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Brasil: os rios e a geografia “à margem da história”?

por Carlos Eduardo Collet Marino


hinterlândia   
De modo a introduzir a temática da exposição e a seqüência de debates integrantes do seminário, antes do início da mesa propriamente dita o arquiteto e urbanista Guilherme Wisnik, curador da exposição, se debruçou brevemente sobre o eixo central das discussões: os rios.

A visão dos rios como fundamental elo territorial de abrangência continental é talvez a mais marcante dentre as idéias difundidas em sua introdução. É suscitada aí a compreensão do desenho dos rios e de sua existência como elementos de um sistema hídrico complexo, revelando sua importância como vínculo e subsistema dentro de uma rede de cidades americanas que de alguma forma viabilizam sua existência como tais. Buscou-se ainda lançar um olhar renovado para a dimensão da costa interiorana, tida usualmente em detrimento à costa atlântica no imaginário nacional. Exatamente nesse sentido o arquiteto retoma os significados possíveis para a palavra margem destacando entre eles, o da terceira margem de João Guimarães Rosa, e ainda o da costumeira expressão dar margem, que conteriam, intrínsecos a suas designações, um conteúdo em potencial, ou ainda, a idéia de acréscimo, superação. 

O discurso finalmente apontou para um ponto espacializado no território nacional, a cidade de Manaus, situada à margem do rio Negro na bacia amazônica. A partir de uma leitura bastante imediata do desenho da cidade, dos relatos de Euclides da Cunha e do trabalho de Eduardo Viveiros de Castro, o local foi reconhecido como possível epicentro do mundo, pela confluência de inúmeras razões das quais destaca-se aqui a história da construção do lugar que será de maneira direta ou indireta abordadas pelos componentes da mesa.

O debate provido pelas falas da mesa será brevemente comentado a seguir, não me atenho, porém, à ordem cronológica das falas, mas procuro estabelecer uma linha de raciocínio entre elas.
 

vasos comunicantes
Em sua fala - reflexo de sua pesquisa acadêmica sobre a obra de Euclides da Cunha – o historiador Francisco Foot Hardmann, destacou uma faceta menos comentada do autor, não se atendo, portanto, a suas duas grandes obras. A fala se desenvolveu em grande parte acerca de sua produção lírica, que segundo Foot seria a linguagem adotada por Euclides como síntese entre a arte e a ciência.

Essa noção de síntese, tão cara a Euclides na virada do século, seria então um reflexo da crise de representação vivida pelo autor, segundo o qual a indeterminação da história e da geografia, vivenciada principalmente ao longo de sua expedição ao alto Purus, território naquele momento[1] ainda em formação e descobrimento, reflete em uma incapacidade de se representar aquele lugar. “À margem da História” surge então composto por um conjunto de ensaios, dos quais a primeira parte, denominada Terra sem História (Amazônia), se dedica aos relatos desenvolvidos ao longo da expedição. Foot destaca, contudo, justamente o último ensaio – Estrelas indecifráveis - onde a utilização de símbolos e de uma linguagem mais poética seria capaz de satisfazer esse drama da representação. A fala se concentra então diretamente sobre a produção lírica de Euclides, Foot tateia uma série de poemas escritos pelo autor, para finalmente retornar à sua hipótese inicial de que ela seria então uma linguagem síntese, capaz de reunir o conhecimento técnico e o saber artístico.

A fala, a princípio destoante das outras e mesmo do tema do seminário, se contextualiza, pois, dentro da busca da dimensão artística do conhecimento técnico, ou, como apontaria mais tarde Paulo Mendes da Rocha, na crença de que a visão artística é marcada por aquilo que vai além do conhecimento específico. 


gente-peixe
O etnólogo Renato Sztutman indiretamente resvala na mesma questão ao optar por tratar do surgimento das civilizações, em especial daquelas originárias da rede de cidades do norte do Brasil. Isso porque, frente ao quase completo desconhecimento e ainda da ignorância ao redor do tema, herança talvez de nosso passado colonial, a complexidade sociopolítica das cidades do passado amazônico permanece de certa forma à margem da história. Diante disso o pesquisador desenvolveu sua fala ao redor dos mitos amazônicos, ou da mitologia fluvial como de fato denomina, evocando uma linguagem mais próxima daquela das próprias civilizações estudadas de maneira a evitar um olhar estrangeiro carregado de anacronismos  e significados próprios, ou ainda de um “conhecimento técnico” falseador.  

A leitura proposta é constantemente referenciada pelo pensamento de Claude Lévi-Strauss, e se inicia a partir da hipótese das margens dos rios como berços das antigas civilizações citando casos típicos como as bordas do Tigre, Eufrates, Nilo e reitera que na leitura dos mitos, em suas incontáveis versões, está contida uma reflexão enviesada sobre os aspectos mais comuns à vida.

