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Relato dos Seminários da 27ª Bienal

Relato sobre os quatro primeiro seminários

Qual o significado e o papel dos Seminários Internacionais organizados pela curadoria da Bienal de São Paulo ao propor confrontar o caráter efêmero das grandes mostras de arte através de uma série de debates relacionados ao “viver junto”, tema da 27ª Bienal inspirado nas palestras proferidas por Roland Barthes no Collège de France entre 1976 e 1977, e de uma exposição pautada nos conceitos do Programa Ambiental de Hélio Oiticica (Construção e Programa para a Vida), sem desconsiderar, de um lado, a crescente espetacularização ou midiatização das relações sociais, e, de outro, as tensões e os conflitos deflagrados no cenário geopolítico mundial? A resposta é incerta: os seminários ainda estão em curso e a mostra nem foi aberta, e, mais do que isso, o próprio formato escolhido pela equipe curatorial parece ser uma aposta avessa a conclusões simples e definitivas. Sendo assim, este “Relato” é necessariamente incompleto, não pretendendo traçar um panorama ou síntese dos temas abordados pelos encontros anteriores (Marcel 30, Arquitetura, Reconstrução e Vida Coletiva), e sim recuperar algumas passagens instigantes trazidas à tona pelas conferências que, a despeito das especificidades dos temas abordados, discutiram as formas contemporâneas de construção e reconstrução de comunidades, de espaços e de sensibilidades comuns; enfim, as relações e trocas (im)possíveis.


Não há como não mencionar que a questão formulada pela curadora geral da mostra e organizadora do Seminário Vida Coletiva, Lisette Lagnado, acerca da impotência da arte diante das truculências do poder calou a plateia em sinal de repúdio à violência perpetrada em situações de conflito, nas quais a negociação política e o diálogo não alcançam a eficácia esperada. Se a arte não deve se eximir dessa indagação como nenhuma outra instância da vida deve, tampouco pode oferecer isoladamente a solução. A própria curadora ampliou sua dúvida, perguntando pela viabilidade do estabelecimento de uma ética de coabitação respaldada na procura da justa distância entre indivíduos que pertencem a grupos diferentes, ou como ressaltou Catherine David, na conferência "Novos meios de expressão a partir dos filmes de Pedro Costa”, citando Godard, “não é possível ver quando temos medo de perder o nosso lugar”. É nesse sentido que David recorreu ao conceito de "distância ativa", de Jacques Rancière, para distinguir, de um lado, os trabalhos artísticos que operam o deslocamento do indivíduo de seu próprio lugar a fim de colocá-lo a certa distância de seu “outro”, incitando a convivência, a construção e a partilha de um espaço comum, e, de outro, determinadas obras pseudo-críticas, bem intencionadas porém ingênuas, que terminam por reafirmar o lugar do sujeito, confinando-o sempre em sua própria posição.


A pergunta pela ingenuidade de uma arte pretensamente crítica, “que se quer política ou engajada”, no dizer de Stéphane Huchet, também esteve presente no debate travado no Seminário Reconstrução entre Minerva Cuervas, Viktor Misiano, Tony Chakar e Stéphane Huchet, mediado por Cristina Freire, organizadora do encontro. Diante de uma arte que se propõe a intervir diretamente nas relações sociais, tal como a obra de Cuervas, Huchet rememorou uma fala muito pertinente de Kosuth, a saber: “no interior da gramática social a pontuação começa com a arte”. Noutros termos, ou a arte faz uso de seus “próprios meios” para “operar sua própria política”, ou, ao lançar-se em intervenções na realidade corre o risco de se assemelhar ao ativismo, independentemente da complexidade da proposta ou dos resultados obtidos. Ora, a tensão é inerente à política e à arte, e a tentativa de preencher o déficit da política institucionalizada com a arte tende, no mais das vezes, a restringi-la ao assistencialismo, diminuindo o potencial crítico que lhe é inerente.


