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Por que falas como a de Alvim têm espaço no bolsonarismo

Por Estêvão Bertoni para o NEXO Jornal em 17 de jan de 2020.
Por que falas como a de Alvim têm espaço no bolsonarismo

O EX-SECRETÁRIO DE CULTURA ROBERTO ALVIM, DEMITIDO POR BOLSONARO/FOTO: CLARA ANGELEAS/SECRETARIA ESPECIAL DA CULTURA

Dois doutores em história falam ao ‘Nexo’ sobre os elementos presentes nas sociedades que alimentam o aparecimento de manifestações nazifascistas

O presidente Jair Bolsonaro demitiu na sexta-feira (17) o secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, após a repercussão negativa de um vídeo feito pelo dramaturgo para divulgar um prêmio que daria dinheiro a artistas conservadores. No material, Alvim parafraseou um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista.
Em nota, o presidente classificou a fala de “infeliz” e disse que o episódio tornou “insustentável” a permanência do secretário. Bolsonaro aproveitou para dizer que repudiava “ideologias totalitárias e genocidas, como o nazismo e o comunismo” e manifestou apoio à comunidade judaica.
O vídeo gerou reações dos presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, do Senado, Davi Alcolumbre (que é judeu), e do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. A Conib (Confederação Israelita do Brasil) defendeu a saída imediata do dramaturgo da secretaria.
O perfil de Roberto Alvim
Alvim ficou menos de três meses no cargo. Ele havia sido escolhido para comandar a cultura no governo por seu posicionamento político. Em junho de 2019, quando foi escolhido para dirigir o Centro de Artes Cênicas da Funarte (Fundação Nacional de Artes), convocou “artistas conservadores” para formar “uma máquina de guerra cultural”.
Já em setembro, disse sentir repulsa da atriz Fernanda Montenegro, a quem chamou de mentirosa por ter feito críticas ao governo. No mesmo mês, enviou um áudio a Bolsonaro dizendo que queria apresentar a ele “um projeto gigantesco, que vai gerar a partir de janeiro um bombardeio de arte conservadora na população”. Por sua fidelidade ao governo, acabou sendo escolhido como secretário em novembro.
Na quinta-feira (16), um dia antes de ser demitido, Alvim participou de uma transmissão ao vivo pelo Facebook ao lado do presidente, que o elogiou. “Depois de décadas, agora temos um secretário de Cultura de verdade”, afirmou Bolsonaro.
O dramaturgo tinha um perfil de extrema direita marcado pela defesa de uma arte conservadora que valorize a pátria, a família e o cristianismo. Também costumava atacar a esquerda. Características comuns ao presidente, que resistiu a demiti-lo e só teria tomado a decisão por pressão após a repercussão negativa do discurso entre o público e autoridades.
A intolerância no discurso bolsonarista
Durante o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, Bolsonaro dedicou seu voto a Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel que comandou a repressão na ditadura e que foi condenado por tortura. Durante a campanha para a Presidência, defendeu “fuzilar a petralhada” e afirmou que a minoria tinha que se curvar à maioria. Durante um evento com crianças venezuelanas na quinta-feira (16), disse que a esquerda não merecia ser “tratada como pessoas normais”.
As reiteradas manifestações de intolerância do capitão reformado do Exército com cunho racista, machista e homofóbico são vistas por historiadores como um incentivo para que membros do próprio governo façam declarações que remetam ao fascismo, como a de Alvim. O próprio filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, já defendeu atitudes autoritárias como fechar o Supremo com um “soldado e um cabo” e a volta do AI-5, caso houvesse protestos contra o governo.
Na sexta-feira (17), a Secretaria Especial de Cultura retirou o vídeo de Alvim das suas contas oficiais nas redes sociais “em respeito a todos os cidadãos que se sentiram ofendidos”. No mesmo dia, Bolsonaro chamou a atriz Regina Duarte para assumir a pasta. O convite ainda não teve resposta.
Duas análises sobre as falas de Alvim
Para entender o contexto em que o vídeo do ex-secretário de Cultura ocorreu, o Nexo ouviu dois historiadores que se dedicam a estudar o nazifascismo. São eles:
Ana Maria Dietrich, doutora em história e professora da Universidade Federal do ABC
Tiago Chagas Soares, doutor em história pela USP
Quais os elementos presentes nas sociedades que incentivam discursos fascistas e nazistas?
