Seminário Reconstrução - Debates

Relato dos debates do seminário Reconstrução, 9 e 10 de junho de 2006

Como viver junto sem os mitos modernistas da universalidade e das identidades nacionais? Dito em outras palavras, como definir um projeto de convivência mútua quando as idéias de civilização e cultura parecem desestabilizadas ou até mesmo obsoletas? Latente nas palestras e debates dos dois primeiros seminários (Marcel, 30 e Arquitetura), o problema da vida coletiva na atualidade foi central nos debates do Seminário Reconstrução.

Na primeira sessão de palestras, tivemos a possibilidade de assistir uma aproximação entre arquitetura e filosofia política a partir de duas abordagens distintas sobre a “simbologia do lugar”, para usar a expressão da co-curadora da exposição e organizadora do seminário Reconstrução, Cristina Freire; a “derrota antopológica” da antiga União Soviética no Vietnã (Renato Janine Ribeiro) e a apropriação da Martys’ Square pela população libanesa, após o assassinato do primeiro ministro Rafiq Hariri (Tony Chakar). “Qual a possibilidade de ainda nos apropriarmos dos espaços públicos”? Foi a primeira pergunta, feita pela co-curadora da Bienal. Renato Janine Ribeiro destacou a dificuldade dessa apropriação devido ao esvaziamento/marginalização do espaço público, citando como exemplo a Praça da Sé, marco zero da cidade de São Paulo; palco de manifestações políticas no passado, a praça encontra-se hoje sob a ocupação selvagem e marginal dos pichadores e moradores de rua. O palestrante não deixou, no entanto, de considerar o potencial crítico das pichações, expresso no tom humorístico de frases como esta: “não compre jornais, minta você mesmo”. Por fim, Ribeiro afirmou que a questão colocada por Cristina Freire refere-se a uma utopia inviável nos dias de hoje, fato assinalado pelo efeito temporário de manifestações como aquela da Martys’ Square.

Com a palavra aberta ao público, Veronica Cordeiro questionou a pertinência dos espaços em branco nas “representações arquitetônicas” apresentadas por Tony Chakar. “A não-representação de espaços construídos não seria o equivalente à omissão de um conhecimento que poderia estar acessível”? Na opinião do palestrante, questionar as convenções da representação arquitetônica, como, por exemplo, o espaço branco no desenho corresponder a um espaço vazio, trata-se, justamente, de uma tentativa de levar o espectador à repensar as relações arbitrárias dessa linguagem. O projeto do professor da Academia Libanesa de Belas Artes, que gera também debates com os seus estudantes, pretende problematizar a representação arquitetônica (cortes, vistas e plantas), inventando novas maneiras de representar o espaço em seus aspectos comunicativos. Outra pessoa da platéia perguntou à Tony Chakar o porquê da apresentação somente da representação arquitetônica (maquete) da ocupação da Martys’ Square; “esse lugar para viver junto não é possível na realidade”? O palestrante mencionou a dificuldade de encontrar alguma documentação fotográfica dessa ocupação, e aproveitou a oportunidade para ressaltar que os projetos apresentados procuram produzir “unidades de medida para espaços infinitos” (poéticos), como, por exemplo, algumas favelas de Beirute que apesar da não oferecerem nenhuma infra-estrutura aos seu moradores são consideradas como um verdadeiro “lar”. Trata-se, portanto, da tentativa de representar algo intangível.

Questionado pelo público sobre a relação sujeito-objeto na “guerra antropológica”, Renato Janine Ribeiro frisou não tratar-se de uma “guerra”, mas uma “derrota antropológica” sofrida pela União Soviética no Vietnã, onde o diálogo entre duas culturas totalmente diferentes foi impossível. Nesses casos, segundo Ribeiro a relação sujeito-objeto (ou melhor dizendo intersubjetiva) não está pautada no diálogo, na troca e na reciprocidade, porque a impossibilidade de tradução dos discursos e a inexistência de pontos de comunicação tornam a aproximação entre os sujeitos “forçada”. Um dos resultado disso é o fato de que a tradução de tudo para termos “ocidentais” impede que as outras culturas se expressem no sistema global.

