Seminário Reconstrução - Conferência 2

Relato da conferência “S/K/N (sakana)”, proferida por Tony Chakar, em 09 de junho de 2006

Ocupação da Martys's Square, em Beirute, em março de 2005

 

No telão: Uma frase em fundo preto: Requiem: one more cup of coffee
A conferência abriu com um momento de silêncio em homenagem a um amigo, o escritor libanês Samir Kassir, assassinado há um ano*.

Telão: foto, uma multidão em um espaço aberto na Cidade de Beirute.
Em 14 de março de 2005, um mês depois da morte do Primeiro Ministro libanês Rafik al-Hariri, assassinado por uma explosão de um carro bomba, uma multidão de um milhão e meio de pessoas surgiu de várias partes do Líbano, saiu às ruas de Beirute protestando contra o atentado e ocupou a Praça dos Mártires.

O Primeiro Ministro Hariri, político neo-liberal, de origem muçulmana, foi um dos mais entusiastas da reconstrução do centro por grandes empresas capitalistas, era  também investidor da SOLIDERE, empresa encarregada de reconstruir este setor de Beirute, destruído pela guerra civil. Graças a ele, a reforma da Praça dos Mártires começou, aberta para a visão do mar. Uma das obras concluídas no local é uma enorme mesquita, onde hoje estão seus restos mortais. Sua morte despertou uma enorme comoção popular, mesmo entre aqueles que não concordavam com ele. Cristãos e muçulmanos, das diversas seitas, se uniram nas ruas para protestar. Naquele momento, ele foi considerado como o único que tinha um projeto para o Líbano. O atentado foi atribuído a grupos que apoiavam e mantinham a hegemonia da Síria no país.

[Em 1975, a guerra civil libanesa começou em Beirute com conflitos entre bairros cristãos e mulçumanos, marcando uma cisão herdada de antigas desavenças coloniais, e se estendeu rapidamente pelo resto do Líbano, articulando-se com a violenta trama dos conflitos do Oriente Médio. Encerrou em 1989, com o Tratado de Taif por iniciativa dos países árabes e apoio do Ocidente. Um resultado, entre outros, foi a entrada e permanência de tropas sírias com a justificativa de manter a paz e de impedir o avanço de Israel pelo sul do país. No entanto, mesmo com o fim oficial da guerra interna e a saída o exército de Israel do território libanês (2000), os sírios não foram embora e cada vez consolidavam sua presença não só no governo, nas instituições policiais principalmente, como também na vida econômica. Ao mesmo tempo, atentados, explosão de carros-bomba, assassinatos e seqüestros de pessoas, inclusive de importantes lideres políticos libaneses, continuaram ao longo destes anos até hoje. O assassinato de Hariri catalisou um “Basta!” por parte da população, numa série de eventos conhecidos como Revolução do Cedro].

Telão: foto de policiais dispersando com violência manifestantes anti-sírios, foto de um grupo pró-Síria empunhando armas.
Estas fotos são anteriores à grande manifestação em homenagem a Hariri. Grupos favoráveis à permanência das tropas sírias convocaram diversas manifestações logo em seguida ao atentado. Uma delas, na Praça dos Mártires em Beirute, atraiu mais de 200 mil pessoas em 8 de março de 2005.

Telão: a foto de uma maquete da “cidade das tendas”
A resposta mais contundente à articulação das facções pró-Siria ocorreu em 14 de março com o protesto de  milhão e meio de pessoas.  Pela primeira vez desde 1975, ano da guerra civil, houve uma mobilização popular de enormes proporções. Após esta grande manifestação, os jovens montaram tendas na praça dos Mártires. Tais tendas eram homogêneas, amplas, de forma e cor semelhantes, cobertas com lonas azuis ou brancas. Apesar dessa homogeneidade externa, dentro das tendas se reuniam permanentemente, provenientes de várias religiões e regiões do país, homens e mulheres, na maioria jovem, exigindo a expulsão das tropas sírias. A praça se tornou um espaço comunicativo, um lugar para o dissenso, e não consenso, um espaço político, não por causa do número de pessoas, nem por causa do desafio a uma certa situação, no caso, exigir o fim  da hegemonia síria, mas principalmente por uma questão colocada para o futuro: “Como viver junto?”

