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29ª bienal: algumas notas

Por Aracy Amaral [especial para O Estado de S. Paulo, 26/11/2010]

Quantidade não é qualidade - mais de 150 artistas anunciados. Espaço labiríntico não significa museografia bem resolvida. Precisar ir quatro vezes ao espaço da Bienal e não encontrar os artistas que se objetivava ver indica que talvez a sinalização, ou organização espacial, pode ter sido precariamente abordada.

 

Filipe Araujo/AE
Filipe Araujo/AE
Nacional. Vista da instalação Abajur, obra do artista brasileiro Cildo Meireles: escravos em pleno século 21
 

Exemplo é a invisibilidade do trabalho Apolítico, do cubano Wilfredo Prieto. Obra bem referente à temática desta Bienal - arte e política -, ao ter bandeiras de vários países tremulando na frente do edifício da instituição, ela sequer é notada pela esmagadora maioria dos visitantes, pois na tradição das Bienais de São Paulo, os mastros nesse local sinalizavam os países participantes. Poucos veem ou se dão conta da ironia do artista, reduzindo todas as bandeiras a preto e branco.

Que o tema - arte e política - esteja subjacente em muitas obras - afinal, todo gesto criativo pode ser um ato político como manifestação - ou absolutamente ausente em muitas, não importa muito.

Afinal, vivemos um tempo em que as chamadas artes visuais transbordaram ou se contaminaram para/por tantos campos e sua área se esgarçou de tal maneira que pouco resta do que permanece. E assim passaram a emergir essas ditas artes visuais, através das mídias mais recentes, do vídeo ao cinema, à arte por computador, da imagem de celular até a aceitação por alguns do grafite e pichação, inclusive (!), da incorporação da grafia dos games eletrônicos, do descarte/lixo da esbanjadora sociedade de consumo ou periférica. Em resumo, assim como a moda e o design se apropriaram dos rasgados e reciclagens como chamariz ou motivo de "charme", também as manifestações criativas incorporaram o detrito.

Mas na verdade, só o que é verdadeiramente bom e possui alguma transcendência permanecerá. As outras manifestações ficarão impressas em catálogos como registros efêmeros de um tempo. Aliás, esta Bienal mostra bem o trabalho-registro cultural de nossa época. Se é "arte" no sentido de século 20 ou mesmo 21, não sei. Mas também esse dado não me importa muito. É a expressão de uma realidade.

Três personalidades. Dando uma, ou duas voltas, assinalamos o interesse por três artistas, na área dos nacionais, que possuem neste evento trabalhos relevantes: primeiro, sem nenhuma dúvida, Cildo Meireles, o grande artista brasileiro contemporâneo e que apresenta - na sequência de seu olhar sobre o mar, já realizado em outro trabalho - seu "panorama". Neste, nos movemos ao mesmo tempo em que a paisagem desliza circularmente com poética projeção de paisagens marinhas sobrepostas em planos, trabalho dotado de sonorização, em engenho tão peculiar de sua produção. E a notar por todos, os quatro "escravos" a girar a moenda sob nossos pés em pleno início do século 21...!

Depois, a abordagem crítica, concisa, ordenadora de Daniel Senise em seu ambiente impecável em sua realização, um cubo perfeito realizado com papel reciclado de catálogos e convites de exposições de arte (!!!) Pelo menos aqui o discurso teórico - words words words - serve de matéria-prima a um espaço construído. O desenho na parede de entrada de seu espaço é uma série de páginas de provas de uma edição de arte da Skira. Também em papel reaproveitado em ilusão ótica de perspectiva, o desenho é trabalho minimalista de um artista que emergiu nos anos 1980 na vaga expressionista desse tempo e depois se encaminhou por longos anos num maneirismo elegante. Agora nos chama a atenção num trabalho bem resolvido, contendo ao mesmo tempo uma crítica clara ao desperdício da controvertida cena artística local (e global).

A grande surpresa no mundo rarefeito de pintura nesta Bienal é o trabalho de Rodrigo Andrade, depois de ter por algum tempo se empapado de pigmento puro. Agora este artista do grupo da Casa 7 dos anos 80 volta como pintor pleno, operando cintilações em visões noturnas, desbastando a superfície do suporte em seu processo de desvelar as imagens por meio da sutileza do jogo das faíscas de luminosidade que surgem da luz/obscuridade, sempre mantendo alta a suntuosidade da cor táctil, desejável, de suas composições. Curioso que a pintura sempre se considerou como um fazer que atua sobre uma superfície neutra à qual se incorpora o pigmento para revelar uma imagem. E eis que Rodrigo Andrade aqui opera nas duas direções: ele recobre a superfície com pigmento e depois retira-o com acuidade para construir suas imagens/visões.

