Memórias, (des)memórias, fluxos e tempos

relato da palestra de Giselle Beiguelman, por Mario Gioia


Uma “sociedade overmidiática”, a caminho de um estado de “presentificação absoluta” e que terá de lidar com a possibilidade da perda da memória em razão do avanço veloz da tecnologia _que, em uma trajetória de evolução a qualquer preço, vai tornando obsoletos métodos anteriores de arquivamento. Apesar de não querer desenhar um panorama “catastrofista”, a artista multimídia e professora da PUC-SP Giselle Beiguelman, em sua participação no simpósio “Espaço, Aceleração e Amnésia”, no Paço das Artes, deixou diversos alertas aos participantes.

Em uma era em contínuo estado de fluxo, caracterizada pela velocidade de circulação _como frisou o professor da Unicamp Márcio Seligmann-Silva no dia inicial do simpósio_, em dias nos quais é bem palpável a perspectiva de Fredric Jameson na formulação de conceitos pós-modernos como “presente perpétuo” _em meados dos anos 80_, a intervenção de Beiguelman têm motivos bastante consistentes.

O massacre conhecido como “Virginia Tech”, no qual o sul-coreano Cho Seung-hui matou 32 pessoas, suicidando-se em seguida, em abril deste ano nos EUA, foi um dos fatos que fez Beiguelman perceber tal “sociedade overmidiática”. “A história está se produzindo antes dos fatos”, afirmou ela, lembrando que Seung-hui, entre os dois ataques que empreendeu, enviou o registro de material multimídia (vídeos, fotos, texto) à rede televisiva NBC, por correio, explicando o que o teria motivado na matança. “Isso virou um drama hipermidiático”, disse ela.

Já a “presentificação absoluta” foi citada por Beiguelman quando ela discorria sobre as formas de memorização em nossos dias. “Vivemos em um mundo em que tudo é medido pela memória. É um índice de status social. Queremos um laptop com mais memória, o celular tem de armazenar o máximo de dados”, explicou ela.

Assim, continuou ela, “prevalece uma arquitetura do esquecimento”. Modelos e métodos anteriores de arquivamento tornam-se inúteis frente ao frenesi da tecnologia a engendrar novos produtos, que são consumidos com grande voracidade. Um caso que arrancou risos da platéia citado por ela foi o do “floppy disk”, disquete usual na década passada, mas que hoje praticamente virou item de museu de informática. “Meu medo é que no futuro se tenha de criar palácios monstruosos para que se consigam ler arquivos, com dispositivos de memorização próprios”, avaliou ela. Beiguelman também chamou a atenção para um paradoxo: em dias tão hipermediatizados, os procedimentos de arquivamento no computador são bastante convencionais, que utiliza parâmetros de classificação clássicos (pastas, subpastas, protocolos etc.).

A artista e professora expôs sua experiência com a galeria virtual Noema (www.noema.art.br) no Second Life, que colocou vários questionamentos de acordo com sua implementação. “É uma galeria no sentido de expor, e não vender, experiências artísticas. O Second Life nos coloca um desafio importante, que é o de enfrentar as experiências entremídias”, disse ela, lembrando que há sempre uma interface com o mundo real, com mostras e exibições decorrentes dessas experiências.

Em um tempo de “modernidade líquida”, citando o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o risco de perda da memória, de “uma estética do apagamento, de diluição”, os novos sistemas de produção têm de sempre ser debatidos e colocados em questão. “No 11 de Setembro, por exemplo, ficou muito claro o quanto a internet é uma mídia multidirecional. Os sites, de tantos acessos, não conseguiam colocar dados e fotos quanto planejavam, porque havia um congestionamento na rede. A TV pôde colocar tudo no ar, pois é uma mídia unidirecional.”

Beiguelman apresentou diversos trabalhos seus exibidos em mostras, como “Sometimes Never”, exibida no File (Festival Internacional de Arte Eletrônica), em São Paulo, em 2005, e “Sometimes”, mostrada no Centro Cultural Telemar, no Rio, em 2006, entre outras.

A artista e professora também acredita que deve ser discutido intensamente o problema de autenticidade da informação na rede mundial. Como exemplo de como podem ser geradas informações erradas em um processo com desdobramentos de diagnóstico complicado, Cicero Inacio da Silva, na PUC-SP, criou um processo no qual são gerados sites fictícios sobre pensadores de prestígio, como Deleuze. As informações desses sites terminaram por serem citadas em trabalhos acadêmicos até no exterior, o que provocou situações embaraçosas a quem foi citado ou se apropriou dos dados fictícios.