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Sobre “O CURATORIAL”

Maria Lind, “On the Curatorial”. Originalmente publicado em inglês na revista Artforum, Nova York, em outubro de 2009. Traduzido para o português para Recibo 80, revista Recibo, ano 13, número 18, edições traplev orçamentos, Recife, 2015.

 

Fonte: https://www.artforum.com/print/200908/the-curatorial-23737

Existe algo a que possamos chamar de “curatorial”? Uma forma de reunir objetos, imagens, processos, pessoas, lugares, histórias e discursos num espaço físico? Um esforço que incentiva a começar pela obra de arte mas não parar ali, a pensar com a obra e ir além, até em oposição a ela? Eu acredito que sim, e imagino que esse modo de fazer curadoria funcione como um catalisador ativo, que gere reviravoltas e tensões – devendo muito às práticas site-specific e sensíveis-ao-contexto, e, mais ainda, às várias tradições da crítica institucional. “O curatorial” seria, portanto, paralelo à noção de “o político”, de Chantal Mouffe, um aspecto da vida que não pode ser separado da divergência e da dissonância, um conjunto de práticas que perturbem as relações de poder existentes. Em seu melhor, o curatorial é uma presença viral que se propõe a criar atrito e gerar novas ideias, sejam vindas dos curadores ou artistas, educadores ou editores.

Esta proposição requer uma revisão contínua das convenções da curadoria. Nos exige um olhar cuidadoso dos projetos curatoriais recentes buscando caminhos possíveis para a curadoria na próxima década. Nesse sentido, a Bienal de São Paulo de 2008, com curadoria de Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen, foi exemplar. Entre mais ou menos duzentas bienais no mundo, a de São Paulo é a segunda mais antiga (sendo a primeira a de Veneza); desde seu início, em 1951, tem sido uma das mais importantes plataformas da América Latina tanto para a arte moderna e contemporânea nacional quanto internacional. Introduziu e renovou conexões entre artistas, visitantes e curadores; estimulou debates cruciais. No entanto, agora que um bom número de institutos e organizações de arte se desenvolveu na região, o papel original da bienal de educar a população se tornou menos pertinente. Essa mudança de perspectiva foi tomada como ponto de partida pelos curadores: se não é mais necessário “iniciar” audiências em arte, poderia ser então o objetivo revisitar o próprio papel da bienal?

Os curadores assim focaram em obras que reflexivamente se engajam em práticas colecionistas e arquivísticas – esse tipo de arte que não tem tanta atenção nas exposições mainstream. A bienal convidou os visitantes a estudar as gravuras detalhadas e auto-biográficas de Leya Mira Brander em mesas-vitrine. A ler sobre o envolvimento de Jean-Luc Godard com redes de televisão em Moçambique, em uma instalação escultórica de Ângela Ferreira. A selecionar fotografias do arquivo de Armin Linke e imprimir seu próprio livro no local. E o mais significativo, quando falamos da estrutura geral da exposição, foi que o modelo “loja de departamento” das bienais anteriores, com arte ocupando cada centímetro quadrado, foi substituído por uma exposição coletiva espacialmente instalada: as obras estavam dispostas no quarto andar; o terceiro andar era quase todo vazio; no segundo andar, um arquivo bem-selecionado de vídeo arte e um vídeo lounge; e, no andar térreo, um espaço livre, a “praça”, para filmes, música e apresentações de dança. Tudo isso acabou se tornando extremamente controverso: enfureceu os que queriam os negócios de sempre, que esperavam arte espetacular e artistas renomados.

Com apenas quarenta e um artistas na exposição, havia tempo suficiente para se envolver em cada trabalho, muitos dos quais exigiam uma atenção mais focada. E, pela primeira vez, o pavilhão desenhado por Oscar Niemeyer, com sua planta livre corbusiana em cada andar, participou em pé de igualdade com as obras. Havia, então, um sentimento de alívio nesta bienal – alívio do peso de ter que representar por completo a vasta categoria da arte contemporânea, e de ter que preencher todo o espaço com obras de arte. Em vez disso, os curadores repensaram a bienal em termos do que estou chamando de “o curatorial”: eles mobilizaram todo um sistema de variáveis e contextos, considerando cuidadosamente a história da bienal, a atual situação institucional de São Paulo e do Brasil, a combinação de artistas e obras, e a incomum organização espacial do prédio, a fim de produzir não um panorama, mas uma situação.

Tal entendimento do curatorial nos permite ler de forma diferente a afirmação – articulada por comentaristas tão diversos quanto Irit Rogoff e Liam Gillick–, de que o programa de arte contemporânea da última década foi em grande parte guiado pela curadoria, mais do que pela crítica ou pela história da arte. Vendo por essa perspectiva, fazer curadoria não é tanto um produto de curadores, mas fruto de um trabalho de uma rede de agentes. O resultado é uma chacoalhada nos padrões vigentes, um modo específico e multifacetado de agitar os ambientes tanto dentro como fora do “cubo branco”. O curatorial envolve não só representar, mas apresentar e testar; propõe algo para o aqui e agora, em vez de apenas mapear algo de outro lugar e de outro tempo. É realmente uma questão de trazer à tona “O que queremos acrescentar ao mundo, e por quê?” Nesse sentido, o curatorial é um conceito qualitativo, assim como “o político”, de Mouffe.

Uma pergunta inevitável, no entanto, surge: terá “o curatorial” produzido mais que uma irritação no mundo da arte, um frisson temporário? Terá ele algum efeito duradouro na forma como pensamos a arte e o resto do mundo? Ainda é muito cedo para dizer. Se o curatorial pode ser tomado por praticamente qualquer pessoa dentro do campo da arte contemporânea, essa expansividade também pode parecer apenas mais um exemplo da diversificação do trabalho na economia da experiência. Ainda assim, eu sei que o mercado da curadoria tradicional, assim como o da indústria de carros, precisa repensar seus modos de produção. Com a proliferação de programas acadêmicos curatoriais ao redor do mundo, o pensamento criativo é necessário para criar oportunidades profissionais – mas também para questionar a própria profissão. Os empregos já existentes para curadores simplesmente não serão suficientes.

Fonte: https://www.artforum.com/print/200908/the-curatorial-23737