Comentando a palestra de Renato Janine Ribeiro, que abriu o seminário Reconstrução afirmando que “estamos num tempo de descarte” e assinalando a necessidade de uma “ética da separação”, que defende a “preservação da memória do que foi bom”, a curadora da 27ª Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado, relembrou o filósofo F. Nietzsche, para quem “é necessário esquecer para continuar”, e, consequentemente, para viver junto. “Como pensar no convivência pacífica entre israelenses e palestinos sem o esquecimento”? Para Lagnado, o luto e a vingança estariam ligados à lembrança e à memória. O luto impede que a vida prossiga normalmente, enquanto a vingança leva ao conflito e impede a coexistência pacífica. Nesse sentido, o perdão estaria associado ao esquecimento, e, portanto, a única saída para a resolução do conflito seria fazer da história uma tábula rasa. Por outro lado, seria interessante mencionar outro filósofo, H. Marcuse, para quem esquecer significa “perdoar o que seria imperdoável se a justiça e a verdade prevalecessem”. Marcuse certamente se referia à impossibilidade de esquecer os horrores do Holocausto. Seria prudente, portanto, entender como alemães e judeus conseguiram prosseguir sem esquecer o horror nazista e mantendo na memória a vergonha de um e a dor do outro.

A réplica de Janine Ribeiro seguiu nessa direção, caracterizando o conflito Israel-Palestina como pseudo étnico, onde a questão principal em jogo é a construção de um ambiente próspero para os dois grupos, ressaltando assim mais os aspectos políticos e econômicos do que os “antropológicos”. Vale lembrar que esse conflito (re)iniciou quando, no pós-guerra, o Estado de Israel foi criado como reparação aos crimes nazistas justamente em um território ocupado pela comunidade palestina. Por fim, o palestrante afirmou que: “a rigor, o grande problema não está na morte, mas no futuro de quem está vivo”. Não é o sentimento de vingança que motiva os conflitos, mas a falta de perspectiva em relação ao futuro. Nas suas palavras, “o problema não é o sofrimento passado, mas o sofrimento presente”.



O que nós temos em comum? Como nós podemos viver, colaborar e trabalhar junto? Enfim, o que pode ser feito para construirmos um espaço de convivência e colaboração pautados numa “estética relacional”? Essas questões, elaboradas no contexto das “comunidades” artísticas apresentadas por Viktor Misiano, estavam em sintonia com os debates da primeira sessão de palestras. No entanto, o foco da discussão retornou do eixo temporal (história e memória), no qual o debate da noite anterior havia encerrado, para o eixo espacial, a partir de uma problematização sobre o espaço público.

