Ano:2020. Ainda o museu...

Marcelo Mattos Araujo

Texto apresentado na Mesa Redonda “Arquivos vivos II: arquivos como fontes para a construção da história e de acesso à arte” (dia 30 de outubro de 2007), realizada no âmbito do IIo. Simpósio Internacional de Arte Contemporânea: Espaço, aceleração e amnésia: arte e pensamento na contemporaneidade. Paço das Artes – São Paulo, em parceria com o Fórum Permanente de Museus.

 

O presente Simpósio nos propõe para debate a questão do posicionamento do sistema da arte – equação composta pela produção artística, crítica e curadoria, instituições, mercado e mídia – perante uma situação universal em trânsito, que vê alterada sua tradicional noção de espaço e experimenta uma situação existencial que é feita consecutivamente de aceleração e amnésia.

 

Mais especificamente, apresenta como eixo para esta Mesa Redonda o tema: Memória do presente, distribuição e registro de informações, instituições como veículos. O que fica? Que tipo de registro vai nos garantir qualidade de absorção da informação? Como pensar o museu do futuro?

 

Em decorrência de minha formação e experiência, vou restringir minha contribuição de hoje a uma tentativa de aprofundar e problematizar essa última questão – Como pensar o museu do futuro? – na expectativa de que possa servir de estímulo para um debate produtivo entre todos nós.

 

O museu – como o conhecemos hoje – é um modelo institucional que surge no final do século XVIII, filho dileto do Iluminismo, com a missão de formação e educação do público. Articula, no seu modus operandi, uma relação singular entre espaço, objeto e indivíduo que, mediada por um tempo próprio, propõe uma experiência única de construção de sentidos e memórias, hoje reivindicada, metodologicamente, como objeto de análise da Museologia.

 

Digo trata-se de uma relação singular, uma vez que pressupõe o contato presencial de uma individualidade, com determinado tipo de objeto em um determinado cenário. O objeto – independentemente de sua natureza artística, histórica, antropológica ou biológica, por exemplo – é sempre revestido de um valor de preservação, como resultado de seus atributos de qualidade, originalidade, autenticidade, unicidade e representatividade.

 

Nesses quase três séculos de existência do Museu moderno, expandiram-se os vértices de sua estruturação. Dos limites físicos das paredes de um edifício específico, chegamos ao espaço de um território em toda sua complexidade sócio-ambiental-ecológica, como fórum de atuação. Da restritiva noção de acervo, como objeto juridicamente possuído e incorporado, passamos ao conceito de patrimônio, tanto cultural quanto imaterial. E do foco em uma minoria privilegiada, passamos a ter como objetivo toda uma população, em sua diversidade e especificidades.

 

Esta cadeia operatória da Museologia é mediada, como disse anteriormente, por um tempo específico, que condiciona não só seus procedimentos operacionais internos, mas, fundamentalmente, as relações que instaura junto ao público. Em termos de procedimentos operacionais internos, é preciso registrar que o Museu se caracteriza por longos e complexos processos inter e multiprofissionais de trabalho, que se chocam, via de regra, com os prazos administrativos, políticos, mercadológicos e publicitários. E o que dizer do tempo solicitado ao público para a fruição, a análise e a descoberta dos objetos, nessa nossa era de agendas apertadas, e horários rigidamente controlados? É recorrente, nos Museus, a indagação: “Tenho 15 minutos para a visita. Quais são as obras mais importantes para ver? O resto eu posso ver na Internet?”.

 

Aceleração do tempo, amnésia, virtualização, espaços em fluxo, desterritorialização.... Acredito que não seja difícil para nenhum de vocês imaginar os desafios que estas novas situações colocam para os museus. Do meu ponto de vista, me parece ser uma tarefa premente e inadiável para os Museus, desenvolver uma reflexão sobre essa problemática, por meio, dentre outras estratégias, da presença em processos coletivos de discussão – como este – que buscam novas alternativas e caminhos. Vamos, assim, ensaiar algumas questões.

