Curadoria como programação do mais alto nível, Gabriel Menotti

 

Comunicação de Gabriel Menotti no Segundo Simpósio Internacional de Arte Contemporânea

Resumo: Partindo do pressuposto que o desenvolvimento de software possa ser considerado uma forma de arte, e levando em consideração como isso afeta todo o sistema artístico, buscamos avaliar de que forma os procedimentos curatoriais se prestam a criação de sentido e valor.

Palavras-chave — Curadoria, programação, visualização de dados, sistema, software.

 

I. Introdução

Muito já foi falado sobre programação algorítmica como forma de criação artística, bem como sobre as diversas maneiras de sistematizar e exibir processos digitais, em execução – a tal ponto que não vemos problemas em aceitar softwares como formas de arte, e redes informáticas como espaços de exposição apropriados.

Ora, já não é difícil aceitar softwares como formas de arte, nem redes informáticas como espaços de exposição apropriados. Hoje em dia, temos ambientes de programação como o Processing, desenvolvido por artistas e voltado para criação de animações a partir de puro código. [1] A Bienal de Whitney, uma das mais tradicionais do mundo, que existe desde 1918 e promove tendências no circuito de arte contemporânea, a partir de 2002 ganhou uma versão exclusivamente na web. [2] E é patente o sucesso de exposições como “Algorithmic Revolution - On the History of Interactive Art”, que busca sublinhar a revolução algorítmica – ou seja, como “processos de tomada-de-decisão algorítmica ganharam importância graças ao uso universal de computadores em todos os campos da cultura”. [3]

Mas, mesmo sob essa perspectiva, não são muitos estudos que se dedicam a avaliar como a existência dessas novas tecnologias afeta todo o sistema artístico, obrigando-nos a repensar práticas e expedientes tradicionais.

As novas mídias alargam o campo potencial para a produção simbólica, alterando seus contornos. Muitas obras em novas mídias, a bem da verdade, não são mais que uma forma de exposição – uma solução eleita para a apresentação de dados. Segundo Lev Manovich, o computador transforma esse tipo de representação “de exceção em norma”. [4]

Agora, este ato de organizar e apresentar objetos selecionados para atingir determinado efeito ou sentido – não se trata de curadoria?

De fato, processos que Manovich aponta como operações fundamentais das novas mídias – seleção e composição [5] – também são as atividades fundamentais do métier do curador. Podemos até dizer que criar software art está mais para organizar uma galeria do que pintar um retrato. Ainda que o resultado caiba numa tela, a programação cria sentido da mesma forma que a operação de curadoria.

Essa analogia pode levar a certos questionamentos sobre a natureza da criação, avaliação e consumo da arte em um ambiente de novas mídias. Em primeiro lugar, uma vez que as operações básicas do trabalho curatorial se tornam familiares como tal, é de se esperar que o papel e a autoridade do curador sejam questionados.

Esse ensaio, entretanto, se desenvolverá em torno de uma hipótese mais positiva: ao assumirmos que o desenvolvimento de softwares possa ser uma forma de arte, temos que convir que também a curadoria de uma exposição está para além do mero procedimento sistêmico, se tratando de uma forma de criação estética em outro nível.

 

II. Semióticas da Programação

A programação de sistemas informáticos pode ser feita de tantas maneiras quantas são as linguagens disponíveis. Obviamente, há ferramentas mais apropriadas para cada caso. Alguns códigos, dedicados, favorecem a criação de algoritmos complexos, embora pequem pela falta de versatilidade. Já outros possuem uma gama de aplicações mais ampla e irrestrita, mas só funcionam mediante a coordenação minuciosa de seus fatores.

Para classificar essas diferentes linguagens de programação, é utilizado um nivelamento que nada tem a ver com a sua eficácia. Os níveis em questão discriminam o grau de abstração e estruturamento de cada código. [6]

Linguagens de nível mais baixo estão mais próximas da ordenação pura do fluxo eletrônico que corre dentro de um computador. Possuem uma tal materialidade que, em situações extremas, chegam a se confundir com o suporte em que estão inscritas. É o caso do ASCII perfurado em fita, por exemplo.

