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O direito de intervir

Pedro Alexandre Sanches e Ramiro Zwetsch (Carta Capital, 12 de dezembro de 2008)

Matéria originalmente publicada na Carta Capital 


Apelidada algo jocosamente de “Bienal do Vazio” e encerrada no sábado 6 de dezembro, a 28ª Bienal de Artes de São Paulo se mantém alvo de debate, mas menos pelo que era intrínseco a ela e mais por algo que veio de fora e a instituição se esforçou por extirpar. Logo no primeiro dia de exposição aberta ao público, cerca de 40 pichadores “roubaram” para eles grande parte da atenção cobiçada por um evento já de antemão esvaziado. Naquele 26 de outubro, invadiram o pavilhão do Parque do Ibirapuera para imprimir suas marcas nas paredes imaculadas da criação de Oscar Niemeyer, munidos de spray e alguma agressividade.

A mostra, que neste ano ostentou o lema Em Vivo Contato, entrou em vivo contato com os manifestantes. Mas para reprimi-los e prendê-los.

Os desdobramentos não param. A artesã Caroline Pivetta da Mota, de 23 anos, foi presa naquele dia e até 10 de dezembro permanecia na Penitenciária Feminina Sant’Ana, no Carandiru. O taxista Rafael Vieira, também presente no chamado protesto, foi levar documentos para a colega e terminou preso por oito dias.

Caroline, em especial, é evidente bode expiatório de um confronto social de contornos violentos que aterroriza instituições, autoridades, curadores e parte volumosa da sociedade. A ação dos pichadores e a repressão também violenta a Caroline abrem diversos territórios de embate simbólico, entre arte “nobre” e arte de rua, entre o que é considerado arte e o que não é, entre arte, entre repressão e liberdade, entre elite e favela. O confronto é ilustrado até na dimensão ortográfica. Os pichadores se auto-representam como “pixadores”. A norma estabelecida, “culta”, trata os pixadores de “pichadores”. Abre-se um leque de contradições do qual ninguém escapa, e entre o picho e o pixo está o xis de uma complexa questão.

A cicatriz da cisão social aparece no discurso do curador da 28ª Bienal, Ivo Mesquita. “É claro que ninguém esperava que eles pedissem para pichar. Mas aquilo foi um arrastão, e arrastão não é a melhor prática”, diz, em alusão indireta à origem social da maioria dos integrantes de grupos como PiXação – Arte Ataque Protesto, Sustos, Maligno e Túmulos.

O curador critica a atitude “exibicionista”, “narcisista” e “vaidosa” de um suposto líder do grupo, Rafael Augustaitiz, que na opinião de Mesquita é “doido para aparecer na mídia”. Mas em seguida inverte a direção: “O exemplo está aí, vem de cima para baixo. Todas as classes sociais são mal-educadas. Temos uma elite preconceituosa, uma sociedade classista”.

Augustaitiz, codinome Pixobomb, vem da periferia paulistana e estudava artes visuais no Centro Universitário Belas Artes, como bolsista. Seu primeiro ato célebre, em julho deste ano, foi defender a pichação como trabalho de conclusão de curso. Levou a turma para pichar a faculdade de classe média alta. Foi reprovado, acabou expulso da faculdade e ficou sem diploma. Arredio, o ativista pop responde com citação ao filósofo Friedrich Nietzsche a uma tentativa de aproximação por e-mail. “Como falta tempo pra pensar e ter sossego no pensar, não se estuda mais as opiniões divergentes. Contenta-se em odiá-las”, reproduz.

O grupo é heterogêneo e formado por diversos subgrupos. Outro integrante conta que as manifestações são convocadas por e-mail ou em filipetas distribuídas nos vários points de pichadores pela cidade. O ato mais violento aconteceu em setembro, numa galeria privada, ironicamente chamada Choque Cultural. No que apelidam de “atropelamento”, picharam por cima de grafites de outros artistas. E agravaram contradições entre os grafiteiros, artistas de rua em processo de assimilação pela sociedade, e a corrente mais crua e agressiva, adepta do “picho”.

“Todo mundo está assustado”, afirma Mesquita, em referência ao ataque à Bienal. “Não só a Fundação, mas também os museus da cidade tiveram de reforçar a segurança, e isso tem custo.”

Tanto a pichação como o grafite são enquadrados na legislação como crimes ambientais. O artigo 65 da Lei 9.605/98 determina detenção de três meses a um ano para quem “conspurcar edificação ou monumento urbano”. Mas, por trás de implicações policiais e ambientais, há outras, de natureza política. O pichador Tatei, que trabalha como segurança e integra o grupo Túmulos, cita pichações contra Gilberto Kassab e José Serra, na casa do primeiro e junto à “cratera” aberta numa obra do Metrô. Há poucos dias, o Túmulos pichou no muro da casa de Celso Pitta as frases “a cadeia é só para pobre” e “liberdade, Carol”. “A gente não está de bobeira. Agora todo mundo está metendo o pau, mas ninguém quer saber como a gente vive”, diz Tatei.

