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A nova casa - Abertura da Casa Daros no Rio de Janeiro

Por: Julia Buenaventura

 

Após uma década de conversas, pesquisas, aquisições e um meticuloso processo de remodelação, Casa Daros abrirá as portas de uma edificação cuja escala é, no mínimo, monumental.

Localizada em um extremo do bairro Botafogo de Rio de Janeiro, perto do Pão de Açúcar, os doze mil metros de área da Casa –cuja sede está em Suíça-- acolheram um acervo de cento e dez artistas e mil e duzentas obras.

Tudo começou em 1999, quando o curador alemão Hans Michel Herzog expôs a colecionadora suíça Ruth Schmidheiny –que já contava com um importante conjunto de obras europeias e estadunidenses–, a idéia de iniciar uma nova coleção, esta vez de obras latino-americanas. Em 2004, foram planejadas as bases e objetivos gerais do programa, no qual duas particularidades podem ser destacadas; de um lado, o interesse em dar a palavra aos artistas, formar espaços para escutar suas vozes e seus pontos de vista, gerando pontes de conversação, hoje cada vez mais difíceis: os artistas não estão discutindo entre eles, menos ainda se são de países vizinhos. De outro, elaborar uma agenda na qual arte e educação estejam no mesmo patamar, revelando sua natureza comum como campos de comunicação e conhecimento. No começo de 2006, foi comprado o imóvel, lugar de exposições e atividades, ambas igualmente relevantes para o projeto, e, a partir daí, começou o processo de restauração do antigo prédio de estilo neoclássico construído em 1866, patrimônio da Cidade do Rio de Janeiro.

A modernização da casa, sete anos de trabalho, envolveu levantar uma estrutura interna que fosse capaz de sustentar o peso que algumas obras exigirão no futuro; instalar sistemas anti-humidade, condicionadores de ar e isolantes de som e construir o auditório; processo em que, contudo, o edifício foi respeitado, de forma que o telhado original de barro manteve-se intacto, e as portas –cuja altura é a largura da rua em frente– restauradas, tirando capas e capas de esmalte branco que durante décadas cobriu-as, para deixar sua madeira a vista, o que constitui um verdadeiro espetáculo. É preciso dizer que os cupins foram expulsos, o que não é, certamente, uma tarefa simples. Sete anos de trabalho sobre a casa que estiveram acompanhados pela organização de seminários e encontros, exposições itinerantes, e por uma atividade de conhecimento do terreno, do contexto: Rio, Brasil, América Latina.

Hoje, diretoria da Casa Daros está formada pela brasileira Isabella Rosado Nunez, diretora geral, o cubano Eugênio Valdez Figueroa, diretor de arte e educação, e o próprio Hans-Michel Herzog, diretor artístico e curador da coleção e que deu a entrevista que acompanha este texto. Diálogo que decidi focar nesses assuntos que acostumamos nos perguntar com respeito a um curador ou colecionador: o que o leva a escolher uma coisa e não a outra?

 

Em 1990, depois de estudar arte europeia, você vai para as Ilhas Canárias e descobre um novo panorama de arte latino-americana, espanhola e africana, que desperta seu interesse. Como foi a coincidência desse seu interesse e o início da Coleção Daros Latino-América?

Durante os anos noventa não pude realizar nada com as informações que tinha conseguido, porque nessa época ninguém estava interessado na arte latino-americana. Depois, por um outro motivo (o empréstimo de uma obra que precisava para uma mostra na Alemanha), conheci os colegas da Coleção Daros, e tivemos uma conversa na que eles me disseram: “Olha, temos uma idéia, um projeto sobre Latino-américa”. Mais adiante, convidaram-me a falar com Ruth Schmidheiny, a dona desta coleção. Encontramo-nos, e fomos nos aproximando. Eu propus a ela um projeto e concordamos sobre como poderia ser uma coleção latino-americana.

 

Em algum momento, você afirmou que o panorama de arte europeia lhe produzia um certo tédio. Por que?

Sim. Não só a arte europeia, mas dos dois lados do Oceano, de Estados Unidos e Europa. Viajei muito pela Europa durante os anos 80. Não sei quanto tempo passei só em Nova York. Conheci o cenário: colegas, colecionadores, artistas, etecetera, e fiquei entediado, pois uma vez você conhece o cenário, o conhece. Achei-o um pouco repetitivo e formalista.