Por outro lado, quanto maior o seu nível, mais distante uma linguagem se encontra do mecanismo informático essencial. As mais desenvolvidas operam por meio de funções e objetos muito bem definidos, que pouco lembram a glossolalia binária da máquina. Na verdade, parecem pretender à imitação do inglês.

Dessa forma, na medida em que ganham em semântica, as linguagens de programação prescindem da sintaxe. Ora, um vocabulário exuberante não precisa ser articulado de maneira tão detalhada quanto um conjunto de dois, dez ou dezesseis termos, para criar o mesmo efeito de sentido. Logo, é mais difícil cometer pequenos deslizes na programação, mas qualquer engano pode ser fatal, e estragar todo o algoritmo. Bjarne Stroustrup, criador do C++, [7] explica isso de uma forma grosseira, mas bem clara: “com C é fácil acertar o próprio pé. Com C++ é mais difícil, mas, quando você acerta, explode toda a perna”. [8]

Podemos até dizer que, conforme se desenvolve, a coleção de comandos deixa de ser alfabeto e se torna banco de dados. O que não significa que, desde os níveis mais baixos, a programação não funcione segundo princípios que podem ser enxergados como seleção e composição.

A bem da verdade, a razão entre os processos de seleção e composição também pode ser usada para caracterizar os diversos níveis de linguagem. Nos mais baixos, o trabalho de composição é determinante: a articulação de duas dúzias de comandos e variáveis. Já nos mais altos, é a seleção que importa: definir, entre os vários objetos disponíveis,

aquele que mais bem serve à função pretendida. [9]

Por isso, de certa forma, linguagens de nível mais alto facilitam a operação da máquina. Com poucos comandos, é possível programar as tarefas mais complicadas. Mas, junto com essa destreza, surge a intransigência. As mesmas estruturas que tornam uma linguagem mais adequada à determinada função restringem sua aplicação em outras.

 

III. Como a Curadoria cria Valor e Sentido

Na medida em que a própria cultura se deixa contaminar por tecnologias numéricas e se transforma em um sistema informático, os diversos níveis de programação se reúnem aos de produção simbólica em uma cadeia epistemológica comum.

Hoje em dia, tanto criação artística quanto produção cultural dependem da articulação ordenada de bancos de dados. Como diz Manovich, podemos encontrar as operações que dominam a manipulação de softwares “funcionando na cultura como um todo”. [10] Assim, da mesma forma que um aplicativo é construído pelo agrupamento de funções, variáveis e objetos, a composição musical pode se dar como mera conjunção de samples, por exemplo.

Grosso modo, a realização de um filme funciona como a programação de uma rotina em assembly. O que muda entre um e outro processo é apenas o nível de estruturação do código utilizado e do sistema simbólico resultante.

Reunimos scripts para criar efeitos visuais; efeitos para criar cenários; cenários para criar uma história; e assim por diante. Embora possa ser realizado transversalmente, através de cada uma dessas etapas, o trabalho de criação costuma se concentrar em apenas uma delas.

Cada sistema serve como banco de dados para aquele que vem logo a seguir, da mesma forma que um ambiente de programação constitui o framework para o de nível imediatamente superior: “computadores são máquinas de processamento. Eles modificam, movem e combinam símbolos em baixos níveis para construir representações em níveis superiores”. [11]

Nesse sentido, o nivelamento de linguagens segundo o seu grau de abstração pode servir como um paradigma fractal, que nos permita inter-relacionar os diversos tipos de criação em mídia digital segundo suas especificidades.

Para tanto, em primeiro lugar, precisamos repensar os limites dessa gradação. Embora o patamar mais baixo continue sendo ocupado pelo mecanismo informático essencial, o mais alto ganha relevo, e se estende para além da língua humana, em direção ao fluxo cultural que a circunscreve.