A força dos vídeos. Como compensação para o encolhimento, como presença, da pintura, para os que dispõem de tempo e um pouco de concentração os vídeos são as contribuições mais atraentes desta Bienal. Mas comentá-los pressuporia outro espaço, mais amplo, para esse fim. Entretanto, não se pode deixar de mencionar os trabalhos de Filipa César, Claudia Joskowicz, Sara Ramo, Aernout Mik e Francis Alys.

(Por falar em criatividade, já se poderia cogitar talvez de um estudo/exposição sobre as "Mulheres de Minas" - e não "de Atenas"... -, começando por Rosângela Rennó, Valeska Soares, Rivane Neuenschwander, Sara Ramo e Cinthia Marcelle, por exemplo).

O público. O mais heterogêneo possível, e isso é ótimo - o público acorre -, é mais um evento no pavilhão da Bienal, a entrada é grátis, o que é para eles a Bienal? Talvez seja mais um momento de entretenimento, de coisas extravagantes, ou lixo, ou descartáveis, a expor a sociedade contemporânea, como no caso de vídeos como os da Turquia e do Peru, entre outros, a projetar a miséria de sempre de todos os nossos meios urbanos. Nesse sentido, nunca chocam, afinal, o que pode chocar hoje? A não ser quando o menino comenta: "O cara estragou um piano novinho para fazer isto!" (obra de Tatiana Blass). Nem se pode pedir que leiam os textos nos painéis, pois são minúsculos e ninguém percorre a Bienal afim de ler tudo, salvo os muito motivados, que são bem raros...

Em meio ao ruído ensurdecedor (quem quiser ouvir determinado depoimento tem dificuldade extrema e como isso deveria ter sido evitado?), pois a zoeira do ambiente é infernal. Daí por que há um certo clima de trégua no silêncio em torno à instalação do auditório mergulhado do português Pedro Barateiro e na pequena sala recolhida de miniaturas arquitetônicas do cubano Carlos Garaicoa.

Morte e memória: gabinetes. "Esta Bienal me traz à presença da morte", observa-me um artista, visitante estrangeiro. Já para mim, numa época de densa informação que nos bombardeia (na rua, na internet, na TV, no rádio, no celular, na mídia impressa em geral), vejo em vários trabalhos a preocupação com a memória, o desejo de retenção de um tempo. Ou a necessidade de registrar o tempo contido, circunscrito. Isso é visível de maneira particular no espaço personalíssimo de Rosângela Rennó, com suas câmeras, filtros, lentes, projetores de diapositivos, fotos enquadradas, estojos luxuosos, álbuns fechados, sepultados como imagens que a ninguém será dado ver ou projetar. Cemitério de memórias visuais com a carga do peso do tempo não-resgatável.

Frente às coisas vivenciadas e manuseadas trazidas à tona reiteradamente, até a fadiga, por Rosângela, vejo a sua contraposição nos objetos sem uso do espaço de papelaria contidos na cápsula geodésica do colombiano Mateo López, estáticos como alvos de olhar em vitrine, ávidos por serem consumidos. E o que dizer de outro gabinete, como o Instituto de Mecânica do Século 19, modelo de centro artístico e cultural idealizado por John Ruskin (Jeremy Deller, Grã-Bretanha), com dados, desenhos, imagens e objetos religiosos em armários ladeando a ampla mesa severa? É o caso também da sala-gabinete com olhar crítico - que é sempre didático para nós - de um forasteiro diante da realidade urbana de São Paulo (Jimmie Durham, em Pesquisa Sobre a Normalidade Brasileira). Ou do estranho "legado" de The Personal Objects of Theo Grunberg (Simon Fujiwara, Londres/Berlim).

Todos esses "gabinetes" recriam memórias, predileções pessoais, a curiosidade de saber "do outro". O próprio acervo disperso de Paulo Bruscky também recriaria esse tempo preservado, caso reunido (embora já tenha se apresentado com seu precioso arquivo em outra ocasião em São Paulo).

O que pode significar, num tempo tão ágil e frenético em cima da última notícia e a mídia sepultando de imediato a notícia anterior, seja ela espantosa ou dramática, essa sede por "memória" de personalidades, grupos, ações?

