Seminário Reconstrução - Conferência 6

Relato da Conferência “Arte e Mudança Social”, proferida por Minerva Cuevas, em 10 de junho de 2006

O trabalho de Minerva Cuevas encontra-se numa intersecção delicada entre vida e arte. De certa maneira, ele aposta no esfacelamento dessa fronteira, ou na irrelevância dessa discussão, tão cara às experimentações das vanguardas artísticas do século XX e ainda hoje objeto de investigação de projetos curatoriais, reflexões de críticos e estudiosos. Ao inverter a lógica de apresentação programada para sua fala no seminário Reconstrução, terceiro dos encontros preparatórios a 27ª Bienal, e iniciar pela apresentação dos seus trabalhos de intervenção social, a artista mexicana pôde demonstrar como compreende o significado da arte hoje e do trabalho do artista.

Desde as primeiras imagens apresentadas, tornou-se claro que, de maneira coerente e fundamentada, o trabalho de Cuevas reivindica a arte apenas como um dos meios, ou plataformas, de ativação de um “experimento social”. Projetos como MVC (Mejor Vida Corp.) e ações como a distribuição, no México, de cartazes com slogans Para que inferno se temos a Pátria, ou em Havana, Cuba, Nada com excesso, tudo com medida, podem ser entendidos como estratégias de intervenção política e ativismo, que orbitam no registro da desobediência civil e ações anti-globalização, tanto do ponto de vista da “mensagem” veiculada quanto de sua estética formal e dos suportes (cartazes, stickers, lambe-lambe, Internet).

Os “produtos”, “serviços” e “campanhas”[1] de Mejor Vida Corp., projeto de longa duração constituído por ações no real e virtuais[2], são pensados como forma de intervenção pública no contexto social da cidade do México. Distribuição de bilhetes de metrô, alteração de códigos de barra para a redução de preços de alimentos no supermercado, cartas de recomendação para pessoas procurando emprego e confecção de carteirinhas de estudantes falsificadas podem ser entendidos como mecanismos de um novo tipo de terrorismo social, ou talvez de terrorismo de consumo, um “experimento político e social conduzido na arena da vida cotidiana”[3], que visa opor-se às noções de mercantilização e lucro.

Mejor Vida Corp. procura também (pelo menos em seu manifesto, não sabemos se em sua recepção é bem sucedido neste aspecto) marcar uma distância com relação à caridade e à filantropia, afirmando não procurar “dispensar ajuda ou soluções para os problemas do dia-a-dia”, mas buscar, e nisso se apropria das ferramentas e procedimentos das ciências sociais, “analisar problemáticas específicas em diversos contextos sociais e econômicos dentro do sistema capitalista”, tendo como alvo seus “monstros corporativos e institucionais”. Mejor Vida Corp quer ativar “a prática da dádiva” (outra questão cara às ciências sociais, sobretudo à etnologia) como condição inicial para a articulação de um novo tipo de troca, não mais mercantil, mas sim “humana, social e não-comercial”. Pensado como um experimento lúdico-engajado, a organização se define como “uma corporação não lucrativa no “negócio demiúrgico da rebelião”.

Encontramo-nos com os dois pés no terreno das ciências sociais, entretanto, o campo escolhido para a atuação desse projeto é o da arte contemporânea, mas por qual razão? A precisa fala de Cuevas, que se seguiu à apresentação dos trabalhos, tentou colocar os termos dessa questão, afirmando: “os artistas, como atores culturais, podem colher informações sobre a sociedade, que forma a audiência de uma obra de arte ou onde esse processo se dá. Em geral, o desenvolvimento da ciência social torna possível coletar e analisar informações sobre condições sociais e atitudes, necessárias para identificar o estado inicial de uma sociedade antes de qualquer tentativa de responder a ela de maneira criativa ou política.”