Abrindo a sessão de debates do sábado, a curadora da exposição, Lisette Lagnado, fez uma pergunta ao curador russo, problematizando a existência de um espaço público no seu país e a distinção em relação ao espaço privado. Viktor afirmou que essa foi uma questão central para a arte contemporânea internacional no pós-guerra, na medida em que meio artístico underground (marginal) operava numa interconexão entre o público e o privado. Um bom exemplo seria a APT-ART, na qual apartamentos deixavam de ser espaços privados, mas diante do contexto político da época, marcado por Estados autoritários (o que foi uma especificidade do leste Europeu e das Américas, pois a Europa e os EUA estavam sob a égide do Estado de Bem-Estar e a África atravessava o período de suas Guerras anti-imperialistas) tornavam-se esferas públicas “interiorizadas”, onde indivíduos organizam algo coletivo em um ambiente privado. Atualmente, observamos exatamente o oposto; experiências da vida privada (beber, conversar, etc.) encenadas em público, que constroem uma nova forma interação entre o público e o privado. Cristina Freire comentou a resposta de Misiano, assinalando a diferença entre a “necessidade” (histórica) de criação de espaços alternativos dentro de regimes autoritários, nos quais essas eram as únicas alternativas possíveis, e as buscas atuais por espaços ditos alternativos, que configuram-se muitas vezes como movimentos das próprias instituições artísticas em busca da instrumentalização do espaço público. Na platéia, Ana Paula Cohen replicou esse comentário, afirmando que atualmente existe uma “necessidade” de espaços alternativos, mesmo que esta seja de outra ordem. Além disso, nas suas palavras “hoje temos uma dificuldade maior em diferenciar espaço público e privado, devido à sua fluidez”. Criam-se, portanto, espaços (zonas) temporárias de atuação. Temos aqui, talvez, uma referência ao exemplo apresentado por Tony Chakar; apesar da Martys’ Square ser um espaço público, a sua ocupação temporária agregou a esse espaço outros usos e significados. Lisette Lagnado afirmaria mais tarde que concorda com essa “questão do temporário”, hoje “não existem mais projetos para sempre, mas momentos coletivos temporários que deixam resíduos”.

Por fim, Lisette questionou o voyerismo do espectador na obra da artista Orlan, uma das artistas apresentadas pelo psicanalista e professor João Frayze-Pereira: “ela poderia estar junto com os demais artistas apresentados, sendo talvez o baluarte da sociedade do espetáculo (Guy Debord)?” Frayze-Pereira não veria o trabalho da Orlan dessa forma, primeiro, por não reconhecer neste uma teatralização, e, segundo, porque o voyer busca o deslumbramento diante do objeto, enquanto o espectador da obra de Orlan e da sociedade do espetáculo de maneira geral “sai da exposição sem nada”, porque as imagens são abjetas. Lisette replicou afirmando que também podemos ser voyers do abjeto, dessa exploração do “disgusting” que a Orlan promove, lembrando alguns programas de TV sensacionalistas.

Seria interessante observar que artistas como Orlan não operam mais no espaço público no seu sentido restrito, a saber, um espaço gerido pelo Estado e utilizado coletivamente, mas em espaços midiáticos, palco de intervenções artísticas e sociais que seriam debatidas na última sessão de debates.


Um debate sobre as relações entre arte e ativismo, ou, em outras palavras, entre estética e ética, seguiu à última sessão de palestras do Seminário Reconstrução, que apresentou dois programas distintos de intervenção artística; no espaço institucional, com os dilemas e impasses da exibição da obra de Daniel Buren no Guggenheim (NYC), tema da conferência de Jean-Marc Poinsot, e no espaço informacional, com o ativismo midiático da artista Minerva Cuervas.

Inicialmente, Tony Chakar questionou: como o “incidente de Buren” (a saber, a retirada da sua obra de uma exposição no Guggenheim, em 1971, curada por Diane Waldman, atendendo aos pedidos dos artistas Donald Judd, Dan Flavin, Joseph Kosuth, and Richard Long, que dividiam com Daniel Buren o espaço expositivo) pode ser considerado como um exemplo de conflito dentro de um “espaço compartilhado”? Segundo Jean-Marc Poinsot, a divisão e, por conseguinte, o compartilhamento desse espaço é algo “imaginário”, cabe, portanto, ao bom curador, saber dividir e compartilhar o espaço expositivo. Uma das atribuições do curador seria justamente ser um administrador desse espaço compartilhado entre as obras e os artistas, atuando para que as obras, que lutam pela atenção do espectador, não competissem entre si. A priori, não seria, portanto, uma atitude antiética de um curador, recusar a proposta de uma artistas pelos motivos acusados por Judd, Flavin, Kosuth e Long (a saber, a interferência do trabalho de Buren, devido às suas dimensões e disposição no espaço expositivo). O “escândalo” mencionado por Poinsot foi, nesse caso, a retirada da obra de Buren atender aos pedidos dos artistas que compartilhavam o espaço com o artista francês.