 

Um ponto inicial que eu registraria como referência básica para essa discussão, é o reconhecimento de que o Museu não é, e não deve se reivindicar, como único agente institucional nesse complexo processo. Hoje, parece concluído o longo percurso iniciado em 1926, quando El Lissitzky, no auge do movimento das vanguardas, criou o seu Gabinete Abstrato para o Museu de Hanover, iniciando a era de obras especialmente produzidas para museus. No momento atual, nada mais conservador do que o velho jargão: “é obra de museu”.

 

Ao contrário, defendo que o Museu deva justamente buscar sua especificidade, nesse nosso complexo panorama contemporâneo, na reafirmação de sua  natureza preservacionista, vale dizer, de constituição de patrimônio; e educativa, vale dizer, de construção e comunicação de valores. Um longo processo dialógico a ser desenvolvido no contexto de um espaço físico real, ainda que não mais limitado a uma contigüidade rígida; e caracterizado pela proposição de um tempo que se contraponha ao consumismo do imediato e do instantâneo.

 

Mais ainda, é importante atentarmos para o fato de que, de maneira intrínseca a esta relação, desenvolve-se, paralelamente, uma delicada operação de seleção de informação, que atua justamente na busca do equilíbrio entre a lembrança e o esquecimento, vetores antagônicos e conflitantes, de cujo balanço depende nossa saúde psíquica individual e nosso desenvolvimento político coletivo.

 

Sob o prisma organizacional – questão absolutamente fundamental para discussão ora em curso – o Museu deve seguramente buscar novos modelos de gestão, mais adequados aos requisitos de profissionalização, agilidade e transparência, hoje exigências imperiosas de uma economia altamente competitiva. E também saber construir, no âmbito desses novos modelos de gestão, parcerias inovadoras, principalmente junto à sociedade civil, como é o caso das Organizações Sociais, modelo que vem sendo implantado com sucesso no âmbito de instituições museológicas e culturais da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, como a Pinacoteca do Estado e o Paço das Artes.

 

Estas reflexões são, a meu ver, aplicáveis a todos os Museus, independentemente de suas naturezas. Para aquele segmento voltado para o campo das artes visuais, a problemática se configura de maneira ainda mais complexa. Com efeito, desde o início do século XX, a crescente multiplicidade de novas formas de manifestações artísticas – instalações, happenings, intervenções urbanas, land art, mídias digitais, web art e tantas outras – trouxeram para os museus instigantes desafios em termos de como preservar e incorporar essas produções.

 

A reflexão hoje já desenvolvida a esse respeito alcançou patamares significativos, tanto a nível teórico, como ilustra, por exemplo, no panorama brasileiro, as contribuições de Cristina Freire, pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea da USP; quanto a nível prático. Em termos de conservação, por exemplo, para citarmos apenas uma área do campo da salvaguarda museológica, temos um consistente exemplo na atuação mundial do International Network for the Conservation of Contemporary Art – INCCA, que a Pinacoteca do Estado tem o privilégio de representar e coordenar no Brasil; um projeto de registro de depoimentos de artistas sobre os processos de criação de seus trabalhos, com o objetivo de coletar referências para futuras e eventuais intervenções de restauro que se façam necessárias.

 

Essas contribuições já lograram sedimentar um entendimento – a meu ver hoje consensual – a respeito da importância da preservação da documentação, seja original, como anotações e arquivos de artistas, registros de ações e intervenções; seja secundária, como depoimentos e publicações; para a preservação e, muitas vezes, a constituição dessas novas formas de manifestação. As metodologias possíveis são inúmeras e constituem universo técnico de grande complexidade e extrema importância, mas que não me cabe aprofundar. Vale registrar como conclusão a necessidade da consciência profissional a esse respeito, e a premência das iniciativas para garantir não apenas a qualidade da informação, mas a sua própria sobrevivência e destinação pública, uma vez que seus conjuntos enfrentam constantes ameaças em termos de conservação ou diante da ação do mercado que os reifica, transformando-os em bens altamente rentáveis.