O artista é o pesquisador que colhe dados na sociedade e os devolve de maneira a intervir diretamente no processo social, mas essa intervenção não se dá de maneira orientada ou planejada do começo ao fim. Procura lidar com a apropriação e resposta do público a que se dirige. É o que nos explicou Cuevas, ao apresentar o caso dos cartazes em Cuba, que ora foram rechaçados, ora assimilados, oscilando entre uma interpretação da realidade da vida econômica – a limitação, a escassez – ou por vezes entendidos como um “mandamento” moral comunista a ser seguido ainda, apesar de todas as dificuldades do regime.

De maneira similar é o que aconteceu também à intervenção feita na marca de uma das mais famosas águas minerais francesas, “Évian,eau minerale naturelle”, resultante no cartaz “Égalité, une condition naturelle”, em um trabalho para o Palais de Tokyo, em Paris. O intuito de Cuevas em operar no cartaz com o imaginário revolucionário (o logo é originalmente tricolor e a frase reescrita evoca os princípios jusnaturalistas da Revolução Francesa e da Declaração Universal dos Direitos do Homem), ofertado gratuitamente nas dependências do palácio expositivo, resultou em sua posterior apropriação por uma manifestação contra a direita francesa, reproduzido e distribuído pelos manifestantes.

Ao contrário de muitos outros artistas e coletivos artísticos que costumam apresentar seus trabalhos na forma de documentação de suas ações, Cuevas afirmou categoricamente recusar a idéia de apresentar seu trabalho sob esta forma. Ironizando, afirmou que fará documentação “só quando morrer”, contrariando assim outra prática tão em voga, a arquivística, em bienais e mostras que têm procurado atestar a morte do “objeto” artístico e a apologia do “processo” e sua conseqüente documentação.

Deste modo, podemos nos perguntar no que, para a artista, reside o caráter artístico de seu trabalho? No cenário da arte contemporânea, Cuevas tem o intuito que seu trabalho confronte a demanda “de ser racionalizado, categorizado e localizado em um tempo e espaço precisos.” Foi assim que um mesmo trabalho, a investigação das práticas antiéticas da empresa Mc Donald’s, teve resultados diferentes em contextos diferentes. Na França a ação constituiu numa performance na qual um ator vestido de Ronald Mc Donald convidava os passantes a entrar em um dos restaurantes da cadeia, ao mesmo tempo em que dava informações a respeito da produção de alimentos comercializados pela empresa, a situação dos direitos trabalhistas dentro dela seus gastos com propaganda entre outros. O gerente daquela unidade não pode fazer nada, pois não havia argumento legal, na situação francesa, que pudesse amparar uma interrupção da ação. Na Noruega, ao contrário, a mesma ação foi feita, só que num contexto já insuflado por uma manifestação prévia que não se relacionava a essa ação, e o resultado foi a prisão do ator vestido de Ronald Mc Donald por quatro horas, um efeito considerado pela artista interessante e bem sucedido.

Embora, no trabalho “Sobre Razão e Emoção”, apresentado na Bienal de Sidney, tenha sido dada ênfase à denuncia política e a ‘”categorização” de seu trabalho se dê, talvez, de maneira rápida demais. Essa ação parece ter-se restringido à crítica ao uso político da indústria aborígine de peles de canguru (a caça ao canguru é permitida na Austrália como forma de existência das populações aborígines, nenhum político ousa questionar essa permissão, apesar das campanhas dos ecologistas, para não perder os votos dessas comunidades). Reduzindo à mera ilustração a relação proposta entre a marca e a estética da empresa compradora desse produto para fabricação de chuteiras de futebol (a Adidas) e a questão a ser denunciada. O jogo irônico/ denunciador com o nome do produto da empresa alemã, Predator, e as frases no espaço expositivo “Animais selvagens nunca matam por esporte”, “A grandeza de uma nação e seu progresso moral podem ser julgados pelo modo como trata seus animais” parecem confinar o trabalho artístico a uma estratégia de ilustração, que paradoxalmente só funciona quando conhecemos e de certa maneira, somos tocados, pelo apelo à marca (no caso, o trevo da Adidas).