Mas existe também uma outra questão envolvida no incidente de Buren no Guggenheim. Stéphane Huchet questionou Jean-Marc Poinsot sobre os motivos que teriam levado Joseph Kosuth a opor-se à Daniel Buren daquela forma. O palestrante francês não mencionou as razões pessoais que motivaram a atitude de Kosuth, mas indicou que Buren, nas suas palavras, um “pintor”, estava lidando com questões caras aos artistas conceituais, a saber, a crítica institucional. Na medida em que a obra de Daniel Buren extrapola os limites imaginários do “cubo branco”, invadindo o espaço autônomo que deveria abrigar as obras, e os limites arquitetônicos da instituição, ele evidencia esses limites e critica a instituição artística a partir do seu interior. Talvez, a verdadeira razão que tenha levado Buren a desagradar tanto os minimalistas Judd e Flavin, quanto os artistas conceituais, Kosuth e Long, tenha sido justamente atravessar a barreira que separava duas estratégias de intervenção artística, o site specific espaço-temporal minimalista e o sistema institucionalizado da arte no qual operava a arte conceitual. Desse modo, o problema surgiu porque o espaço “compartilhado” continha uma fronteira, que dividia dois grupos distintos, e Daniel Buren optou por atuar nas bordas dessa fronteira.

Coincidentemente, ou não, a artista mexicana Minerva Cuervas opera dentro de uma espaço diferente dos minimalistas e dos artistas conceituais. O espaço de operação de sua obra é informacional, ela atua através de um discurso que na sua base não pode ser diferenciado do discurso das grandes corporações e dos sistemas de telecomunicação. Atendendo ao pedido feito por Stéphane Huchet, Jean-Marc Poinsot comentou o trabalho de Minerva afirmando que diferentemente de Daniel Buren, cuja obra dialogava com a instituição através da arquitetura, Minerva utiliza uma linguagem “corporativa” e imagens midiáticas. Nesse sentido, poderíamos inferir que embora os atistas conceituais tivessem extrapolado o espaço institucional, o foco de suas atenções e críticas ainda era este mesmo espaço. Já a potência crítica do programa artístico apresentado por Cuevas não está mais direcionada à insituição artística, mas ao espaço público midiatizado, o qual ela intencional modificar éticamente. Contudo, para além da sedução do trabalho apresentado, como foi assinalado por Tony Chakar, devemos tomar uma distância crítica em relação à essas estratégias artísticas. Em certos casos, como por exemplo, trocar etiquetas com os preços de produtos nos supermercados, tornando produtos alimentícios mais baratos aos consumidores, o ativismo parece estar sobreposto ao artístico - a própria artista comentou que muitos questionam ser ela uma artista ou uma ativista. Em outros casos, como por exemplo a utilização de símbolos corporativos (o “clown” de uma rede de lanchonetes), a estratégia de ação torna-se ingênua se comparada com as estratégias de marketing das grandes corporações. Tony Chakar assinalou a necessidade de uma ação de complexidade proporcional àquela utilizada pelo sistema no qual estamos interferindo, para evitar a sua fácil apropriação. Não seria a exposição midiática proporcionada pela intervenção artística – a própria artista mencionou a repercussão do fato na imprensa – benéfica, em última instância, à corporação criticada. O famoso “falem mal, mas falem de mim”. Além disso, nas palavras de Estéphane Huchet, “a arte não poderia ser política por si mesma, sem ser militante e engajada?” Afinal, “a obra de arte veicula a sua própria política”.

No encerramento do Seminário, feito por Cristina Freire, a co-curadora da Bienal assinalou a necessidade de Reconstrução da história da arte conceitual a partir de dois pontos de vista distintos: um norte-americano e europeu ligado ao site-specific e à crítica institucional, e outro latino-americano ligado a um site-specific discursivo, representado historicamente na figura de Cildo Meireles.

(por Vinicius Spricigo)