Naquele pequeno pedaço da praça, discutia-se freneticamente, dia e noite, o significado de ser libanês, apesar das 18 religiões e seitas e dos efeitos da violenta guerra civil que quase cindiu definitivamente o país e causou mortes e destruição. A “cidade das tendas” estabelecida na praça foi tolerada por 80 dias. Quando as autoridades perceberam o alcance da ebulição que as discussões estavam gerando, as tendas acabaram sendo desmanteladas.

Houve eleições logo após os protestos, as tropas sírias foram embora em abril e os políticos pró-Síria perderam os espaços no governo.

Em 9 de maio, outro tipo de multidão também ocupou a Praça dos Mártires para saudar a volta de um líder cristão banido pelos sírios há mais de quinze anos, General Michel Aun, exilado na França. Ele apareceu na praça como um boneco sem vida, com pose de líder “dono da verdade”, protegido por vidros a prova de balas, gestos fixos e expressão paranóide acenando para uma multidão pouco interessada em questionar e discutir.

[Gen. Aun, cristão maronita,  entre 1988-1990, foi Primeiro Ministro de um dos dois governos simultâneos que o Líbano teve nestes anos, ainda em plena guerra civil. Exilou-se em Paris por discordar das condições do Tratado de Taif. Atualmente, está cogitado para ser candidato a Presidente para as eleições de 2007]

Os militares sírios se foram, a influência do governo sírio se retraiu, mas permanece a pergunta: por que a Praça dos Mártires, cujo nome homenageia nacionalistas libaneses executados pelo Império Otomano em 1916,  tornou-se o epicentro da discussão e dos atos mais relevantes da mobilização popular de todas as tendências? Por que esta praça acabou sendo a alegoria do próprio Líbano em sua relação com o mar e com o interior do continente?

Chakar explicou visualmente a dimensão deste dilema a partir da projeção de imagens de cartões postais da praça e de mapas antigos e novos de Beirute, entremeada com a leitura de seus próprios escritos literários. Para começar, leu um texto poético em que descreveu os prédios de Beirute como se fossem ”barcos prontos para partir“.

Beirute situa-se entre o mar e uma cadeia de montanhas.

Telão: um mapa geomorfológico localiza o mar, a cidade e as montanhas.
O dilema crucial do Líbano surge quando se pergunta:
Beirute está de frente para o mar e de costas para a montanha ou de frente para as montanhas e de costas para o mar?
Se Beirute olha para o mar, então olha para o Ocidente, é um ponto de encontro entre leste e oeste.
Se Beirute se considera de costas para o mar, então é a última fronteira de um Império islâmico, oriental, e portanto o ponto mais fraco deste império, um local facilmente atacado pelo Ocidente.
E esta questão manifestou-se em diversas imagens que apresentavam a praça e a cidade de Beirute, discutidas na conferência.

Telão: uma seqüência de fotos e cartões postais da praça dos Mártires
Em foto de 1920, o fotógrafo estava de costas para o mar, apareceu então uma praça acanhada, fechada em si mesma, como são as praças árabes ainda hoje. Em 1930, ao fundo da praça surgiu no horizonte uma nesga do oceano, o fotógrafo desta vez incluiu o mar. Em 1950, o mar apareceu mais nítido atrás de um prédio que posteriormente foi demolido, exatamente para se abrir mais a vista para o litoral. Em 1992, as discussões sobre a reconstrução da praça feitas com a empresa encarregada de reconstruir o centro da cidade sempre debatiam a necessidade de abrir a praça para permitir a vista do oceano. A foto de 1996 mostrou a praça como uma área aberta e sem diversos edifícios que apareceram nas outras fotografias. Em 2001, algumas obras já tinham sido construídas, mantendo-se ampla vista para o horizonte marítimo. Uma árvore de natal gigante apareceu na foto.

Telão: a foto de uma criança em meio às atividades atuais da reconstrução da praça mostrando um pôster de uma foto antiga de Beirute
A praça se tornara metáfora de um debate profundo de duas visões acerca do Líbano que sempre conviveram em conflito. Rafic Hariri pertencia ao grupo dos que desejavam Beirute de frente para o mar Mediterrâneo, enquanto os sírios mantinham o Líbano voltado para o continente islâmico com o uso da força militar. A presença maciça da população no local mostrou ser possível encerrar o conflito e dissolver a dicotomia mar ou montanha. O país poderia se abrir para o mundo, sem que isso cristalizasse uma cisão interna.

