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32ª Bienal de São Paulo: muita pajelança e pouca magia

A nova Bienal tem pregação sobre o valor da terra e as mazelas dos índios. Há até arte de verdade, mas o conjunto empolga tanto como a novela "Velho Chico" – Por Marcelo Marthe – Veja Online – 7 set 2016, 18h24

Na véspera da abertura oficial da 32ª Bienal de Artes de São Paulo, no feriado de 7 de Setembro, a muvuca na entrada do pavilhão projetado por Oscar Niemeyer oferecia uma pílula do que esperar da nova edição do evento: muita pajelança e pouquíssima magia.

O espectador que adentra o andar inferior do prédio, por onde se inicia a mostra, dá de cara com a seguinte sequência: esculturas feitas de árvores mortas pelo artista e militante ecológico polonês radicado na Bahia Frans Krajcberg; uma instalação do coletivo carioca Opavivará! composta de carrinhos de mão adornados com objetos prosaicos, como garrafões de água mineral; a oca indígena de mentirinha do autodenominado “artivista” paraense Bené Fonteles.

Por fim, numa área ao ar livre, há um jardim com plantinhas cultivadas em pneus e anéis de concreto. Atenção: aqueles canteiros constituem uma obra de arte, não uma horta mal-cuidada. As estrelas da instalação da artista portuguesa Carla Felipe são as “pancs”, sigla que designa  “plantas alimentícias não-convencionais”. No entanto, convencionalíssimos pés de couve e erva-doce ganham o status de insuspeitas vítimas da opressão no título: Migração, Exclusão e Resistência. Duro é resistir à vontade de sair berrando: que pancada é essa, meu Deus?

Resistência natureba

“Incerteza Viva” é o tema que norteia a nova Bienal. Seu curador, o alemão Jochen Volz, vem socorrer os mortais que se perguntam sobre a razão do slogan: “Nesse momento de total incerteza no mundo, a arte pode nos ensinar a viver, apontando novos caminhos para a transformação biológica, material e espiritual.” O problema é que o cardápio da nova Bienal fornece precisamente o oposto do que o tema oficial apregoa: salvo algumas surpreendentes exceções, só apresenta mais daquelas mesmas certezas emboloradas que tornaram as últimas edições do evento tão aborrecidas.

Há a militância política de sempre – ainda que, dessa vez, a celebração do “pobrismo” da Bienal anterior seja substituída pela denúncia das mazelas dos índios e outras vítimas etnográficas. O viés acadêmico-professoral persiste, agora por meio do ativismo ecológico. Em meio a essa celebração indigenista-telúrica-natureba, a cereja do bolo (um bolo de farinha integral e quinua, por supuesto) foi providenciada pela resistência esquerdista de plantão: vestindo camisetas pretas, um grupo de artistas fez na tarde de terça-feira um protesto que tinha o “Fora Temer” como grito de guerra. Visitar a 32ª Bienal é tão empolgante quanto encarar uma maratona da novela Velho Chico.

Onanismo conceitual

A arte, naturalmente, pode ser ecológica, militante, engajada, defensora dos fracos e oprimidos. Mas o meio de campo embola quando os artistas abdicam do essencial: fazer arte. Ou seja: oferecer uma experiência visual e sensorial que transcenda à pregação oca (sem trocadilho indigenista). A decisão de abrir a mostra com obras de Krajcberg, um escultor que milita pela causa da preservação da natureza, mas produz arte de grandeza indiscutível, pode levar à expectativa de que a seleção da Bienal revelaria mais exemplos louváveis da confluência entre política e expressão artística. Só que não.

Nessa arte que enaltece a “Mãe Terra”, os aspirantes a novos pajés oscilam da pieguice à auto-indulgência, passando pelo mais estéril onanismo conceitual – nos piores casos, reunindo tudo isso ao mesmo tempo. Como de praxe, a videoarte é um campo sem fim para essas experiências. Vale ressalvar: a tendência masturbatória está longe de ser um traço só de artistas do Brasil – que compõem cerca de 30% dos mais de oitenta artistas e coletivos representados na Bienal. Se o alagoano Jonathas de Andrade brinda o espectador com um filme em que o prato principal é a imagem de um pescador abraçando carinhosamente um peixão, repetida em looping na salinha escura, o americano Lyle Ashton Harris fala do universo gay e da aids por um prisma absolutamente egocêntrico: seus vídeos mostram ele mesmo realizando tarefas irrelevantes em casa – por exemplo, puxando um belo ronco.

Batatadas

Nesse deserto criativo, quem diria, chega a ser um alento topar com trabalhos que resgatam aquele espírito irreverente, embora irrelevante, que sempre reinou nas bienais. A inglesa Heather Phillipson mostra-se uma autêntica herdeira dessa tradição engraçadinha com a instalação Fiel ao Tamanho, que mescla imagens publicitárias, a linguagem dos emojis e bichos de pelúcia. Na sala montada pelo argentino Víctor Grippo, eletrodos com fios coloridos surgem fixados em batatas. Ao apertar um botão, o espectador obtém uma informação que vai mudar sua vida: batatas geram energia!

Apesar de tantas batatadas, há que se fazer justiça ao curador Volz: além de recuperar certo bom humor ausente na Bienal do pobrismo, ele teve a sabedoria de investir num pequeno, mas substancioso núcleo histórico. Essa ala que salva o visitante do aborrecimento completo se concentra no terceiro e último andar do pavilhão. Às pessoas que não suportam o masoquismo, eu recomendo vivamente que se dirijam direto a esse pavimento.

O que se salva

Lá se pode ter contato com a obra de artistas vintage pouco conhecidos garimpados pelo curador. É o caso do pernambucano Gilvan Samico (1928-2013). Em suas gravuras, ele confere um tanto da visão soturna de seu mestre, Oswaldo Goeldi, às cenas de mitologia nordestina típicas do chamado Movimento Armorial, do escritor Ariano Suassuna. Outra bela descoberta é a obra de Öyvind Fahlström (1928-1976). Nascido em São Paulo e ligado à poesia concreta (consta que ele, aliás, inventou o termo), o artista e poeta de origem escandinava cria telas e esculturas com uma overdose de minúsculas cenas perfeitamente desorganizadas no espaço.

Embora escondidas em meio à discurseira sobre o valor da terra e o lamento pelos oprimidos, algumas pérolas permitem afirmar: há até arte nessa Bienal. Prova disso são as pinturas da mineira Wilma Martins, nas quais imagens em branco opaco de objetos cotidianos contêm espécies de janelas para outras dimensões coloridas e surreais. Ou, ainda, o geometrismo vertiginoso das aquarelas da neo-zelandesa Kathy Barry. É preciso fuçar muito na terra, contudo, para encontrar esses sinais de vida na Bienal da “Incerteza Viva”.