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34ª Bienal: correspondência #5

Correspondência da 34ª Bienal de São Paulo publicada em 29/04/2020.
34ª Bienal: correspondência #5

Imagem: © Søren Behncke, Sorry No Image Available [Desculpa nenhuma imagem disponível], 2012

Ao longo do ano de 2020, através de cartas como esta, o corpo curatorial da 34ª Bienal de São Paulo torna públicas reflexões sobre a construção da mostra. Esta quinta carta foi escrita por Francesco Stocchi.

 

Ela havia preparado a viagem, meticulosa e pacientemente, como se faz quando se espera por algo há muito desejado. Nesse momento, sentia que já conhecia a cidade, mesmo antes de tê-la visto, e que a avenida Niévski inteira lhe era familiar. Adorava visualizá-la repetidamente na cabeça: Começando da Dvortsovaya Ploshchad, ou Praça do Palácio, onde ficam o Palácio de Inverno e o Almirantado, às margens do rio Neva, que dá nome à avenida. Segue para o leste, cruzando o rio Mojka e o canal de Griboiedov, com a catedral de Nossa Senhora de Cazã à direita. Depois de 600 metros, surge a fachada barroca do palácio Anitchkov, de onde se avista o rio Fontanka, atravessado pela ponte Anitchkov e suas quatro estátuas de bronze, os Domadores de Cavalos, encomendadas pelo czar Nicolau I ao escultor Peter Klodt von Jurgensburg e instaladas em 1851. A avenida continua até a praça Vosstaniya, dominada pela estação ferroviária Moskóvski e pelo obelisco central do monumento Heróis Defensores de Leningrado, erigido para celebrar a vitória russa na Segunda Guerra Mundial. Então a avenida faz uma ligeira curva para sudeste, e este último trecho, conhecido como Staro-Niévski ou “Velha Niévski”, acaba no mosteiro Alexandre Niévski, que devolve a avenida Niévski para as margens do Neva, depois de um percurso total de quase 4,5 quilômetros.

Em sua mente, tudo parecia tão claro que era como se ela tivesse estado na cidade antes de visitá-la de fato; além das imagens precisas que acabara produzindo, sua sensação era de ter sido mergulhada na genuína atmosfera da avenida Niévski. Sonhava em ser a Nástienka de Noites brancas (1848), de Fiódor Dostoiévski, imersa na luz silenciosa da meia-noite.

Em vez disso, ao chegar lá – o lugar real onde seus sentidos por fim sobrepujaram seus sonhos –, sentiu-se perdida. O que via não coincidia com o que sabia. Estava em um lugar que conhecia de cor, mas que já não reconhecia. Deveria mesmo acreditar no que estava vendo? As grandes alfaiatarias e oficinas de artesãos haviam se transformado em lojas de souvenir, havia poucas placas escritas em cirílico e os arranjos nas vitrines pareciam idênticos aos que costumava ver em seu país. A economia de mercado fizera tudo parecer familiar, homogêneo, inócuo e, portanto, alheio às cenas exóticas que ela esperava encontrar. O cenário era exatamente o mesmo, mas havia sido travestido para ganhar outra imagem. Ela se perdeu no exercício metafísico de tentar preservar o lugar ideal que havia imaginado. Nós precisamos da distância, de lugares remotos e inatingíveis, que jamais serão descobertos. Precisamos do desejo da descoberta e da sensação do desconhecido para alimentar o medo que nos convence de que nossa vida na cidade é a melhor escolha.

Afinal, as cidades ideais nunca são experimentadas ou habitadas de fato, elas se tornam daguerreótipos mentais desbotados de conceitos renascentistas criados por Leon Battista Alberti. A cidade ideal de Piero della Francesca era apenas uma fantasia, assim como aquelas que Giorgio de Chirico pintava. Talvez até mesmo Enea Silvio Piccolomini sempre tenha visto Pienza como essencialmente o mesmo velho lugar onde nasceu: a combalida vila de Corsignano, que ele transformou em uma enorme obra de arte urbana quando se tornou o papa Pio II.