CADA, Tucuman Arde nas paredes/ E o Brasil não existe. O tema da Bienal é arte e política. Assim, nada mais pertinente que trazer a ação do CADA, do Chile, em pleno governo Pinochet, movimento ativo de 1979 a 1983 (quando encerra suas atividades) através de depoimentos e recortes. Assim como do movimento Tucuman Arde, evento ocorrido em Rosário/Buenos Aires no tumultuado ano de 1968, baseado em eventos sociais locais, mas claramente inspirado nas revolucionárias ocorrências parisienses de maio de 1968 que sacudiram o mundo estudantil por todo o mundo, em processo "dominó".

Mas se foram movimentos estreitamente vinculados ao tema da Bienal, por que dar-lhes apenas paredes de pouca visibilidade e não uma sala condigna a cada um com a devida projeção didática a suas atividades? Pelas paredes a gente passa, não se detém. Então, vemos que o tratamento foi diferenciado: as paredes são "classe econômica", genérico, o que seja. As salas fechadas ou recintos fechados são "classe executiva". Quem estabeleceu as diferenças? E desde quando o Grupo Rex, me desculpem seus participantes, tinha algo a ver com "arte e política"?

E o Brasil, nada tinha a dizer, por parte dos curadores, quanto ao tema? Nem nas décadas de 1940 (gravuras do grupo de Bagé, Porto Alegre, São Paulo, Santos, Recife) e nem na época do regime militar, quando toda uma geração de artistas se manifestou plasticamente sobre a repressão (Rio, Recife, São Paulo, Rio Grande do Sul)? A bandeira vermelha de Antonio Dias não dá para sintetizar todo o discurso inflamado de uma geração (na música, no teatro e nas artes plásticas, vamos e venhamos...) Para os que não têm conhecimento, houve uma Bienal, a 10ª Bienal - meu Deus, como a memória aqui é débil! -, que sofreu exatamente um boicote por razões internacionalmente divulgadas (Aracy Amaral, Art Abroad/From São Paulo: The Bienal Boycott: Extension and Meaning; Artsmagazine, New York, 1970 - ver ainda Entre a Feijoada e o X-Burguer (Nobel, 1982).

E hoje: acaso não tem características políticas certos trabalhos de Carmela Gross, de Monica Nador, de Rosana Palazyan, só para citar alguns poucos?

Assim, por que nos revoltamos tanto quando o curador Gabriel Peluffo excluiu o Brasil em sua curadoria de Valparaíso sobre arte e política durante os períodos ditatoriais na Trienal de Santiago do Chile (2009), quando então incluiu vários países latino-americanos, se mesmo quando há uma Bienal com este tema no Brasil os próprios curadores brasileiros não o fazem?

Ou é porque certos curadores fazem uma "outra leitura" desses eventos e expressões, assim como as novas gerações se recusam a enxergar no pop americano uma visão realista - e não crítica - da sociedade norte-americana?

O enigma dos ineditismos. Será assim tão importante quem fez primeiro? Há coisas que estão "no ar" em determinada geração, como é o caso de Divisor, de Lygia Pape, e do trabalho da marcha com as 130 cabeças de fora do longo pano no espaço público urbano de Nova York por James Lee Byars (com seu desfile pela Rua 65 East), ambos datados do mesmo ano, 1968. No entanto, estando os dois artistas hoje mortos, essa dúvida dificilmente será esclarecida (The New York Times, 13 set. 1968, James Lee Byars, Mile Long Garment, apud The Architectural League, of New York, http://archleague.org., ago. 2009).

A grande lousa de Cinthia Marcelle, por sua vez, nos remete, embora sua proposição seja outra, ao longo quadro negro participante de Santiago Cárdenas, da Colômbia, dos anos 1970. Assim como é de autoria desse mesmo artista a exposição do verso pintado de uma tela, agora praticada, também com outra intenção, por Vik Muniz. E pelo que conheço, realizado pela primeira vez por um pintor maneirista na Áustria, no século 17. Mas, em certos casos, são variações sobre suportes similares.

Porém, haverá algo de novo na face da Terra na área de artes visuais? Não é mesmo quase inexistente o ineditismo? (Ou melhor: poderíamos abordar a dificuldade do ineditismo...) O mais importante, porém, é ter algo a dizer. E que seu discurso possua clareza.