 

E qual seria a diferença entre esse cenário e o cenário da arte latino-americana atual?

Nessa época, especialmente para mim, era algo por descobrir. Compreendi que se tratava de algo muito importante. Existia uma quantidade de artistas e de obras que quis explorar, compreender, isso foi um desafio. O outro desafio se apresentou no trabalho, nas viagens, na comunicação e escuta de diferentes pessoas do mundo das artes na América Latina. Em pouco tempo, compreendi que existia outro tipo de relação com as artes. Tudo era mais intenso. A forma como os artistas pensavam a arte, como a penetravam; seus objetos, a forma como queriam expressar suas idéias. Eu não estava costumado a ter muitas discussões onde morava, pois na Europa, igual aos Estados Unidos, as pessoas já não discutem as obras de arte. Na América Latina era completamente diferente, muito mais intenso, mais vivo.

 

Nos textos institucionais da Casa Daros, diz: “Para nós é importante que ela [a coleção] seja composta por obras que não representem simplesmente a arte pela arte posso afirmar que encontrei o menos de isso, pois a quantidade de produçoas j isso foi um desafio. O outro desafio se apresentou”; essa seria uma característica da coleção ou da arte latino-americana?

É muito difícil generalizar. Claro, é um fato que não quero trazer exemplos da arte pela arte nesta coleção. Contudo, é um fato que esse tipo de arte existe no mundo inteiro, na América Latina também. Não poderia dizer se a arte latino-americana tem um pouco menos disso, pois a quantidade de produção é enorme, mas posso afirmar que encontrei muitos personagens do mundo latino-americano que produziam coisas que não tinham nada a ver com a arte pela arte e posso afirmar que, na Europa, encontrei uma maior quantidade de artistas formalistas. Porém, pode ser uma opinião pessoal.

 

No entanto, essas linhas introdutórias da coleção são interessantes, porque mostram uma posição na seleção das obras, e abrem todo um espaço de discussão. O que acha?

Se é assim, estou mais que contente. Vejo esta coleção como um contentor, e quero que outros colegas, sejam latino-americanos ou de outras partes do mundo, possam fazer novas exposições, constelações, utilizando a própria coleção. Eu ficaria mais do que feliz se alguém viesse a selecionar obras do acervo da Casa Daros Latino-américa, pois não é somente para nós.

 

A coleção, então, está aberta a empréstimos, a circulação?

Completamente. Interessa-nos que mais pessoas possam vê-la, desde pontos de vista distintos, diferentes do nosso.

 

Nesses vinte anos de experiência, em todo esse tempo viajando pela América Latina, e trabalhando com a Casa no Rio, como vê a relação entre a arte brasileira e a arte dos países hispanos?

Para começar com o passado, com a arte Concreta, temos toda uma relação entre os países culturalmente importantes na época: Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai. Mas essa relação ficou no passado. Tivemos o corte, a catástrofe dos regimes militares em muitos países, o que durante bastante tempo quase aniquilou todo o progresso cultural e humano. Desde o fim desse período até agora, ainda sendo claramente poucas décadas, é como se cada pais tivesse começado se reconstruir novamente e, neste momento, temos desenvolvimentos diferentes em cada lugar. É claro que também o Brasil teve um processo diferente dos outros países, no que se refere a artes plásticas. Hoje, acho, o Brasil é um pais que está muito bem economicamente. E, embora tenha muitos problemas, há uma tradição de colecionismo. Há vários museus, ainda que não sejam suficientes, ou instituições culturais que estão expondo as obras. Isso significa que se uma pessoa chega como jovem artista brasileiro, e alguém começa a comprar sua obra, já está alcançando, mais o menos facilmente, um certo nível no mercado. Isso, como sempre, tem um lado negativo, ainda quando não seja um erro específico dos brasileiros, mas um efeito do mercado: uma produção muito grande se torna, as vezes, superficial.


Que efeitos têm a consolidação desse mercado no Brasil? Está mais consolidado?

Sim, muito mais. Por isso penso que em muitos outros países latino-americanos, talvez haja mais rigor no pensamento, na produção.

 

Porquê abrir a Casa Daros no Rio de Janeiro?