Brasília, projetada por Lucio Costa, com seus edifícios monumentais de Oscar Niemeyer – que por sua vez se guiava pelo racionalismo de Le Corbusier –, deveria regenerar um planalto desolado entre os estados de Goiás e Minas Gerais e libertar o Rio de Janeiro do fardo de ser a capital do país. Seu pior pesadelo é acabar como Zora, uma das cidades invisíveis do livro de Italo Calvino: “obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu”.¹

Chandigarh, a cidade ideal concebida por Le Corbusier em 1950, e que Nehru queria para capital do estado de Punjab do Leste, é a capital de Haryana e Punjab desde 1966. Ela perdeu, ou talvez nunca tenha adquirido, os espaços que deveriam regular racionalmente a vida humana, de acordo com a filosofia do grande arquiteto franco-suíço, embora ainda pareça um museu a céu aberto dedicado a ele. Sua beleza glacial deu lugar a uma intensa realidade, pois a Índia se apropriou dela muito antes que a globalização se apropriasse da Índia.

Em dezembro passado, Kim Jong-un, o líder da Coreia do Norte, inaugurou oficialmente Samjiyon, a sua “cidade ideal”, um dos projetos de desenvolvimento urbano mais importantes do país, que os divulgadores do regime rotularam “a epítome da civilização moderna”. Segundo a rede estatal de notícias KCNA, a cidade, que tem pista de esqui e estádio esportivo, comporta 4 mil famílias. Porém, como aponta a ONG The National Committee on North Korea, ela contrasta violentamente com o resto do país, onde a população vive na pobreza, sofrendo com uma escassez endêmica de comida, eletricidade, água corrente e outros itens de primeira necessidade.

Se no passado os lugares ideais eram formados de maneira mais ou menos autônoma pela mente, criando uma espécie de geografia interna, hoje eles frequentemente se baseiam no realismo e na precisão do dilúvio de imagens que circulam online ou são produzidas pela realidade virtual – a tal ponto que estamos começando a perder contato com a realidade que podemos experimentar de fato, e ficamos cada vez mais incapazes de harmonizar nossas imagens mentais com ela. As tecnologias que geram as imagens, cada vez mais claras e detalhadas, que complementam ou substituem nossa própria imaginação tornam-se mais e mais sofisticadas, o que nos dá a ilusão de que não precisamos visitar de fato um lugar para conhecê-lo, ou sugere que a melhor forma de responder ao constante massacre de informação visual é celebrá-lo e aumentá-lo, talvez fazendo e postando uma selfie que certifique e confirme que realmente estivemos em um dado lugar.

Mas qual é a aparência de um lugar que não produz nenhuma imagem clara em nossa mente? Até que ponto podemos dizer que esses lugares de fato existem, e até que ponto eles pertencem ao reino da imaginação, apenas como lugares ideais? Ou talvez lugares que existem apenas em nossas crenças até a descoberta de sua não existência, como Bermeja.² Se eles existem, devemos considerá-los todos o mesmo lugar, enquanto permanecerem escondidos na escuridão de nossa não-consciência? Afinal, quando ouvimos seus nomes, estes não evocam nenhuma imagem para nós. Não criam reverberações em nossa mente, e temos que nos esforçar para imaginar como são, ao mesmo tempo que nos indagamos como podem existir sem qualquer representação que corresponda a eles. Talvez precisemos visitar esses lugares-fantasma pessoalmente, porque vale a pena descobrir algo que é completamente diferente do que poderíamos ter imaginado – quando nada, para nos libertarmos do engano de nossas projeções mentais. Esses lugares são, frequentemente, um verdadeiro aglomerado de contrastes. Podem ser desprovidos de uma identidade que faça sentido, e podem ser desinteressantes, até mesmo para as pessoas que moram lá; mas nossas concepções prévias são exorcizadas quando finalmente os conhecemos, e o contraste entre o significante real e o significado falso ou parcial podem se conciliar e se harmonizar.

