção. Mas indica como podemos pensar as relações entre curadores e artistas. É uma chave para pensar o Como Viver-Junto", disse Freire, lembrando que após visitar o museu de MB, em 1969, o professor Walter Zanini, então diretor do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, passou a organizar uma série de exposições com a característica de usar o espaço museológico como espaço de criação.

Quando os nexos entre as estratégias de MB e o Como Viver Junto - não mais o de Barthes, mas o de Lagnado - começavam a fazer todo o sentido, uma pergunta da curadora suiça Corinne Diserens, diretora do Musée des Beaux-arts de Nantes, na França, lançou outra dúvida no ar. Desta vez, uma dúvida de dimensão política. "Vocês receberam uma carta do Jimmi Durham?", perguntou ela para a equipe da Bienal. Desta vez, o silêncio foi quebrado pelo co-curador Adriano Pedrosa, que resumiu para a platéia o conteúdo da carta enviada por um artista norte-americano de origem indígena, pedindo o boicote da Bienal de São Paulo em represália à legislação brasileira, que não contempla o índio em seu sistema eleitoral.

"Soube que a carta circulou no Fórum Social de Porto Alegre, no ano passado, quando ainda não existia um projeto para a 27ª Bienal. É uma carta panfletária e vazia. Boicotar a Bienal não vai mudar a condição do índio no Brasil. Mas mandamos a carta para ser analisada por um antropólogo e isso pode ser discutido no seminário sobre o Acre que o (José) Roca está organizando", posicionou-se Lisette Lagnado.

Interessado em trazer a discussão para o presente, Rirkrit Tiravanija (que vive entre Chang Mai, na Tailândia, e Nova York, onde leciona na Columbia University School of the Arts) disse conhecer muito bem Jimmi Durham e que chegou a pensar se aceitaria o convite para participar do Seminário Marcel, 30. "Cheguei à conclusão de que não é o caso de boicotar a Bienal, mas acho que ele colocou uma questão que deve ser discutida. Muitos artistas escutam suas opiniões". Nascido em 1940, em Arkansas, de uma família de ativistas políticos, e descendente de índios Cherokees, Jimmie Durham é artista multimídia, poeta, escritor, crítico e editor. Na década de 1970, atuou no Movimento Indígena Americano e liderou a movimentação que conquistou a assinatura da carta de Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas, da ONU. O artista vive hoje na Bélgica e, na opinião de Corinne Diserens, tem um trabalho muito próximo das propostas de MB. A curadora francesa voltou à carga para sugerir: "Essa carta do boicote pode ser entendida de maneiras muito diferentes. (…) A minha pergunta é: que tipo de discussão e espaço vai ser criado na Bienal para essa carta?".

"Ele não escreveu para mim, diretamente. Essa carta surgiu antes de eu ser nominada. Não tomo essa questão, portanto, como dirigida a esta Bienal, da qual ele sequer conhecia a plataforma. Acho que ele escolheu a Bienal como poderia ter escolhido qualquer outra entidade: a Coca-Cola ou a Fiesp", respondeu a curadora-geral. Jochen Volz, organizador do Seminário Marcel, 30 e curador convidado da 27ª Bienal, veio sugerir novamente que o núcleo curatorial estabelecido do Acre, sob o comando de José Roca, seria a resposta ideal ao pedido de boicote de Jimmie Durham.

Então, num movimento inesperado e oportuno, a pesquisadora Christine Mello inverteu o sentido do debate. Pediu a palavra e perguntou a Tiravanija: "Como se sente como um artista que vive nos Estados Unidos, um país que transgride tantas leis internacionais?". Em seguida, emendou para todos: "Marcel Broodthaers fez um boicote à palavra no Hyde Park. Em que medida o boicote é interessante de ser feito? E onde é interessante ele ser feito?"

Tiravanija saiu-se diplomaticamente. "Devemos ser críticos dentro do contexto em que vivemos, mas não gosto de boicotes. É por isso que estou aqui. Não sou feliz vivendo nos Estados Unidos, há muitas coisas problemáticas, mas é onde eu leciono e onde posso dialogar. Eu não boicoto, eu negocio", disse.

Cristina Freire respondeu à Chris Mello lembrando um boicote estabelecido à Bienal, em 1969. "Os artistas se reuniram porque o sistema das artes estava sendo atacado pelo regime militar. Isso durou até o Brasil retomar sua democracia", colocou Freire, que foi imediatamente apoiada por Jürgen Harten, ex-diretor do Kunsthalle de Düsseldorf, na época em que Broodthares montou lá sua Section des Figures. "O boicote só é relevante quando o trabalho do artista está sendo censurado pela instituição. Neste caso, ocorre um jogo institucional que eu não entendo de nenhuma forma", afirmou ele.

Com um tempo generoso dedicado à discussão, mesmo depois da equipe da instituição ter debatido atenciosamente a questão levantada por Desirens, houve ainda chance para dois artistas inscritos se posicionarem. A artista plástica peruana Sonia Cunliffe apontou a importância da Bienal como espaço para discussão e difusão de idéias. "Hoje mais que nunca temos a missão de ser críticos. Boicotar a Bienal impede que outras pessoas possam conhecer nossas visões". Surpresa com o aspecto discriminatório da legislação brasileira até então desconhecido por ela, a paulistana Graziela Kunsch sentiu-se diretamente implicada pelo manifesto de Durham. "Ele está endereçando a questão para a arte e nós, como artistas, temos que nos posicionar. Pensar nessa grande desigualdade é pensar em como viver junto".

Com o recado do artista norte-americano assimilado pela platéia constituída em grande parte por artistas residentes em São Paulo, a curadora-geral da 27ª fechou o primeiro ciclo de seminários. O fecho se deu com a presença de um Marcel Broodthaers subjacente à promessa da Bienal em assumir seu papel de plataforma para pensar a arte e suas relações sócio-culturais.

(por Paula Alzugaray)

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