Aspectos político-educacionais das práticas artísticas, Cayo Honorato

 

Comunicação de Cayo Honorato no Segundo Simpósio Internacional de Arte Contemporânea

[resumo] As recentes edições de três importantes exposições de arte contemporânea parecem sinalizar uma redefinição do estatuto da mediação educacional nestas situações. Este artigo discute se essa suposta virada educacional corresponde ao influxo das práticas artísticas contemporâneas, como condição para legitimar o caráter crítico da mediação.

Palavras-chave: mediação educacional, arte contemporânea, política.

 

[abstract] The recent editions of three important contemporary art exhibitions seem to sign a redefinition of educational mediation status within these situations. This paper discusses if such assumed educational turning corresponds to the inner flow of contemporary artistic practices, as a condition to legitimise the critical character of mediation.

Key-words: educational mediation, contemporary art, politics.

 

 

As recentes edições de três importantes exposições de arte contemporânea (6ª Bienal do Mercosul, Documenta 12 e Manifesta 6) parecem sinalizar uma redefinição do estatuto da mediação educacional nessas situações. Nelas, a mediação integra o projeto curatorial desde o seu início, portanto, não mais como um serviço agregado à concepção da exposição, tornando-se, em um ou outro caso e de certa maneira, o próprio projeto curatorial. Essa suposta virada educacional corresponderia a uma mudança nas práticas artísticas?

Os programas de mediação certamente assumiram um lugar destacado na economia das exposições de arte. Porém, ao mesmo tempo em que seriam justificados pela função de ampliar o uso social da produção cultural, através da partilha de um tipo de experiência que a arte promove, eles têm tudo pra ser um instrumento de reprodução da lógica corporativa e das exclusividades que ela determina. A contradição entre a cooptação da mediação educacional e a sua efetividade política parece neutralizada quando a mediação, a título de inclusão, somente confirma a posição de cada um dos termos que ela relaciona: de um lado, o artista que pensa e produz, e de outro, o público que aprende e consome. O acirramento dessa contradição, ao contrário de sua neutralização, implica a negação das exclusividades, a redistribuição por dentro dos poderes em conflito no sistema da arte. Parece-me que um fundamento dessa redistribuição estaria justamente na reciprocidade entre as posições do artista e do público, na possibilidade de elas se potencializarem reciprocamente, como condição para o reconhecimento do que seja arte. Afinal, a exclusividade é arbitrária, logo, a afirmação de algo como arte, desse ponto de vista, carece de legitimidade.

Encontramos em Walter Benjamin (1994, p. 132.) um paradigma vigoroso para a extensão do uso social da produção cultural: o caráter modelar da produção deve ensinar outros produtores a produzirem e colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito, que também seja capaz de conduzir consumidores à esfera da produção. Em seu tempo, Benjamin parece exigir à produção cultural uma dimensão político-educacional. Nesse caso, além de levar em conta a capacidade do público de ser artista ou de colaborar com o artista, a mediação educacional poderia, com o público, questionar o que está posto como arte, se isso repõe a exclusividade do artista, constituindo-se em um momento da crítica. Talvez alguém pudesse objetar que a mediação nesses termos seria restritiva de um tipo de arte, menos preocupada com essa "repercussão" pública. Por isso, para que a crítica pela mediação fosse legítima, é preciso examinar se ela se justifica no interior das práticas artísticas.

É claro, não se trata de decretar a indiferença entre o artista, o mediador e o público. Porém, a esta altura, o artista profissional, ou melhor, o artista cujo trabalho pudesse se inscrever significativamente na cultura, formalizando conjunturalmente um valor instituinte, não é mais aquele que apenas faz obras de arte, mas sim uma espécie de trabalhador cultural, que, seguindo Ricardo Basbaum (2001, p. 35.), produz um trânsito entre posições diversas, combinado à produção de um espaço particular de problemas. Tampouco, esse estatuto deve dispensar o artista do exercício de uma linguagem específica e da determinação de uma intenção teórica para esta linguagem – os dois alicerces, cuja relação dialética, segundo José Resende (2005, p. 26.), constituiria a formação do artista. O problema é que esses alicerces não são mais suficientes, visto que o "específico" da arte, desde o advento do que Jacques Rancière (2005b, p. 32 e ss.) denomina de regime estético, perdeu qualquer preeminência objetiva (empírica ou pragmática), identificando-se ao processo de autoformação da vida – o que remonta ao começo da modernidade, no início do século XIX, mas se torna mais nítido a partir dos anos 1960, ainda que o sistema objetual (da arte como coisa) não tenha deixado de reincidir. Sem dúvida, como Resende reconheceu, esse é o problema da autonomia da arte, ou melhor, do posicionamento real do artista na sociedade, da organização pela arte de um processo cultural abrangente, da constituição de um debate em um espaço público, para além ou aquém da arte como processo investigativo sensível e intelectual.