Desde que começamos a coleção, sabíamos que um dia teríamos de procurar um lugar na América Latina. Comecei a procurá-lo em Havana. No início, tive a idéia de ter duas casas; era um pouco naif ou megalómano, mas foi assim. Tudo ia muito bem lá, até que em 2003 Fidel começou com as represálias contra os dissidentes e outras pessoas. Então ninguém queria apoiar Cuba, e por isso o projeto não foi para frente. Quase no dia seguinte fui para o Rio de Janeiro, que sempre foi minha segunda opção. Por que o Rio? Porque pensava em um centro, e o Brasil é o maior país e está no meio do continente. São Paulo não, pois já tinha muitas instituições culturais que funcionavam mais ou menos bem. Nessa época, no Rio quase nada funcionava. O Museu de Arte Moderna estava em uma situação terrível, embora hoje esteja muito melhor. Do mesmo modo, consideramos a quantidade de artistas que moram no Rio, pois isso sempre foi a base de tudo. E porque é uma cidade muito grande, também isso esteve claro desde o começo; não iríamos a América Central, por exemplo. Também pensei em Bogotá, mas, na época, os dirigentes de Daros disseram que não. Bogotá não era ainda tão segura e não queríamos fazer isso lá nesse momento. Tampouco quis fazê-lo em Buenos Aires, pois Buenos Aires já tem sua infraestrutura, que está funcionando bem, e nos países andinos é difícil pois estão um pouco mais na margem de tudo. Aliás, quando você convida as pessoas ao Rio, todas vem.

 

 

Por que abrir a Casa Daros com uma exposição de arte colombiana?

Quero fazer algo de impacto na cultura política brasileira. Estamos no Brasil e sabemos como são as coisas aqui: “Tudo bom, tudo ótimo, tudo joia!”. É ótimo tudo isso, mas claramente na vida nem tudo é joia, alegria, e disso quero falar um pouco. É por isso que quero abrir com Cantos Contos Colombianos, para que os brasileiros compreendam o que está acontecendo em um país vizinho, que para eles é tão exótico, quanto para um suíço ou um alemão. Eles vêem a droga, a guerra, o sangue, etc., e não sabem nada sobre. Não é sua culpa, mas não sabem que há outro aspecto cultural e algo que está florescendo nesse país. Por isso quero abrir com a Colômbia, para dizer aos brasileiros: “Escutem!, vocês não têm ideia do que acontece ao seu redor. Olhem, por favor, saibam, e vão ver a alta qualidade da produção artística do pais vizinho”. Assunto que vai se repetir em outras ocasiões e com outras obras de arte. Porém, não é que eu esteja interessado em representar país por país, essa não é a minha intenção. Nunca foi, mas neste caso sim, porque para mim é algo problemático.

 

O Brasil sempre parece estar olhando para a Europa ou Estados Unidos?

E para seu próprio umbigo...

 

Esta exposição tem um alto conteúdo político. No geral, a arte colombiana tem um grande conteúdo político. Como você vê isso?

Certamente. Acho excelente, pois é o que os artistas colombianos expressaram durante a década de 90. Acho justo e natural que um país como a Colômbia produzisse essa arte nessa época.

 

É interessante mostra-lo justamente aqui, no Brasil, porque se trata de um país onde a discussão política está um pouco anulada. Há discussões sobre futebol, como se o futebol tivesse suplantado à política...

Sim, sim, exatamente.

 

Para fechar, queria perguntar-lhe: depois desses vinte anos trabalhando no panorama da arte latino-americana, de toda essa experiência, não foi afetado novamente por um pouco de tédio?

Não, nada de tédio. Vejo um panorama que se abre, que cada dia se desenvolve mais, altera-se, um panorama muito interessante e bastante fértil.

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Cantos Contos Colombianos

A exposição inaugural da Casa Daros terá obras dos artistas: Doris Salcedo, Fernando Arias, José Alejandro Restrepo, Juan Manuel Echavarría, María Fernanda Cardoso,  Miguel Ángel Rojas, Nadín Ospina, Oscar Muñoz, Oswaldo Macià e Rosemberg Sandoval. Uma edição desta mostra foi realizada em Zurique entre os anos de 2004 e 2005.

 

Publicado na Revista Arcadia, (Publicaciones Semana) Bogotá, Colômbia. www.revistaarcadia.com