Seminário Reconstrução - Conferência 5

Relato da conferência “Uma companhia para a memória”, proferida por Jean-Marc Poinsot, em 10 de junho de 2006

NA SOMBRA DA ARTE: Interacionismo estético numa “companhia para memória”

The Cremaster Cycle, M. Barney / Around the corner, D. Buren



“Comprova-se o valor de uma idéia por seu poder de organizar o espaço”
Goethe

“L´échange est une unité concrète fondamentale de l´activité sociale.”
E. Goffman

 

A partir do exemplo de uma obra de arte do francês Daniel Buren, retirada em 1971 da sexta Exposição Internacional do museu Guggenheim de New York, J-M Poinsot desenvolve uma reflexão sobre a memória da arte e dos artistas e abre assim uma ampla discussão sobre as formas de documentar tais momentos críticos para os artistas, que são também momentos de crítica aos museus. Neste escândalo artístico, o que chama a atenção é o fato de que, após ter sido aceito pela curadora Diane Waldman, a proposta artística de Daniel Buren foi retirada do espaço de exposição, e isso a pedido dos outros artistas da mostra: Donald Judd, Dan Flavin, Joseph Kosuth e Richard Long.

Estes artistas argumentaram o fato de que as duas obras de Daniel Buren, uma no espaço interno do museu e uma outra na rua ao lado (com a intenção de criar um laço entre o museu e o espaço público)  atrapalhavam e contaminavam a visibilidade das suas próprias obras. O que este problema de espaço coloca em evidência é tanto  a importância da relação entre a obra e o seu contexto expositivo, quanto a ampla questão do diálogo entre as diferentes obras de diversos artistas. Aparece aqui, e de forma radical neste caso,  o fato de que os outros artistas não queriam ficar na sombra de Buren e batalharam em grupo para conquistar os seus espaços de visibilidade dentro do museu Guggenheim.

Se J-C Kaufmann define as obras de arte como “exteriorizações de egos”, Erving Goffman leva adiante essa discussão mapeando os oito territórios do eu e explicando que o espaço de visibilidade é vivido como uma extensão do corpo-vendo. Por exemplo, se você, num museu, está olhando para um quadro e alguém se coloca de repente entre você e a obra, a sensação de invasão do espaço íntimo é imediata e desagradável. Estamos bem aqui, com esta censura coletiva ao trabalho de Buren, num caso de reação a este tipo de invasão, vivido pelos outros artistas como um ataque a essa extensão deles que suas obras representam. Para entender o “absurdo” dessa reação,  evocado nesse termo por J-M Poinsot, me parece importante perceber que essa reação de defesa artística, de luto pelo espaço dentro de um museu é um clássico do Interacionismo Simbólico, e um dos micro-eventos dos mais recorrentes quando vários egos-artisticos se debatem num mesmo espaço. Em geral, é a função do curador lidar com estes conflitos e resolvê-los de forma satisfatória para todos.

Dentro desta perspectiva, J-M Poinsot se refere à sociologia de Bruno Latour, mostrando até que ponto o interacionismo simbólico (e aqui estético) coloca em jogo atores sociais interligados e suas relações com as instituições, aqui o museu. Assim, para Buren, ao invés de considerar o museu como um sistema fechado sobre si mesmo, podemos pensá-lo como um espaço de interações simbólicas, interações entre a arquitetura, as obras, os artistas, os curadores, o público… Assim sendo, a obra exposta deveria se encontrar no museu como numa rede de significações instáveis, interativas e abertas, e permitir ao museu apresentar artistas e suas idéias ao invés de simplesmente expor ready-mades deslocados e descontextualizados: as obras.

Quinze anos depois desta primeira tentativa de romper os limites da instituição museológica, Buren voltou ao Guggenheim com o projeto Around the Corner e, desta vez, conseguiu mostrar uma obra que estava dialogando com o museu, interagindo com a arquitetura de Frank Lloyd Wright e abrindo  todos os espaços de visibilidade dos artistas e do público. A memória de Daniel Buren, as suas reflexões críticas em relação aos museus, estavam aqui espelhadas numa colocação em abismo que denunciava os limites do museu e ao mesmo tempo as superavam, abrindo o seu espaço ao infinito, ampliando-o.

Na sua palestra, Uma companhia para a memória, J-M Poinsot tratou finalmente da história e das condições de “um novo modo de guardar, em forma de documentos, a memória de trabalhos desconstruídos e de novas experiências que requerem a colaboração e um entendimento mais amplo por parte dos agentes envolvidos na reconstrução”. Reconstrução da interação entre o artista e o espaço de exposição que o museu representa, pois J-M Poinsot mostra até que ponto a questão do agente é central nesta discussão sobre os espaços da arte e que o agente/artista não pode deixar de interagir com eles, pois a função do curador não seria mesmo a de facilitar, para o artista, esta invasão, apropriação total do lugar onde ele apresenta a sua obra.

Se para J-M Poinsot, o caso de Daniel Buren deve ficar na memória, é sobretudo por tudo o que ele representa em termos de reflexão critica sobre as relações entre os artistas, os espaços de arte, e finalmente sobre o papel do curador como mediador dessas diversas interações,  pois como J-M Poinsot o explica: “ Á medida que os artistas passaram a conceber ou construir obras de materialidade intermitente como forma de crítica ao mercado e aos museus, eles passaram das convenções ligadas à materialidade da obra de arte para um novo sistema de memória baseado em uma nova fé e na comunidade.”  Este novo sistema, baseado numa visão da arte como proposta, demonstra que a estética é sempre relacional e interativa e que é da responsabilidade do artista ficar atento a toda rede de sentidos (direções e significações) na qual a sua criação esta se apresentando.

No mesmo museu Guggenheim, o artista Matthew Barney parece ter baseado todo o seu trabalho nesta mesma lógica interativa e integrativa. Em 2003, ele apresenta The Cremaster Cycle e filma The Order investindo o espaço em todos os sentidos. A partir deste outro exemplo, a reflexão sobre as interações estéticas chega a um novo patamar: a invasão. Artista hiper-ativo e super-agente, Matthew Barney levou a reflexão de Daniel Buren ao seu extremo: a ocupação artística total dos andares do Guggenheim para a criação in situ de uma única obra, a sua, apropriando-se assim, na sua arte total e totalizante, do espaço do museu.

(por Stéphane Malysse)

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Bibliografia
Goffman, Erving, Les rites d´interaction, Editions de minuit, Paris, 1974.
Kaufman, Jean-Claude, Ego: pour une sociologie de l´individu, Nathan, Paris, 2000
Le Breton, David, L´interactionisme symbolique, Puf, Paris, 2004

www.cremaster.net
http://opuscorpus.incubadora.fapesp.br