Para reforçar a importância para o Líbano desta relação com o mar e com a montanha, foram apresentados mais alguns mapas e fotos.

Telão: foto de Beirute no começo do século
Naquela época a cidade atraía pessoas que buscavam a liberdade. O mar aparece ao fundo, mas os prédios e as casas parecem estar de costas para o litoral.

Telão: foto atual de um prédio de Beirute com uma pintura colorida de um veleiro ocupando grande parte da  parede lateral.
Chakar mostrou esta foto como uma “comprovação” bem humorada do que havia dito anteriormente sobre os prédios da cidade estarem prontos para se lançarem ao mar.

Telão: série de imagens cartográficas: foto aérea atual de Beirute, mapas do século passado, do século XIX e atual da mesma cidade.
A dimensão do sentido da recente reconstrução da praça abrindo-a para o litoral, apareceu em um detalhe dos mapas atuais de Beirute: o uso intenso da cor azul. Em um mapa mais antigo, o desenho procurava ‘esconder‘ o mar, quase sem diferenciá-lo da terra firme. Em outro mapa antigo, a orla marítima apareceu cercada por uma muralha. Naquela época, uma corrente chegou a bloquear o livre trânsito das embarcações.

Depois da constatação de que mapas e representações expõem os dilemas sociais, culturais, políticos de um local, Chakar prosseguiu afirmando que ao ser convidado para falar sobre reconstrução achou que o tema poderia ser aborrecido. Afinal, ele nunca se interessara em participar das atividades de reconstrução do centro de Beirute. No entanto, aqui a questão da reconstrução faz parte do tema  “Como viver junto”, assunto que sempre foi alvo do seu pensamento e das suas ações.

Telão: foto da maquete da cidade das tendas na praça dos Mártires, mãos aparecem dando retoques em um dos elementos da maquete.
Nesta foto, as mãos do artesão da maquete não foram excluídas nem escondidas. Na  Grécia antiga o artesão fora banido da discussão política da democracia pois supostamente não teria tempo para se dedicar a ela. Na foto, porém, a presença da atividade do artesão foi incluída, não se retirou a questão política da vida, não se tirou da imagem da maquete o que estaria fora do esquema de uma representação arquitetônica.

O poder que a praça dos Mártires demonstrou nos acontecimentos recentes do Líbano decorreu de ter se tornado, em momentos decisivos, um lugar de dissenso e não de consenso, um lugar atravessado pela vida, onde as pessoas conversaram, puderam discordar e continuar convivendo.


Chakar a seguir, referiu-se a seus projetos. O primeiro deles foi Rouwaysset.
No telão: foto de uma vista aérea de um bairro de Beirute encravado em uma pedreira.
Como representar esta área por meio da linguagem arquitetônica?

Beirute conta com áreas de ocupação ilegal em seus arredores. Diferem das “favelas” brasileiras pois, ao menos no caso mostrado, nelas habitam comunidades específicas. Tratava-se de uma  comunidade muçulmana cercada por bairros cristãos. Durante a guerra civil no Líbano esta comunidade foi relocada para lugares melhores, com saneamento e casas confortáveis. No entanto, logo depois, seus membros foram voltando para o antigo local, apesar da infra-estrutura precária. Como representar este padrão de vida aparentemente feio, mas que no entanto os atraiu para voltar?

No telão: foto de casas amontoadas uma sobre as outras no bairro Rouwaysset.
Poderia este bairro indicar  um modo de reconstrução urbana anti-SOLIDERE?

Todas as construções são ilegais nestas áreas e tudo muda constantemente. Hoje há uma parede que amanhã se transforma em uma janela. Como representar uma porta que se transformava em janela de um dia para o outro? De que modo a linguagem da arquitetura, que trabalha com seções, fachadas, planos, e se baseia na ilusão tridimensional da perspectiva inventada por Alberti no Renascimento, pode dar conta da impermanência dos elementos construtivos destes bairros? Deste modo, foram inventadas por ele e por sua equipe, novas maneiras, e mesmo novas figuras, para representar elementos arquitetônicos e para descrever o espaço ocupado.