Quase no limiar desse espectro, encontraremos os processos curatoriais, que sempre operaram por seleção e composição, mas numa razão tão exígua que mal nos permitia considerá-los operação criativa, senão uma simples filtragem.

Mas, ainda que o curador não interfira diretamente com qualquer obra, ele afeta seu valor ao colocá-las em relação umas às outras e ao espaço.  Elegendo e organizando certas obras (bem como deixando outras de fora), ele cria um sistema simbólico que imediatamente se torna o contexto dentro do qual essas obras são apreciadas.

Dessa forma, o valor individual de cada obra é coordenado ao das outras. Mas essa relação só se efetiva como um todo, na trajetória-a-se-realizar do espectador, que o curador tenta prever pelo agenciamento do espaço e das próprias obras.

 

IV. Estratégias de Disposição

Mas não é surpresa que o circuito de arte tenha a curadoria como um expediente sistêmico, supostamente transparente – ou seja, “uma interface completamente natural”. [12] O curador possui um papel determinante na economia deste circuito, similar ao do editor na mídia impressa: incorporando a própria autoridade, ele determina o valor e controla a difusão das obras. Ele separa produtores de consumidores e media a relação entre eles.

Agora, os ambientes marcados pelas novas mídias (sites de Web 2.0, comunidades de desenvolvimento de software livre, etc), desautorizados, dispensam a figura do curador por fazê-la super-necessária: conforme os processos curatoriais se tornam mais importantes, eles também se tornam mais comuns e devem ser mais simples de se executar.

Nesses ambientes, é impossível restringir a atividade de curadoria a alguns especialistas. Além disso, eles deixam claro que nenhuma ação pode ser tomada de fora do sistema: lidando com bancos de dados complexos, o curador frequentemente emprega os mesmos recursos computacionais que os artistas usam para fazer seus trabalhos.

Por isso, embora os procedimentos curatoriais não sejam muito debatidos no circuito da arte tradicional, como podemos inferir pela falta de bibliografia crítica sobre o assunto, eles são naturalmente problematizados pelas novas mídias. Nesse âmbito, já estão sendo produzidas reflexões como as coletâneas Curating Immateriality (UK: Autonomedia, 2006), editada por Joasia Krysa, e Curating New Media (UK: Baltic, 2002), resultado de um seminário organizado no Baltic Centre for Contemporary Art (UK) em 2001.

Alguns artistas envolvidos com esse meio, inclusive, assumem funções curatoriais como um desdobramento natural de seu trabalho artístico. A dupla australiana Soda_Jerk, autores do primeiro longa metragem narrativo inteiramente produzido a partir de material sampleado (Pixel Pirate II: The Attack of the Astro Elvis Video Clone, 2006), por exemplo, realiza regulamente exposições e mostras de vídeo. Eles vêem a curadoria “como uma extensão da prática artística do remix. Assim como a edição de uma mixtape, curadoria envolve agrupar trabalhos distintos e forjar novas relações entre eles”. [13]

Logo, parece que ambientes de novas mídias e as práticas criativas por eles possibilitadas inspiram uma reavaliação do conceito de curadoria que poderia afetar profundamente as atuais relações de produção e consumo de arte, deixando o circuito muito mais disponível para o potencial do display como forma de criação.

Podemos dizer que curadoria é uma forma de produção simbólica que pressupõe a relação vetorial entre o usuário e o sistema. De fato, ela atua precisamente no domínio do que Paul Virilio chama de trajetividade. O filósofo francês concebe o "trajetivo" como uma condição intermediária entre a subjetividade e a objetividade, um

estado de estar-em-movimento. [14] Por meio de seleção e composição, os processos curatoriais respondem a esta condição estabelecendo uma disposição.