A percepção quase irônica de Allan Kaprow (2003, p. 49 e 55-56.), em um texto de 1964, diante do agravamento das incertezas a respeito dos modos de identificação da arte, combinado ao crescente público de iniciantes nas exposições, nos parece exemplar: "despojados também de ideais imaginários, (...) [os artistas] devem trabalhar na direção de uma arte que vêem funcionando não para a igreja, o estado ou o indivíduo, mas em um complexo social sutil, cujos termos eles estão apenas começando a entender. (...) Parece evidente que os dias em que os negociantes e críticos lançavam os artistas em órbita, enquanto eles bancavam o gênio incontaminado, estão prestes a terminar" – sabemos que esses dias permanecem de modo antiquado. Nestas circunstâncias, parece-nos incontornável conceber o artista como um político, porém, entre duas posições: como quem meramente planeja estratégias de convencimento, ao qual reservamos a denominação de profissional, ou como um emancipador – nenhuma delas assegurada a priori. A diferença de um pro outro é que as "escolhas" do artista profissional estão limitadas a demandas externas (o imperativo da exposição, a funcionalização da arte no processo econômico-produtivo, o mercado); portanto, seu trabalho é mimético e seu discurso é plástico; sua função é fornecer à lógica institucional corporativa a aparente vivacidade de que ela sobrevive. De resto, pensando na política como condição da arte, se há uma forma estética, irredutivelmente, na partilha de um tipo de experiência como arte, então, o artista sempre concebe um público, restritivamente ou de modo estruturante. Está claro que o público não é uma demanda externa, mas um critério de identificação da arte.

É desnecessário dizer que a politização da arte não corresponde estritamente à política da representação do outro social, menos ainda à política como tema da arte – do que já nos alertou Benjamin, em O autor como produtor. Antes de tudo, e do que a mediação educacional também deveria se ocupar sem simplesmente pressupor a reciprocidade entre o artista e o público, a arte que está para todos não é um conteúdo palatável, uma aspiração à classe média ou onde as diferenças se dão as mãos, mas a capacidade, ainda que vacilante, de cada um buscar e assumir a condução de seu próprio destino no mundo, relacionando-se às demais práticas sociais; é a tomada de consciência num fazer (que é também sentir, pensar e dizer) da capacidade crítica e criadora de cada um, em vista de um sentido público da existência individual. O problema é que esse engajamento subjetivo, quando assume um caráter modelar, é freqüentemente desqualificado como moralista ou autoritário, portanto, ele precisa constituir um espaço circunstanciado de negociação, jamais definitivo, que leve em conta a memória de uma universalidade ameaçada (ou transfigurada em globalização). Esse me parece o lugar da mediação.

A propósito de um modelo de sociedade, Rancière escreveu  (2005a, p. 99-104.) que "não se trata de formar grandes pintores, mas homens emancipados, capazes de dizer eu também sou pintor (...). A lição emancipadora do artista (...) é a de que cada um de nós é artista, na medida em que adota dois procedimentos: não se contentar em ser homem de um ofício, mas pretender fazer de todo trabalho um meio de expressão; não se contentar em sentir, mas buscar partilhá-lo". Em função das incertezas a respeito de sua identificação, as práticas artísticas devem buscar modos de legitimação mais diretos, que sinalizam a possível liberdade de que as demais práticas sociais dispõem, através da problematização direta ou indireta das condições que impossibilitam o exercício dessa liberdade. A reciprocidade entre o artista e o público é, portanto, o critério político de identificação da arte – o que não necessariamente contradiz ou esquece dos critérios de qualidade estética. Nesse sentido, o trabalho crítico da mediação educacional é, desde o influxo das práticas artísticas, procurar dispor as condições necessárias a esse tipo de autonomia. Logo, o que está em jogo é a reconstituição de um sentido de autonomia que não é mais o do paradigma estético-formalista, mas o de um paradigma estético-político, portanto, que não seja alheio aos perigos da vida e a um sentido de história.