No telão: alguns desenhos com outras convenções e símbolos para indicar o espaço do bairro descrito.
Usou-se no desenho uma linha cheia para representar janelas e portas, ou seja o que está em mutação, e linhas pontilhadas para as paredes ou outras informações, contrariamente ao que preconiza a linguagem arquitetônica clássica. Incluíram-se elementos pouco usuais nas plantas arquitetônicas, tais como cortinas pois estas muitas vezes serviam para separar ambiente e até habitações. Nas áreas dos bairros estudados onde Chakar e sua equipe não puderam entrar, o espaço foi deixado em branco.

No telão: a foto da fachada de um sobrado com uma escada de avião enferrujada levando para o andar mais alto.
Chakar afirmou que sua intenção era “escrever” um mapa como alguém que vivenciava a cidade de dentro e não com a visão onisciente dada pela perspectiva convencional do desenho, a qual colocava Deus, o olhar de Deus, como ponto final da convergência de linhas infinitas.  Reconheceu que esta intenção não era inédita e já fora realizada antes. Citou os exemplos de “Nadja” de André Breton e “Rua de Mão Única” de Walter Benjamin.

O resultado de seu trabalho acabou sendo não um mapa, mas histórias escritas. Aqui Chakar se refere a seu livro de textos: The eyeless map, (O mapa sem olho) publicado no Líbano.

No telão: fotos de sua exposição “Uma janela para o mundo” (A window to the world),
na qual longos textos reproduzidos nas paredes da mostra se mesclam a desenhos arquitetônicos.

As plantas das casas também são apresentadas pela linguagem escrita, pela palavra. Para Chakar, o uso de textos seria mais adequado ao “residual”, àquilo que não consegue ser representado pelas convenções do desenho arquitetônico. A planta e o mapa “geometrizam” o mundo e eliminam as partes que não cabem em seus esquemas de representação.

Telão: stills de um vídeo também apresentado na exposição. Partes da imagem do corpo de duas pessoas  vão sumindo até restar apenas um olho.
Neste vídeo a referência foi o espaço criado pela perspectiva convencional e a possibilidade de tirar ou ocultar arbitrariamente “pedaços” deste espaço.

Beirute não deve, portanto, ser examinada como um espaço abstrato. Há uma diferença entre Espaço e espaços e, nesta diferenciação, a determinação da linha do horizonte é importante, pois esta linha preconiza o que se pode e o que não se pode ver. Como no caso de Beirute, as conseqüências diversas desta cidade aparecer como delineada ora pelo mar, ora pelas montanhas, mostram a inexistência de uma neutralidade na representação de um lugar. Para entender o espaço e descrevê-lo, deve-se buscar os elementos desse lugar, saber o que carrega de especial. Deve-se descobrir a poética do lugar, “poética” no sentido heideggeriano, da medida, do limite, das fronteiras que especificam  cada área.

Sakana (morada) nomeava esta conferência, mas como no Brasil há uma palavra como o mesmo som com sentido muito depreciativo, não foi dado destaque a este título. Em árabe Sakana  significa “o vento parou”, “estou parado em algum lugar”, ou seja, “estou morando aqui”. Quando alguém se torna sedentário, ou seja, “pára em algum lugar”, outras pessoas aparecem  para conversar.  Este é o sentido de “morada”.

* Samir Kassir, morto em 2 de junho de 2005 por um carro bomba, era famoso jornalista anti-sírio  e um dos fundadores do Movimento Democrático de Esquerda, partido que obteve uma vaga no parlamento libanês nas eleições de 2005.

(por Beatriz Scigliano)

outros relatos da mesma autora:
Conferência Walking through Walls: Soldiers as Architects in the Israeli/Palestinian Conflict – Eyal Weizman
Conferência “No ar: os curtos-circuitos alegóricos de Marcel Broodthaers” – Stéphane Huchet
Conferência “Correspondências para além do silêncio” - Dorothea Zwirner

Conteúdo Relacionado

Reconstrução

27ª Bienal - Como Viver Juntos