A água e os fluxos contínuos dos rios emergem como pontos centrais para os quais converge parte dos mitos e ritos dessas antigas civilizações anfíbias, além de funcionarem como eixos de comunicação entre as diversas aldeias. A mitologia fluvial se vale então especificamente dessas imagens e de todas as coisas concretas de seu mundo para ilustrar justamente a origem de todas as coisas, de forma, como destacou Renato,  sempre a apontar sua complementaridade. Dentre os mitos brevemente expostos, destacou-se aquele da Viagem da Cobra-canoa, que, naturalmente, conta sobre a origem de todas as raças e animais, e que coexiste em quase toda a região do alto Rio Negro.[2]

Por fim Renato conclui caracterizando a constituição das civilizações rios acima, como emergentes “do caldo transformacional dos rios”, reiterando tudo o que, por meio das passagens mitológicas e de sua hipótese inicial, é possível apreender de seu discurso. Com isso de alguma forma ele subverte a rede de relações usualmente estabelecida entre o homem e o espaço habitado.


a natureza em si é um desastre
De maneira complementar a esse raciocínio se desenrolou a fala do arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Voltado mais à questão da construção do território habitável, ponto fundamental em sua prática, Mendes da Rocha falou sobre as condições geográficas e naturais, não tidas como dádivas mas sim como o espaço primordial para a instalação do homem, condição natural de nossa presença no universo. A compreensão desse ponto, em decorrência de uma formação de uma consciência popular é, segundo ele, capaz de promover uma nova arquitetura.

Vale ressaltar, contudo, que é explícita sua condição de arquiteto, e, como já dito, a necessidade de se desatar o nó entre as artes - e por extensão entre a arquitetura - e a ciência. Esse fato ilustrado pelo processo de constituição da faculdade de arquitetura e urbanismo da universidade de são Paulo – surgida a partir da conjunção do pensamento das escolas de engenharia, filosofia e belas artes, mostra-se bastante profícuo no sentido de se construir uma nova linguagem capaz de representar um novo amparo à imprevisibilidade da vida.[3]

Ideais de pertencimento, temporalidade, transformação estão aí, na construção desses Lugares, assim como nos mitos descritos por Renato extensivamente presentes, todavia a essência presente no raciocínio levantado pelos dois é aquela que prevê o surgimento das coisas a partir das coisas em si mesmas. Ou seja, segundo Paulo, pensa-se as cidades como constructo humano que já contém a natureza como projeto premeditado em transformação.[4] Exemplos disso e de novos laços possíveis entre o homem e o território por ele construído, foram então apresentados por meio de três diferentes projetos elaborados pelo arquiteto – A cidade Tietê, a baía de Vitória, e a baía de Montevidéu


algumas ressalvas
Ao fim das falas tentou-se estabelecer uma discussão entre os ouvintes e os palestrantes; contudo diante à escassez de tempo e à dinâmica estabelecida pela organização do seminário, segundo a qual as perguntas deveriam ser realizadas por escrito, enfraqueceu-se o debate. Perguntas relevantes em especial uma que evocava a fragilidade da posição central do arquiteto e por extensão dos artistas no processo direto de enfrentamento a questões sócio-espaciais, ficaram sem resposta também pela articulação bastante confusa com outras perguntas de cunho mais genérico.

A continuação da discussão se deu então de maneira mais informal durante a inauguração da exposição que integra o conteúdo exposto no seminário.


[1] A expedição da qual Euclides faz parte se realiza durante o ano de 1905, e tem como trajeto o curso do alto rio Purus, localizada em grande parte no estado do Acre e que se estende ao território peruano.
[2] Cabe aqui relatar o mito: a viagem parte de um espaço primordial – o Lago de Leite -, subindo por um rio subterrâneo até chegar a uma região de cabeceiras. O mito fala da origem do cosmos e das diferenças entre humanos e animais, entre índios e brancos e entre os diferentes povos rio-negrinos. A cobra-canoa, figura do contínuo (...), contém em seu interior todas as possibilidades de realização dos seres e das coisas.
[3] da ROCHA, A cidade para todos in Paulo Mendes Paulo Mendes Da Rocha: Projetos 1957-1999.
[4] da ROCHA, Baía de Vitória in Paulo Mendes Paulo Mendes Da Rocha: Projetos 1957-1999


sobre o autor
Carlos Eduardo Collet Marino
Estudante de arquitetura e urbanismo da FAUUSP, cursando o quarto ano. Durante o mês de julho de 2009 realizou uma viagem pela bacia do rio Amazonas, percorrendo o trajeto de Manaus a Belém, passando por Macapá e Vila Serra do Navio e subindo também o rio Tapajós com destino à Fordlândia. A viagem se contextualizou dentro de uma busca pela compreensão da rede de cidades ao longo dos rios e da dimensão desses no desenho do território. Nela foi possível um aprofundamento do pesquisador no pensamento de Euclides da Cunha e na obra literária de Milton Hatoum.