Relato 2

relato com ênfase na palestra de Marcio Botner, por Marcia Ferran

Após introdução de Priscila Arantes, o pano-de-fundo que se construiu entre as falas apontou mais consistentemente para a parte do “social da arte” incluída no leque temático, atualizando o tipo de discussão cujos marcos maiores no Brasil talvez ainda sejam o livro de Aracy Amaral1 e a obra de Hélio Oiticica. 

Neste sentido foi bastante proveitoso abrir as falas com Gabriela Salgado, cuja palestra era obviamente mais teoricamente “construída” do que as de seus companheiros de mesa. O exemplo apresentado por Salgado, o projeto The Fight, deflagra vários eixos analíticos que foram também ilustrados nas falas de Marcio Botner e de Walter Riedweg. Em The Fight,  a premissa do artista Humberto Vélez foi tornar a nobre instituição britânica permeável aos seus vizinhos imediatos, ou seja comunidades carentes que resistem  aos famosos processos de gentrification, típicos de bairros centrais, no caso, a área da margem sul do rio Tamisa, conhecida como South London. Desta premissa o artista panamenho planejou um projeto envolvendo e literalmente pondo em cena, como protagonistas as manifestações culturais existentes nas comunidades vizinhas ao Tate.

Ao meu ver o problema está justamente neste “pôr em cena”: riscos de espetacularização e de exotização do outro estão flagrantes em iniciativas como The Fight, apesar de todo discurso que o rodeia. Fica patente o grande hiato entre a construção do discurso (citando Beuys, Oiticica, e Nicolas Bourriaud) resguardando e dando sentido às escolhas do artista e a transposição formal da proposta, que vemos através do vídeo. Logo de cara, não há como não lembrar da muito usada tática de turismo cultural e empresarial, que insiste em levar apresentações de maculelê, capoeira d’angola, ou qualquer outra “manifestação cultural local” para o saguão dos hotéis, facilitando a vida dos visitantes, apavorados com a violência generalizada midiaticamente.  

Este é uma seara já bastante discutida no ambiente teórico europeu, e talvez uma análise mais profunda necessitasse de esclarecimento sobre o “processo” que precedeu o evento no museu, já que estamos falando de uma das muitas reverberações daquilo que Hal Foster chama de “ethnological turn”2. Pois bem, ao voltar-se para o “real” e tangenciar os “métodos” – palavra, aliás empregada tanto por Salgado como por Riedweg – da antropologia, o artista em princípio estará convivendo e conquistando seu interlocutor  - sintomaticamente quase sempre uma vizinhança pobre ou socialmente “esmagada”. O impasse mora justamente no fato que a premissa artística ainda permanece um dever formal, e somente o resultado final, o espetáculo, contra o qual se debatia Debord, é que vem à tona depois de experiências como The Fight. 

Cabe nos perguntar se é esta a atitude mais política que o artista pode hoje empreender e se a crítica da instituição dentro da própria instituição ainda é produtora de transformações quaisquer que sejam. 

Nesta direção um caminho peculiar foi trilhado pelos artistas, amigos e sócios da galeria Gentil Carioca apresentado por Marcio Botner, segundo palestrante, que insere a discussão mais ampla do engajamento com o espaço público urbano, nas “bordas” imediatas do espaço expositivo. Ao apresentar algumas reações à instalação “cidade-dormitório” construída na parede externa, uma empena ao lado da galeria, Botner adiantou o que seria explicitado por Riedweg, que mais assumiu que lidar com aquilo que é chamado pelos antropólogos de “campo”, lidar com o “outro que começa onde acaba a minha pele” requer intrinsecamente lidar com conflitos. Sem dúvida o espaço público é historicamente o terreno que engendra os conflitos, o mesmo que engendrou a filosofia e a noção cidadania.

Aqui cabe lembrar Aristóteles, para quem a maior falha do cidadão consiste em não tomar partido, atitude chamada de atimia. Neste sentido, Botner testemunha uma decisão coletiva que vai contra a atimia, escolhe se instalar em pleno coração do centro da cidade, não no CDN – centro de negócios – ascéptico  e verticalizado, mas no que é ainda território à espera de investimentos, sem saber se seu destino pode se assemelhar com o Pelourinho de Salvador.  

“Invasão de domicílio”, filme recente sobre Londres, mostra como são quase heróicas as decisões de se instalar em áreas politicamente consideradas como “sensíveis” e “difíceis”, no caso também nas margens do Tâmisa, dois arquitetos resolvem instalar seu escritório em meio à uma vizinhança de imigrantes pobres, com alto índice de desemprego, além de prostituição.  

Ora, não se trata de missão, como bem diz Botner, a Gentil Carioca é uma galeria comercial que visa viver da venda de trabalhos e o novo papel de galerista lhe tem obrigado a freqüentar feiras de arte e a constantemente reavaliar as interfaces entre a vocação comercial e a preocupação educativa que permeia alguns projetos da galeria. 

