Relato 1

relato da palestra de João Ciaco, por Luisa Duarte


A mesa II, mediada pela diretora do Paço das Artes Daniela Bousso, “Paradigmas do pensamento em arte”, do II Simpósio Internacional de Arte Contemporânea, se ocupou de um tema controverso e importante no nosso contexto brasileiro. Seu subtítulo explica melhor: “do capital privado versus instâncias públicas, conflito de interesses com o jogo de privatização da cultura, gigantismo expositivo, apropriação do espaço público, estratégias corporativas”.

Contando com a presença de dois palestrantes, João Ciaco, diretor de Marketing da multinacional Fiat, e Manuel Olveira, diretor do Centro Galego de Arte Contemporânea, para a platéia foram expostos, a um só tempo, a visão de um gestor de uma grande empresa privada e os princípios que balizam a prática do diretor de um Centro de Arte que faz parte da esfera pública.
Ciaco, já no início da sua fala, sublinhou que estava falando de um ponto de vista bastante específico, o de um diretor de marketing de uma empresa privada. Sabendo que esta relação, entre capital privado, recursos públicos e cultura pode ser delicada.  Segundo Ciaco, o desafio da empresa para a qual trabalha é conciliar uma vontade de participação na sociedade e oportunidades mercadológicas, tendo em vista um público cada vez mais multifacetado, repleto de diferenças que solicitam, por sua vez, ações igualmente múltiplas.

Se a prioridade da Fiat é construir bons automóveis, a segunda meta seria estabelecer uma boa relação com a sociedade. É justamente aí que surge o investimento na área de cultura, que mediaria esta relação. Sabendo que a Fiat produz um bem que está intimamente associado a diversos problemas graves dos centros urbanos contemporâneos e do plante em geral, como o caos no trânsito e a poluição, Ciaco afirmou que, por isso, torna-se ainda mais importante para a empresa investir em ações que gerem retornos positivos para a sociedade na qual ela está inserida.

Na visão da organização – termo usado por Ciaco para falar da Fiat – a arte seria uma possibilidade de transcendência de conceitos estabelecidos. Algo que abre a possibilidade de reinterpretarmos a nós mesmos e o mundo.  Segundo o diretor de Marketing, atualmente a imagem de uma marca não é construída contando os centímetros que ocupa nas páginas de um jornal ou revista. Mas sim se trata de uma conseqüência da integridade institucional da empresa. O que estaria em jogo é o caráter da marca, o sentido político que a empresa imprime nas suas escolhas de investimento. Entraria aqui o conceito de empresa-cidadã, socialmente responsável.

De acordo com o palestrante, a Fiat não faz distinção entre o dinheiro aplicado através de renúncia fiscal, ou seja, recurso público, e o investimento que provem diretamente do capital privado da empresa. Ambos teriam o mesmo destino, o de investimento de ordem pública na cultura. Sendo que do total investido pela Fiat em cultura, a maior parte, setenta por cento, vem do capital privado, e trinta por cento de renúncia fiscal, nas palavras de Ciaco.

Na hora de investir em cultura a Fiat possui alguns critérios que balizam a relação da empresa com o campo da arte. Seriam eles, isenção em relação ao artista, a obra e o público; respeito total a liberdade de criação; flexibilidade e abertura para o diálogo; comprometimento com o bem comum; democratização do acesso e dos meios de produção.

Seguindo o preceito de sua empresa, de que uma marca se vende melhor não com palavras, mas mostrando o que realiza, Ciaco exibiu imagens de investimentos recentes da Fiat na área da cultura, como os projetos “Retratos do Brasil”, “Brasil dos Meus Olhos”, “Casa Fiat de Cultura”, e a “Mostra Fiat Brasil”.

O primeiro dele tem como foco uma vontade da empresa italiana em conhecer melhor o país em que trabalha. Trata-se do olhar de diversos cineastas impressos em vinte e quatro filmes, de cerca de vinte minutos cada, sobre a diversidade e o sincretismo da população brasileira. Os filmes foram distribuídos em escolas públicas e privadas de todo o país. A busca aqui seria de, através destes filmes, fazer com que a própria Fiat compreendesse melhor o contexto humano no qual está inserida.