Longe de ser um mecanismo inócuo para interfacear usuários e dados, a disposição é uma estratégia de antecipação do comportamento da audiência. Seu potencial crítico pode ser atestado mesmo na situação mais ordinária: a exposição didática de um pintor famoso. Para explicar ao público o que torna tal artista único, o curador organiza seus trabalhos de forma a tornar evidente seu processo constitutivo. Assim, a disposição funciona como uma ferramenta para análise e desconstrução.

A disposição pode coordenar a relação vetorial entre usuários e dados de diversas maneiras. Isso se torna mais claro se levarmos em consideração certas atividades que não são consideradas precisamente curatoriais, mas cuja expressão criativa também está relacionada a estratégias de display.

O DJ de pista de dança, por exemplo, está sempre adaptando sua seleção musical para compensar a distração do público. Ele é um mecanismo de feedback vivo, que muda a trajetória do set de modo a manter a audiência na direção correta – cartase – de forma  adequada – dançando.

Mas nem todas as estratégias de exibição favorecem essa harmonia imperturbável entre usuários e dados. Algumas buscam criar uma trajetória acidentada, cheia de lapsos e percalços – os sites da dupla JODI são um bom exemplo disso. [15]

Em suma, curadoria nos parece ser uma forma de ordenar coleções para atingir determinado efeito de sentido. Poderíamos dizer: organizar produtos culturais e obras de arte em sistemas simbólicos ainda mais complexos. Um processo que se encaixa de maneira muito natural na hierarquia expandida de linguagens de programação que propomos.

Hoje, quando dizemos programar um cinema, estamos cada vez menos longe da verdade – afinal, a projeção digital implica em compor playlists, coordenar troca de dados em rede e encriptar arquivos de filmes. Por outro lado, os desenvolvedores de software precisam cada vez mais prever níveis simbólicos altíssimos ao realizar seu trabalho. Quem há de negar que exista um processo de curadoria tradicional na criação de uma distribuição do sistema operacional Linux – um esforço de equilibrar o conjunto de aplicativos e a economia do sistema?

 

Referências

[1] <http://www.processing.org>.

[2] <http://www.whitneybiennial.com>.

[3] Programada para ficar apenas um ano em cartaz no Zentrum für Kunst und Medientechnologie (ZKM, em Karlsruhe, na Alemanha), o público recorde dessa exposição fez com que sua duração se estender por mais quatro anos, estando aberta até hoje.

[4] MANOVICH, Lev. Data Visualisation as New Abstraction and Anti-Sublime. 2002, p. 1.

[5] MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge: MIT, 2001, p. 118

[6] Ver <http://en.wikipedia.org/wiki/High-level_programming _language>.

[7] Versão mais sofisticada (e, portanto, de nível mais alto) do C, uma popular linguagem de programação orientada-a-objetos.

[8] Ver <http://www.research.att.com/~bs/bs_faq.html#really-say-that>.

[9] Essa diferença de paradigmas se revela na própria nomenclatura de certas linguagens. Não é por acaso que, entre as de nível mais baixo, estejam as assembly languages, ou linguagens de montagem. Por outro lado, entre as de nível mais alto, estão aquelas orientadas-a-objeto.

[10] MANOVICH: 2001, p. 118.

[11] Ver <http://www.processing.org/faq.html>.

[12] MANOVICH, 2001, p. 178.

[13] Ver <http://www.sodajerk.com.au/sj/curate.html>.

[14] VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. São Paulo: Editora 34, 1993, p. 107. É curioso que também haja uma certa trajetividade na forma mais material de programação, a engenharia eletrônica: essencialmente, o que define o funcionamento de um circuito é o percurso da eletricidade através dele. Os zeros e uns da programação binária nada mais são do que uma primeira abstração desse percurso. Eles se referem ao estado dos transistores no processador, se estão abertos ou fechados, se deixam ou não passar energia.

[15] <http://wwwwwwwww.jodi.org>.

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Número 2