Entende-se, desse modo, que as relações entre indivíduo (artista) e comunidade são mediadas pela linguagem (imagem) e, assim, a distância ativa (o viver junto) é construída na produção do próprio trabalho. Provavelmente essa é a razão da arte ser renitentemente convocada a se tornar um símbolo do trabalho. Aliás, não à toa, Jacques Rancière é, ao lado de Barthes, um pensador muito citado nas conferências, uma vez que reivindica com clareza a imbricação da arte no político [1], ou seja, na partilha da experiência comum. Nas suas palavras, “ela (a arte) antecipa o fim – a supressão das oposições (entre os que participam ou não da experiência comum) – que o trabalho ainda não está em condições de conquistar por e para si mesmo” [2] . E isso ocorre por meio dos processos produtivos que lhe são intrínsecos, o fabricar e o tornar visível, que definem novas relações entre o fazer e o ver. As práticas artísticas são, portanto, “maneiras de fazer que intervêm na distribuição geral das maneiras de ser e formas de visibilidade” [3], posto realizarem em si mesmas o princípio do trabalho, qual seja, “a transformação da matéria sensível em apresentação a si da comunidade” [4].


Pois é justamente via Rancière que Lisette Lagnado relacionou Hélio Oiticica, Marcel Broodthaers e o “viver junto” de Barthes, na conferência “A Instituição artística sob suspeita”, em uma menção a Schwitters: "são procedimentos que constroem uma mesma superfície da impropriedade, uma superfície do comunismo artístico que pode casar-se com o outro ou recusá-lo em nome da sensibilidade comum que está sendo construída". No entanto, a importância da construção de um espaço comum é algo que aproxima não somente Oiticica e Broodthaers, como também outros artistas que produziram obras significativas nos anos sessenta e setenta, dentre eles Gordon Matta-Clark e Dan Graham. Importa notar, nesse sentido, que muitos artistas dessa época conviveram e partilharam, algumas vezes conflituosamente, um mesmo espaço, fosse ele institucionalizado ou “alternativo”, bastando lembrar, por exemplo, das disputas vivenciadas no Soho ou da controversa retirada das obras de Daniel Buren do Guggenheim.


Deve-se ressaltar ainda que, em virtude do panorama geopolítico imposto pela Guerra Fria, contextos muito específicos marcaram as produções artísticas dessas décadas e das posteriores no Ocidente e no Oriente, conforme esclareceu o crítico e curador russo Viktor Misiano, na conferência "Criatividade coletiva: um case da Europa Oriental”. Ao que pareceu, as comunidades foram na Europa Oriental um substituto para o espaço institucionalizado, inexistente ou operado pelo Estado autoritário, ou segundo disse, “as comunidades confidenciais se constituíam na única forma de contato real e direto entre artistas e ativistas, e de legitimação da arte como um fenômeno social", já que “nos países pós-comunistas, imersos em crises econômicas e sociais, as próprias instituições começaram a fugir dos artistas, desaparecendo ou perdendo sua capacidade operacional”. Eis a diferença mais aguda apontada em relação ao Ocidente, onde a idéia de comunidade surgiu como uma alternativa que dialogava com o espaço institucionalizado, sentido esse presente no trabalho de Buren que, aliás, atravessou literalmente o espaço comum e o espaço institucionalizado. Pois nas palavras de Misiano, “no mundo ocidental, os artistas associados à noção de estética relacional fugiram da instituição pública e criaram comunidades relacionais dentro do sistema da arte, atuando como 'parasitas em off' a estes espaços, valendo-se de seus recursos e continuando a receber a legitimação destes”. É nesse ponto, deixando no ar essas considerações de Misiano, que vale a pena interromper esse Relato. Caberá, portanto, à próxima rodada de palestras que logo se inicia, o Seminário Trocas organizado pela co-curadora Rosa Martinez, e à aguardada presença de Nicolas Bourriaud, autor que difundiu a noção de estética relacional, a proposição de novas perguntas e, esperamos, algumas respostas.


Liliane Benetti e Vinicius Spricigo

 



NOTAS:

Para Rancière, “a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo”. Cf. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental org; Ed. 34, 2005, p.16-17.

Idem, p. 67.

Idem, p. 17.

Idem, p. 67.