Mas, para cá desses casos mais agudos, a pichação está fixada na pele da cidade de São Paulo como tatuagem irremovível. Nem o implacável projeto Cidade Limpa consegue combatê-la. Arrancados outdoors e placas, a tinta reluz ainda mais cintilante, no centro ou na periferia, e compõe a paisagem urbana, mesmo incompreensível aos olhos da maioria. Quem a rejeita se acostuma a conviver com ela sem sequer notá-la.

Num sábado, a reportagem encontra-se com um grafiteiro e quatro pichadores participantes das manifestações. Todos são unânimes quanto ao prazer em fazer algo ilegal. “A graça é a ilegalidade, dar vários bonés na polícia”, argumenta o pichador Sustos. “Se fosse legalizado, eu não ia querer mais pixar. Ia perder a graça”, completa o rapper R Hip-Hop.

Outro ativista, o vendedor Alemão, da gangue Larápios, sintetiza intenções por trás das ações: “Deixo uma parte de mim na cidade. Sangro, suo, me desgasto nos rolês. Tenho tanto pixo por aí que me sinto como se eu tivesse um bem material. Tenho uma obra, aquilo me completa”.

Do outro lado da muralha social, há quem seja crítico tanto à arte estabelecida quanto aos invasores. O pintor Rodrigo Andrade, que participou da Bienal de 1985, repudia o que chama de “curadorismo” e declara simpatia pela pichação, mas bombardeia os homens-bomba de spray: “A invasão esvazia a força da pichação, é tiro no pé. É vandalismo travestido de idéia artística. É tudo autopromoção”.

“O que importa é a idéia que fica. Acho que é a primeira vez que surgiu um diálogo mais aberto sobre a pixação”, contrapõe o fotógrafo Adriano Choque, que acompanha essa movimentação há três anos e clicou as três imagens reproduzidas nesta reportagem.

O designer francês François Chastanet, autor do livro Pixação – São Paulo Signature, amplia o foco. “Pixação é vandalismo, e por isso é tão interessante. O fato desses escritos serem ilegais é essencial. Os pixos são um alfabeto desenhado pela invasão urbana”, argumenta Chastanet. “Os pixadores de São Paulo foram capazes de formar sua própria identidade pela tipografia, este fato é único no mundo da comunicação visual de subculturas.”

Questionado sobre o ponto delicado do direito de todos ao acesso ao mundo das artes que ele representa, Mesquita concentra-se nas contradições do lado oposto: “Mas por que eles querem ter acesso a este mundo que eu represento? Por que querem ser institucionalizados? Você deixa de ser transgressivo quando entra na instituição”.

Mas essa contradição parece recíproca. A tentativa de entrada forçada por parte dos pichadores contrasta com o confinamento progressivo da chamada arte oficial. Ao expulsar os segmentos transgressores mais violentos e estranhos a seu dia-a-dia, a Bienal arrisca-se a expulsar a própria transgressão de suas entranhas.

Fora do ambiente de invasão, uma das ações consentidas com maior repercussão na Bienal foi a performance Sem Título – A bondade de estranhos, de Maurício Ianês. Completamente nu a princípio, ele “morou” no prédio da Bienal entre 4 e 16 de novembro, intervalo em que dependeu exclusivamente dos visitantes para obter alimentos e roupas.

Se a nudez, por exemplo, incomodou a sociedade em outros tempos, hoje curador e artista são unânimes em afirmar que não se trata de um trabalho de transgressão. “É mais no sentido de ele ficar morando aqui dentro”, diz Mesquita.

Para Ianês, o conflito trazido pelos pichadores diz respeito à lei, e não à Bienal ou à arte. Mas ele também contempla a contradição, quanto aos limites entre o que as regras vigentes permitem ou não: “Tive a oportunidade de ver outros artistas, músicos e performers que usaram meu trabalho para apresentar o seu, coisa totalmente condizente com a idéia da performance. E não foram barrados”.

O curador cita alguns desses exemplos, como o homem que tocava acordeão e pedia dinheiro aos visitantes dentro do prédio ou o manifestante que espalhava pequenos sinais pelo prédio, e nunca foi identificado.

É fato que tais exemplos não contemplam depredação nem violência explícita. Mas algumas perguntas incômodas rondam a arena de confronto. Quanto da distinção de tratamentos diz respeito ao grau de agressividade de quem se sente excluído de um clube seleto? Quanto diz respeito ao grau de domesticação atingido pela arte de pavilhão? Ou, em termos mais diretos, quanto de tal conflito se explica pela classe social de cada visitante disposto a penetrar (com ingresso gratuito) no santuário de Niemeyer?