 

Tomando esse horizonte como perspectiva, seria pertinente uma aproximação entre os Museus e outros modelos institucionais, como os Arquivos e as Bibliotecas. Ainda que eu reconheça a importância dessa aproximação e defenda, até calorosamente, a necessidade dos trabalhos associados e em rede, não poderia deixar de apontar aqui, aprofundando minha reivindicação de uma função específica para os Museus na contemporaneidade, a questão mais central, o verdadeiro desafio que, a meu ver, se coloca para essas instituições justamente em relação a esta nova tipologia de acervo e frente a essas manifestações artísticas.

 

Trata-se de pensarmos as possibilidades de como poderia o Museu, por meio de procedimentos de salvaguarda e comunicação, ou seja, da utilização de recursos de sua própria linguagem, buscar a reativação do potencial criativo das memórias das práticas artísticas, recolocando-as no seu papel de fomentador de novas poéticas. Ou, como reivindica Suely Rolnik em texto recente a respeito da obra de Lygia Clark: “como reativar nos dias de hoje a potência política inerente à ação artística, seu poder de instaurar possíveis?” (1).

 

Nesse ensaio, em que discute sua proposta curatorial para a exposição Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro, apresentada no Musée de Beaux Arts de Nantes, na França, em 2005, e na Pinacoteca do Estado, em 2006, Suely Rolnik nos alerta para a necessidade dos Museus encontrarem estratégias específicas para trabalhar com “práticas artísticas nas quais a obra não se reduz ao objeto, mas implica a incorporação de seus receptores e daquilo que promove em suas sensibilidades”.  

 

Partindo do reconhecimento da impossibilidade de reprodução das ações desencadeadas por essas práticas, e insatisfeita com a simples apresentação de material de arquivo ou objetos testemunhos dessas mesmas práticas – estratégia mais comumente utilizada pelos Museus em exposições dessa natureza – a curadora defende a superação do simples trabalho de organização e exposição da documentação, em busca de soluções que serão sempre pontuais e específicas, mas que permitam, a partir de outros sentidos de memória, a reinstauração da “vitalidade crítica” dessas produções artísticas,  “e de seu potencial de diálogo com o contemporâneo”.

 

Trata-se, mais concretamente, de buscarmos maneiras de derrubar a pretensa neutralidade, tão cuidadosamente construída ao longo dos últimos séculos em torno das instituições museológicas, por meio de sutis procedimentos ideológicos, para que nelas, nos Museus, a arte e a experiência estética possam ocupar um lugar real na construção da cidadania.  

 

Este é, a meu ver, o mais verdadeiro e instigante desafio enfrentado pelos Museus que nutrem uma expectativa de se constituírem em instituições que venham a cumprir um efetivo papel de transformação social em 2020. Espero que esse debate possa trazer reais contribuições para o aprofundamento dessas questões e paras possíveis alternativas de trilhas e caminhos.  

 

 

(1) Lygia llamando / Lygia calling, in Brumaria 7: “Arte, máquinas, trabajo inmaterial, Madrid, Documenta 12 Magazine Project. Madrid, 2006  (www.brumaria.net). Edição bilíngüe (espanhol/inglês). Versão revisada e ampliada de uma conferência apresentada em 10.000 FRANCOS DE RECOMPENSA (El museo de arte contemporáneo vivo o muerto), encontro internacional promovido pela Asociación de Directores de Arte Contemporáneo de España-ADACE e organizado pela Sociedad Estatal para la Acción Cultural Exterior-SEACEX e a Universidad Internacional de Andalucía-UNIA arteypensamiento. Baeza, Jaén, 15 a 18 de dezembro de 2006.