A cadeia de ilhas conhecida como Ilhas Ryukyu se estende em curva desde o sudoeste da ilha japonesa de Kyushu até Taiwan. Chamam-se Ōsumi, Tokara, Amami, Okinawa e as ilhas Sakishima (que inclui as ilhas Miyako e Yaeyama), com Yonaguni sendo a mais ocidental de todas. As maiores são em geral vulcânicas, enquanto as pequenas são feitas basicamente de coral. Okinawa é a maior de todas. Muitas questões relacionadas à importância histórica dessas ilhas estão destinadas a jamais serem esclarecidas, e muitas discussões nunca serão resolvidas, já que um número significativo de fontes primárias e de arquivos sobre o antigo Reino Ryukyu foi destruído em 1945. A história das ilhas Ryukyu é a história das populações diversas e numerosas de um reino expansivo que vivia tentando criar equilíbrio entre seus vizinhos, países grandes e poderosos. As pessoas eram de natureza maleável e dócil. Disponíveis e afáveis, estavam abertas a avanços pacíficos, mas podiam ser bastante teimosas em sua resistência a qualquer mudança indesejada e inesperada.

O aspecto mais notável de sua história é a forma como aceitaram dois modelos culturais diferentes, submetendo-se voluntariamente a eles. A estrutura básica de sua sociedade e de sua língua indica que os habitantes dessas ilhas foram originalmente influenciados pela antiga civilização japonesa. Apesar disso, a China logo tornou-se um ponto de referência vital para os ilhéus, que por quinhentos anos pagavam tributos e impostos à corte chinesa em troca de uma relação privilegiada, com acordos comerciais vantajosos. Durante pelo menos trezentos anos desse mesmo período, porém, o reino reatara suas conexões com o Japão, assumindo algumas obrigações imperiosas. Assim, nos planos social e cultural, gradualmente desenvolveu-se um desacordo entre submissão e identidade, na medida que o Reino Ryukyu passou a obedecer a um novo poder, mas continuou a emular outro. O Japão agora ocupa o posto – que era originalmente da China – de foco da identidade espiritual dos ilhéus, enquanto sua vida econômica e seu governo são controlados pelos Estados Unidos. Estão, portanto, eternamente suspensos entre oposições, equilíbrio e trocas de influência diversas, e talvez por isso tenham sido historicamente incapazes de produzir uma imagem de si mesmos.

Essa distância estética, terreno fértil de imaginação, inventividade e sonhos, está agora sendo violado pela necessidade de adaptar-se ao tempo atual, sem precedentes, da pandemia da Covid-19. A quarta parede foi rompida, desvelando um misto de realidade e ficção, projeção e representação, como vivenciando um verfremdungseffekt.³ Andar pelas cidades tornou-se uma experiência de meta-ficção entre o isolamento e a idealização, sentindo-nos como Littlechap em Stop the World I Want to Get Off [Pare o mundo que eu quero descer].⁴ De uma vez por todas, realmente “o mundo parou”.

Afinal, como Calvino nos lembra, “as cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos”.

 

¹ Italo Calvino, As cidades invisíveis. [1972]. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

² Bermeja é uma ilha fantasma que, em vários mapas desenhados entre os séculos 16 e 19, aparece localizada no Golfo do México, próxima à costa norte de Yucatán. O interesse nessa ilha nasceu da necessidade de divisão, entre o México e os Estados Unidos, das águas do Golfo e dos campos de petróleo ali situados. Para a República Mexicana, a ilha deve ter existido e continuou a existir durante certo tempo. José Angel Conchello, o presidente do PAN (Partido Acción National) tinha várias suspeitas de que Bermeja havia desaparecido por ação deliberada da CIA.

³ “Efeito de distanciamento”, ou “efeito de alienação”, conceito criado pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht.

⁴ Originalmente um musical, com um livro, música e letras de Leslie Bricusse e Anthony Newly, produzido no Reino Unido em 1961, ele narra a vida de Littlechap do momento de seu nascimento até sua morte. Cada vez que algo desagradável acontece, Littlechap dirige-se para o público e grita “Pare o mundo!”.

Fonte: http://bienal.org.br/post/7908

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