Artistas enviam obras, aceitam convites, por entusiasmo ou cedendo a pressões? Imaginamos que seria relevante para a Bienal ter a presença de um chinês reconhecido, como Ai Weiwei (economia e política e artes sempre se deram as mãos), personalidade que se manifesta em seu país por liberdade de expressão, que expõe na Tate Modern, em Londres, etc. Mas, apesar da monumentalidade de seu envio, politicamente justificada por sua importância momentânea na cena internacional, qual o interesse de seu trabalho como tantos outros nesta Bienal, sem que se percebesse qualquer introdução que o decodifique ao público que percorre o barulhento ambiente?

Nas paredes, as homenagens... O que antes chamávamos de parte histórico-didática das Bienais agora comparece como presenças fragmentadas. Por que tropeçamos em Flávio de Carvalho em espaços diferenciados e não reunindo todos os seus trabalhos num só espaço, o que faria muito mais sentido para os que desejam captar algo de sua efervescente contribuição? Numa "parede", perdida, uma pintura, o retrato de Sergio Buarque de Holanda; em outra, a maravilhosa série Minha Mãe Morrendo (coleção MAC-USP); noutra, a Experiência n.º 4, da "Viagem à Amazônia"; e em outro pequeno espaço sonorizado, a Experiência n.º 2 - que dificilmente é audível pela interferência gritante de outro trabalho "Dr. Estranho" (aliás, uma obra prejudicando a outra). Por que o fragmentaram dessa forma e não reuniram seu envio como fizeram com o Grupo Rex?

Além da maneira estilhaçada de expor os registros/documentos de Flávio de Carvalho, de Paulo Bruscky e dos dois espaços separados para Antonio Manuel, cabe enfatizar a forma desrespeitosa da exposição dos trabalhos de Goeldi, de Mira Schendel e de Joseph Kosuth - sempre na parede, em passagens, e não para serem vistos com certa concentração.

O lixo organizado. Não é novidade, no cenário internacional, a exposição do lixo organizado, digo, racionalizado, o detrito preparado para ser visualizado, tal como o fez Sara Ramo há algum tempo na Galeria Fortes Villaça, ou como nos apresenta agora Yonamine, de Luanda, na 29ª Bienal, ou Karla Black, com as enormes montanhas de tufos de celofane/plásticos empilhados vistos em outubro último na Saatchi Gallery, em Londres. De alguma forma, a displicência aparente de Artur Barrio, com toda sua peculiar ironia, está também presente em seu espaço programado com caixas abertas rescendendo a bacalhau. Esse trabalho nos aparece como uma sequência de sua sala na Documenta de Kassel de alguns anos atrás, ocasião em que o aroma de pó de café cobrindo o piso atraia os visitantes. Sem nenhuma dúvida, a nosso ver, esses ambientes são bem mais motivadores que seus erráticos textos/desenhos.

Bienal ou Inhotim? É, sem dúvida, difícil organizar uma Bienal, selecionar, viajar e possuir um olhar múltiplo e contemporâneo, e respeitar cada artista pinçado para ser exposto. Mais árduo ainda, e por essa razão, respeitamos os que tomam a si essa tarefa, é ter de realizar uma mostra em exíguo espaço de tempo, como foi o caso desta Bienal, um empreendimento em que tantos da cena artística mundial têm os olhos postos.

Mas precisamos ter em mente que o público é vasto, ansioso e desigual como a população (e a renda) neste país. E devemos a esse público uma satisfação pelo que selecionamos e pela maneira como os expomos. Há um compromisso didático devido. Pressupõe uma responsabilidade, assim como pela educação neste país. É descartável tudo hoje em dia - lixo também é expressão, está por toda a parte, como consequência da sociedade desbragada de consumo? Tudo bem. Mas que esse discurso seja apresentado de maneira clara. Afinal, a "arte contemporânea" é mesmo o que se vê na Bienal ou é o que se expõe através da cuidada estetização que se percorre em paz com o meio ambiente pelos jardins de Inhotim?

QUEM É

ARACY AMARAL
CRÍTICA E HISTORIADORA

Natural de São Paulo, foi diretora da Pinacoteca do Estado e do Museu de Arte Contemporânea da USP. É autora de Tarsila Sua Obra e Seu Tempo (Editora 34/Edusp) e curadora de exposições no Brasil e na América Latina. Foi coordenadora do Rumos Itaú Cultural 2005/6 e fez curadoria na Trienal do Chile (2009).