A busca por efeitos concretos e o uso político da liberdade artística também está presente (com mais força) em um trabalho apresentado em Leaps of Faith[5], em que manipulou o mapa de Nicóssia, capital de Chipre. O trabalho na cidade, dividida desde a ocupação do norte da ilha pela Turquia em 1974 e a conseqüente repartição do território entre gregos e turcos (República do Chipre e República Turca do Norte de Chipre, reconhecida somente pela Turquia), resultou na produção de um mapa proibido e inexistente, das duas cidades unidas, e de um novo símbolo, a fusão da pomba (grega) e das três janelas (turca), utilizando-se das cores gregas, azul e branco, e turcas, vermelho e branco. Uma ação ilegal, que burlou a advertência expressa dos dois governos de não trabalhar nem com os mapas nem com as bandeiras. Como artista, Cuevas acredita na possibilidade exercer um tipo de liberdade exclusiva ao status artístico, vendo-se liberada de responder politicamente a atos como esse e portanto, podendo intervir em situações onde outros indivíduos não teriam a mesma oportunidade.

Minerva Cuevas advoga uma posição clara: o seu trabalho não é uma elaboração artística do real mas uma intervenção direta na realidade que pode utilizar estratégias artísticas de inserção no real. Deste modo, distancia-se das operações das vanguardas históricas, que muito freqüentemente servem de termo de comparação em diversas abordagens críticas. Seu objetivo não é questionar o sistema das artes, nem o estatuto das obras de arte, mas talvez utilizar-se dessa precedência do estético na sociedade do espetáculo para fundar uma outra forma de política. Dito de outra forma, seu intuito não é destruir a linguagem das instituições artísticas, mas atacar a linguagem das corporações e do sistema capitalista, utilizando-se dessa própria linguagem e de sua aderência ao real pela espetacularização.

Em entrevista a Hans Ulrich Obrist, Minerva afirmou “pegar elementos da cidade e fazer uma obra de arte não é o mesmo que trabalhar com a cidade em termos sociais”[6]. É nesta perpectiva que a recepção crítica do seu trabaho se dá, por exemplo, na França. Jerôme Sans, um dos diretores do Palais de Tokyo, afirma no texto de apresentação da exposição Hardcore “não se trata para eles de produzir simplesmente uma forma ou causar efeito, mas ser um fato do real, a hipérbole da brecha deixada vazia pela mídia, pelo social ou pelo político. A obra torna-se uma matéria contra a qual reagir, interrogar, mais do que contemplar.”

Para Cuevas as práticas, sejam artísticas ou ativistas, isto é, políticas, devem ser entendidas em termos éticos e, dessa perspectiva, elas não se separam. Ambas têm como tarefa geral mudança social, pois a cada indivíduo cabe o imperativo de analisar seu ambiente e avaliar formas e meios de viver como parte dele e, deste modo, tornar-se um criador. Esfacela-se, assim, toda e qualquer fronteira entre arte e política.


(Por Fernanda Pitta)

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Notas:

1. Cuevas faz referência explícita à nomenclatura corporativa, assumindo-a voluntária e propositalmente no processo.

2. http://www.irational.org/mvc/english.html

3. http://www.irational.org/minerva/cuevas_interface-EN.pdf

4. Apesar de afirmar que “a cena da arte contemporânea não constitui o único eixo de existência da MVC, é apenas uma diferente plataforma no qual o projeto é ativado”. CUEVAS, Minerva: “For a human interface – Mejor Vida Corp.” http://www.irational.org/minerva/cuevas_interface-EN.pdf

5. Nicóssia, Chipre, 2005.

6. http://amsterdam.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0107/msg00160.html

7. http://palaisdetokyo.com/hardcore/texte/edito_french.html