“Brasil dos Meus Olhos” é considerado pelo diretor um passo além do projeto anterior, na medida em que teria ido buscar questões mais localizadas sobre o Brasil. Aqui foi dado a estudantes de todo o país uma máquina fotográfica, com a qual cada um registrava a seu modo o ambiente em que vivem. O material final, selecionado por um grupo de artistas reconhecidos, foi igualmente distribuído para escolas de todo o Brasil.

As duas últimas ações exibidas por Ciaco se aproximam mais especificamente do campo das artes visuais. A “Casa Fiat de Cultura” é um centro cultural patrocinado pela empresa em Belo Horizonte, Minas Gerias. Estado onde se centraliza as operações da empresa italiana no Brasil. Ciaco não deixou muito claro o programa seguido pela casa de cultura, tampouco quem dirige a sua programação. Afirmou somente que hoje o espaço exibe uma mostra do artista minero Amílcar de Castro.

Já a “Mostra Fiat Brasil”, ocorrida no segundo semestre de 2006, concomitante a 27° bienal de São Paulo, no porão das artes do prédio da própria bienal, foi talvez o projeto mais próximo do âmbito da arte contemporânea realizado pela empresa. A exposição reuniu jovens artistas de todo o país, selecionados por um time de curadores reconhecidos na área.

Mostrando saber das limitações da área em que atua, Ciaco pensa que o investimento de uma empresa privada como a Fiat na área de cultura está muito aquém do que poderia, sendo um campo que ainda tem muito a se desenvolver. Segundo ele, falta ainda que os níveis mais altos da organização, e não somente o departamento de marketing e comunicação, entenda a importância de investimentos desta ordem. O dia em que estes cargos mais altos compreenderem isso as ações na área cultural serão bem maiores e eficazes, segundo Ciaco.

Do debate que se seguiu a palestra, vale destacar alguns pontos. Participaram dele, além do público presente, os outros membros da mesa, composta por Sergio Rubira, Marcos Cuzzio, Nancy Betts e Sylvie Parent. Parent colocou uma questão pertinente para Ciaco, qual seja, a de que todos os projetos por ele mencionados partiram de dentro da própria empresa. Assim, fica a pergunta se a Fiat não investe em propostas que partam de fora da empresa. Ciaco disse receber diversos projetos, todos eles analisados, mas não especificou um que tivesse sido de fato realizado.
Premente durante o debate foi a discussão sobre as relações entre empresa privada e gestão do dinheiro público, que ocorre no Brasil através da Lei Rouanet. Foi consenso entre a mesa e o público que a Lei merece ser mais bem discutida, na medida em que hoje ela coloca sob total responsabilidade de gestores de marketing, sejam privados ou públicos, o destino de um recurso que é público.

A discussão da mesa mostrou-se muito pertinente, na medida em que nasce a partir de um problema sério da nossa realidade atual, onde os escassos orçamentos do setor público provocam a necessidade de associação com o capital privado, associação incentivada pelo modo que a Lei é concebida, ao mesmo tempo em que a arte se torna mais e mais um bem de consumo valioso para o marketing das empresas. Vivemos assim um desequilíbrio de poderes arriscado. Não me parece correto que uma quantidade gigantesca de recursos seja colocada, todo ano, nas mãos, exclusivamente, dos interesses de marketing das grandes corporações públicas ou privadas. Por mais que tais empresas tenham um olhar sensível diante da cultura.

A lógica do marketing necessária para comprar e vender “produtos culturais” não coincide, necessariamente, com a estratégia de construção de uma nação pobre e ainda jovem como o Brasil. É essa gestão de recursos públicos que deve ter o seu rumo repensado. Deve ser uma preocupação dos agentes da cultura de todo o país não só pensar a situação tal como se encontra, mas mais que isso, discutir seriamente o que pode ser feito a curto e médio prazo neste sentido. Ajustes na Lei de incentivo são necessários e podem ser feitos sem que o governo passe a deter todo o poder de decisão sobre o destino dos recursos. Não é um dirigismo desta natureza que desejamos. Mas sim um equilíbrio.

Existem no Brasil hoje pessoas capacitadas, pensando o assunto de maneira séria. Só que até hoje parece que ainda não conseguimos priorizar e unificar este debate. Trata-se de reuni-las em torno desta questão premente. Uma discussão desta natureza poderia ser foco de um seminário inteiro, de onde, quem sabe, poderíamos sair com propostas efetivas para aprimorar o campo da gestão da cultura do nosso país.