É importante ressalvar que a politização da arte não pode ser preconizada impunemente, sobretudo em tempos de codificação da arte colaborativa e/ ou contextual. Segundo Hal Foster (1999, p. 171-180 e 184-204.), a política do outro social ou cultural, como paradigma das práticas artísticas contemporâneas, apoiada em pressuposições sobre as quais ela nem sempre reflete muito bem, pode cair na tutela ideológica do outro que talvez ela quisesse emancipar, além de ser apropriada pela lógica institucional corporativa que talvez ela quisesse combater. Essas pressuposições, que localizam a verdade da transformação histórica numa alteridade, justamente, dizem respeito a modos de identificação entre o artista e o outro – que em algum momento corresponde ao público. A ignorância daqueles reveses implica graves equívocos: a redução dessa identificação tão importante à aliança política; o posicionamento do outro com simples exterioridade, distraindo-se da política como contestação imanente; o consumo dos sujeitos históricos antes de eles se tornarem efetivos; a inoculação da crítica e a mera reconfiguração da audiência institucional, entre outros, praticados com maior ou menor conivência. Para Foster, o artista conseqüente deve tentar, primeiro, coordenar a extensão horizontal da cultura – lugar da arte contemporânea – com a profundidade histórica, contra as projeções da civilização como hierarquia e da história como desenvolvimento; e segundo, questionar sua própria autoridade sociológica ou etnográfica, enquadrando-se quando pretende enquadrar o outro, para transpor o estatuto contraditório da alteridade como dada e construída, real e fantasmática – sem que assim todos os reveses sejam eliminados. Quando voltamos os olhos para as práticas artísticas no Brasil, o exame da formação ou da importação dessa política do outro se tornaria ainda mais complicado, se, acompanhando Paulo Arantes (1997, p. 07 e ss.), a nossa sensação arraigada da dialética rarefeita entre o não-ser e o ser-outro, embora eclipsada, talvez ainda não foi elaborada.

Não é possível concluir se a educação é, simplesmente, a bola da vez no sistema de produção das exposições de arte contemporânea ou se, de fato, está em curso uma redefinição do estatuto da mediação educacional, que não somente a promovesse no organograma das instituições, mas sobretudo questionasse o formato e a concepção tradicionais dessas exposições ou da produção de arte para exposições. De todo modo, pensamos que essa suposta virada não deve ser examinada como uma tendência passageira, nem como a sobreposição de uma estrutura normativa ao influxo das práticas artísticas. Por isso, o posicionamento crítico da mediação deve ser simultâneo à sua politização efetiva, em colaboração com as práticas artísticas, como condição da legitimidade de ambas e estratégia de negociação com a lógica corporativa. Enfim, para se enquadrar reflexivamente, a mediação deve tentar se desapoderar das estratégias de convencimento, evitando ampliar ainda mais a distância embrutecedora entre o artista e o público. Fica o que finda, o que nem começou.

 

 

Referências bibliográficas

 

- ARANTES, Paulo. Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo. In: Otília
Arantes & Paulo Arantes. Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 07-66.

- BASBAUM, Ricardo. O artista como curador. In: Catálogo do Panorama de Arte Brasileira. São Paulo: MAM/ SP, 2001, p. 35-40.

- ___. The project; tradução livre. Disponível em: <http://www.nbp.pro.br/projeto.php>. Acesso em 24/08/2007.

- BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: ___. Magia e técnica, arte e politica: ensaios sobre literatura e história da cultura; tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 120-136. (Obras escolhidas, vl. 1)

- FOSTER, Hal. The artist as ethnographer. In: ___. The return of the real. Cambridge, London: MIT Press, 1999, p. 171-204.

- KAPROW, Allan. The artist as a man of the world; tradução livre. In: ___. Essays on the blurring of art and life; edited by Jeff Kelley – expanded edition. Los Angeles, London: University of California Press, 2003, p. 46-58.

- RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual; tradução Lílian do Valle – 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005a.

- ____. A partilha do sensível: estética e política; tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org., Ed. 34, 2005b.

- RESENDE, José. A formação do artista no Brasil. In: Revista Ars. São Paulo: no 5, vl. 03, ECA/ USP, 1º semestre de 2005, p. 23-28.

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