A postura dos três amigos sócios indica um posicionamento crítico que antecede as escolhas estéticas e justamente por isto, parece lograr efetuar um singular abalo nos modos, aí sim, relacionais com o que é considerado “não-público”, aquela porção da sociedade alheia aos problemas da arte, mas sempre potencialmente sensíveis ao contato humano. É nesta brecha, que parece se ancorar o “agenciamento” operado pelos galeristas, que não temem fazer de seu espaço um ponto/ponte entre mundos aparentemente dissociados. Este mergulho no “real” é potente aqui não no sentido de Nietzche e nem da reiterada afirmação da “autonomia da arte”, mas ao acreditar que é a arte que precisa da vida. Uma das constatações dos percalços aos quais se defrontam intervenções no espaço público foi evidenciada pela transformação literal do objeto estético cama em objeto de uso cotidiano pelos moradores de rua locais. Usos que certamente exigem um tipo de manutenção e uma gestão totalmente diferentes daqueles institucionais convencionais. Este tipo de confrontação, como disse Botner não foi um desestímulo, mas engendrou questionamentos do grupo que num primeiro momento também teve na situação de “urgência” do meio artístico carioca um fator decisivo para a escolha do local. Dentre as escolhas da Gentil Carioca, Botner sublinhou as interfaces propostas entre educação, arte, gentileza, além de lançar ao público do Simpósio, sua concepção da arte como uma “bomba cultural”, termo que gerou certa polêmica.  

Já no final, a frase que mais apontou o terreno espinhoso do entre-linhas das experiências apresentadas, talvez tenha sido a de Walter Riedweg ao pontuar que hoje em dia toda instituição artística tem que fazer “política de boa vizinhança” e para isto não hesita em apelar aos artistas, encarregados então de refazer elos sociais da dita vizinhança. Ora, esta declaração, feita somente após uma intervenção da platéia, descortina todo um flanco que está dado no campo da produção artística atual e que ainda é pouco discutido, apontando as complexas relações entre determinantes sócio econômicas, estratégias institucionais e at last but not least, a autonomia da arte! 

Perigos de instrumentalização mas também oportunismos de produtores culturais podem fazer do famoso campo do social um nicho rentável para os artistas, e o desejo de encontro com o real fica muito perto de se tornar uma fórmula anulando qualquer singularidade, como colocado por Agamben3. Afinal, como pergunta que não quer calar, quando é que se espera que o artista refaça os laços sociais4 em torno de uma galeria de arte no bairro do Leblon do Rio de Janeiro?  

Na delicada adequação entre métodos etnográficos e investigações artísticas, um bom meio para evitar os perigos citados é aquele oferecido pela adoção de uma distância crítica, por mais complexo que seja atingi-la. Hal Foster reconhece que ela se tornou mítica e pergunta-se por fim se ainda pode existir. Emergem daí conclusões que ligam de forma mais nítida as grandes cadeias que atravessam nossa tese:  

        "Hoje as políticas culturais, tanto de esquerda quanto de direita, parecem bloqueadas nesse impasse. A esquerda geralmente se identifica sobremaneira com o outro enquanto vítima, o que o encerra numa hierarquia de sofrimento na qual aquele que é infeliz não pode realmente fazer o mal. Quanto à direita, ela geralmente se desidentifica ainda mais com o outro que ela rejeita enquanto vítima e explora essa desidentificação a fim de construir uma solidariedade política baseada no medo e no ódio fantasmagóricos. Diante de tal impasse, depois de tudo, a distância crítica talvez não seja uma idéia tão má assim."

Walter Riedweg apresentou com imagens projetos realizados com Maurício Dias,  Throw em Helsink, Sugar Seekers em Liverpool e, ainda um na Noruega. O artista enfatizou que as questões políticas que perpassam seus trabalhos suscitam para eles fundamentalmente o processo de encontro com o outro, e que é o território interior, que mais interessa suas abordagens, mesmo quando, como em Sugar Seeekers, as pessoas enfocadas tenham uma relação grave com os territórios para onde imigraram. Walter mostra como desloca o problema do “exótico” ao privilegiar o mundo dos sentimentos, do processo de encontro com o outro, sem pretender anular os conflitos inerentes. O artista de certa forma reforça a fala presente no documentário Mau Wal – encontros traduzidos – sobre o percurso da dupla Maurício & Walter5, de que “apresentam histórias e não fatos”. 

De modo geral a mesa propiciou um rebatimento da mesa anterior, problematizando com exemplos concretos a fala de Roger Buergel que havia sugerido que novas atuações e mesmo novas incursões profissionais por artistas poderiam ser um caminho para abranger novas platéias para arte contemporânea, incorporando questões do mundo “fora dos museus”. Mas aí, o problema da distância crítica adequada (ou em termos semelhantes em cinema a questão da justa imagem/imagem justa segundo Godard) em trabalhos que buscam deliberadamente o “outro” talvez seja insolúvel.  Certamente seria saudável, para os artistas que incursionam no “real” voltar a fontes como James Clifford6 e ver quais são as “dores e as delícias” do método antropológico.

(1) AMARAL, Aracy A: Arte para quê ? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. São Paulo: Nobel, 1987.
 
(2) Ver: FOSTER, Hal. “Contra o pluralismo.” In: Recodificação, arte, espetáculo, política cultural. São Paulo :  Casa Editorial Paulista, 1996.

(3) ______ The return of the real: L'avant-garde à la fin du siècle. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1999.

(4) Agamben, Georgio. La Communauté qui vient. Théorie de la singularité quelconque. Paris : Ed. Du Seuil. 1996.A respeito desta discussão na França, com alguns exemplos brasileiros ver: Henri-Pierre Jeudy, Les usages sociaux de l’art. Paris: Circé, 1999.
 
(5) Mau Wal, encontros traduzidos. Direção de Fabiana Werneck e Marco del Fiol, 2002.

(6) Ver: “An ethnographer in the field. James Clifford interview.” In: Alex Coles (ed). Site-Specificity: The Ethnographic Turn. London: Black Dog Publishing Limited, 2000.