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Diante de uma Bienal de São Paulo estéril, mostras paralelas aderem às notícias

Por Silas Martí para a Folha de São Paulo, 26/09/2018.
Diante de uma Bienal de São Paulo estéril, mostras paralelas aderem às notícias

Obra de Carlos Pasquetti, na mostra 'AI-5 50 Anos', no Instituto Tomie Ohtake. Divulgação

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/09/diante-de-uma-bienal-de-sao-paulo-esteril-mostras-paralelas-aderem-as-noticias.shtml

O tempo era negro, a temperatura sufocante e o ar irrespirável, com fortes ventos. O quadrado reservado à meteorologia na primeira página do Jornal do Brasil de 14 de dezembro de 1968, dia seguinte ao decreto do AI-5, não chamou a atenção da censura.

Nem as legendas das fotografias publicadas logo abaixo, que falavam em “tradição que se renova”, “identidade profunda” e “hora dramática”.

Elevada à condição de obra de arte subversiva, a capa do diário abre uma exposição sobre a reação dos artistas de então e de agora à fase mais violenta da ditadura militar, num paralelo explícito com o que os organizadores da mostra no Instituto Tomie Ohtake enxergam como ameaças de um levante conservador à democracia do país na atualidade.

“Estamos flertando com hipóteses de suspensão das instituições democráticas. Há uma tentativa de normalizar mais uma vez a censura e uma nostalgia de parte da população com relação ao regime ditatorial”, diz Paulo Miyada, à frente da exposição. “Nossa ideia era resgatar a história para lembrar que tudo isso vem com um peso muito alto.”

E a lembrança desse peso se funde a imagens do presente, numa série de mostras com obras de artistas que buscaram no noticiário a matéria-prima de seus trabalhos.

O homem de máscara de gás enfrentando um cordão de chamas, performance de Carlos Pasquetti da década de 1970 revista no Tomie Ohtake, por exemplo, traz à mente a visão de manifestantes e policiais no fogo cruzado das ruas e avenidas do país durante os protestos de cinco anos atrás, as tais jornadas de junho.

Esses episódios ressurgem em filmes de Lia Letícia, numa mostra com obras de arte que usam a imprensa como plataforma, em cartaz no Sesc Pompeia. E também são lembrados na encenação em vídeo de uma briga de rua aludindo às lutas, peça de Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, em exposição na Oficina Cultural Oswald de Andrade.

É sinal de que a temperatura dos fatos invade e molda o cenário artístico. Em paralelo a uma edição mais contemplativa, seca e anódina da Bienal de São Paulo, o resto do circuito se torna incandescente.

“Essas obras são as lentes para a gente observar a realidade num momento difícil, de descrença e desmonte concreto das políticas públicas”, diz Ana Maria Maia, por trás da exposição sobre arte e imprensa. “Há um desejo de resistência e engajamento político nessas mostras, enquanto a Bienal fala de metodologias e dinâmicas da própria arte.”

Ou se isola da realidade num momento de convulsão social.

Delegada por seu diretor artístico, o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro, a um time de sete artistas, a seleção de obras da atual Bienal é um recorte autoral e um tanto formalista de peças que reagem mais ao ego dos curadores do que ao atrito dos tempos atuais —tanto que o mundo lá fora acaba ofuscando o Ibirapuera.

Pérez-Barreiro, que mesmo antes da abertura da mostra já antecipava críticas dessa natureza à exposição, diz agora que “um dos grandes valores da Bienal é gerar debates e opiniões das mais variadas” e que “quem assume a curadoria precisa assumir também eventuais críticas à edição, concorde ou não com elas”.

Sua justificativa para entregar aos artistas o comando da mostra desde o início, aliás, tinha a ver com a busca por um movimento democrático no autoritário sistema da arte, mas acabou expondo o evento a ataques dos que veem ali uma aversão a reflexões mais contundentes diante do que seriam ameaças de verdade ao regime democrático.

“Sinto que a Bienal assumiu uma postura escapista em relação à capacidade de refletir o seu tempo. Está de costas para a realidade”, diz Miyada. “Essa blindagem da Bienal fez da nossa exposição um contraponto que tem recebido atenção especial por isso.”

O fato de essas mostras paralelas serem organizadas em grande parte por jovens críticos e curadores, que não viveram os embates da ditadura, é também um dado revelador.
“Não é um tempo que a gente viveu, mas isso continua influenciando o projeto de país em que a gente vive”, diz Maia.

“Nossa geração sofre com a falha dessa memória. E, se a gente não se relacionar com esse trauma histórico, o nosso presente vai continuar sofrendo com a manutenção de um regime de desigualdade. É nesse estado que a gente volta a viver com intensidade.”

Mas essa não é uma operação sem riscos. O resgate de obras do passado em paralelos nem sempre bem construídos com o presente às vezes esbarra em oportunismo político e noutro tipo de nostalgia, que idealiza a era em que artistas se mobilizaram contra o inimigo comum da ditadura em ações mais e menos sutis e de resultado irregular.

Priscila Arantes, diretora do Paço das Artes e uma das organizadoras da mostra na Oswald de Andrade, rebate, no entanto, essa ideia de nostalgia mais rasteira e lembra que esses são esforços de “conectar os fios soltos entre os anos 1960 e a atualidade” com a ideia de “criar um espaço de reflexão para pensarmos no nosso momento atual marcado por violência, censura e violação de direitos humanos”.

Essa onda de mostras passadistas também dá nova moldura a exposições só de obras históricas, caso de dois recortes recentes da obra de Antonio Dias, morto há um mês.

Na galeria Nara Roesler, está uma série em que o artista tingiu de vermelho páginas do New York Times e do Corriere della Sera com notas sobre o escândalo de Watergate. Juntos das páginas dos diários, estão retalhos de tela no mesmo tom reproduzindo a mancha gráfica das notícias.

Suas pinturas no Auroras, centro cultural no Morumbi, também revelam fragmentos de reportagens sob espessas camadas de tinta vermelha.

Vistos agora, no alvoroço estridente de vozes cruzadas no noticiário e nas redes sociais, seus trabalhos ganham o verniz de dolorida tentativa de preservar a clareza de ideias ao mesmo tempo em que nos atrelamos aos fatos.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/09/diante-de-uma-bienal-de-sao-paulo-esteril-mostras-paralelas-aderem-as-noticias.shtml