Ana Maria Dietrich: São muitos e variam de sociedade para sociedade. Podemos dizer que crises políticas e econômicas são alguns deles. Sociedades que tenham uma educação para a cidadania e uma democracia precária também são propícias para o desenvolvimento desses discursos, bem com a falta de memória histórica com relação aos regimes totalitários e autoritários. No caso do nazismo, há um desconhecimento do que foi o genocídio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Tiago Soares: É complicado encontrar um denominador comum, até porque existe uma ascendência global desse tipo de discurso que sempre se articula com as especificidades de cada país, como sua história e suas relações sociais. Essas ideias, quando vêm para algum país, são absorvidas e transformadas, geram um novo discurso e voltam para o debate global. Há uma retroalimentação. Houve uma desorganização dos arranjos desenhados a partir do final da Segunda Guerra Mundial que criavam uma certa estabilidade no modo como os governos e as mediações as suas instituições funcionavam, que era esse acordo da democracia liberal ocidental. Essa desorganização ocorre com as transformações super-recentes nos mecanismos de comunicação, debate público e de participação social. Os espaços que eram de uma certa validação e de estabilização de certas ideias como uma espécie de filtro do que é aceitável ou não começam a ser desorganizados e neutralizados, e as pessoas não sabem se a informação que vem da ciência é mais ou menos factualmente correta do que recebem no WhatsApp. Isso desorganiza não só os arranjos políticos, mas tem também um efeito muito poderoso na cultura e na própria construção de mundo e identidade das pessoas. A crise do modelo econômico cria um mal-estar muito grande. O Brasil vem de uma tradição de uma sociabilidade muito violenta. Isso meio que vira um caldo de cultura maluco que abre margem à emergência desses discursos mais radicais.
Por que integrantes do governo Bolsonaro se sentem à vontade de fazer discursos assim?
Ana Maria Dietrich: Porque o presidente sempre disseminou esse tipo de ideia com base em ataques a minorias como mulheres, comunidade LGBTI e negros, e foi eleito por grande parte da população brasileira que está em sintonia com esses ideias, principalmente por serem contra as políticas de inclusão e ascensão das classes menos favorecidas aos espaços sociais que antes só pertenciam às classes mais favorecidas. É reflexo de uma sociedade marcada pela desigualdade social.
Tiago Soares: Embora existisse uma grande crítica aos espaços de filtro do debate público que foram organizados no pós-Guerra, isso ainda era um filtro. Essa reorganização radical os espaços, que era vista com muita animação como uma horizontalização total dos espaços da comunicação, também caiu. Houve uma espécie de alargamento do aceitável no debate público. A gente tem uma desorganização enorme do mercado de comunicação e, nesse alargamento, essas ideias radicais circulam e não encontram um repúdio ou um filtro tão intenso, que coloque o que é aceitável ou não. Essa desorganização permite que ideias mais radicais de uma extrema direita, que são debatidas abertamente pelo núcleo duro do bolsonarismo, entrem no debate público e sejam legitimadas. Uma vez legitimadas, há um reposicionamento do que é aceitável ou não no debate público até chegarmos a um ponto em que um oficial de governo de alto escalão emula e faz uma espécie de teatro da política nazista para o horror do resto do mundo. A gente chegou a um estágio bastante disfuncional do nosso debate público. A repulsa que isso gerou de modo tão rápido mostra que existe algo não tão bem equilibrado no modo como a gente entende o que é aceitável. As ideias estão circulando e meio que saem de controle. Embora tenha existido uma ação [demissão] dentro da institucionalidade, o fato de a fala dele ser apresentada como uma manifestação de governo gera uma variação que vai alimentar outras manifestações radicais. Talvez não do governo, mas isso pode ter desdobramentos em outros espaços da cultura, em outros espaços da manifestação pública e que podem, de uma maneira ou de outra, seguir mudando e retroalimentando essa radicalização.
O ataque ao Porta dos Fundos teve caráter fascista. Há o crescimento desse movimento no país?
Ana Maria Dietrich: Esses grupos alinhados ao neonazismo e a extrema direita existem no Brasil a partir das décadas de 1980 e 1990, mas agiam isoladamente sem respaldo político. Agora, sentem-se mais à vontade para se movimentar, pois há um governo com simpatia a essas idéias.
Tiago Soares: Essa constituição de grupos que entendem a política como um exercício da força e da violência é algo que dialoga com uma espécie de nova estrutura de ideias que circula globalmente. No Brasil, esses grupos estavam à margem. Não se apresentavam tão próximos da centralidade do debate público. Existe uma movimentação que parece trazer esse tipo de ação mais para o centro do debate como algo que não é tão anormal. A gente não chegou a uma normalização ao ponto de que chegou a ser parte do dia a dia das pessoas. Mas existe uma certa falta de estranhamento. É um tipo de coisa que há não muito tempo seria visto como extremamente anormal e despertaria um imenso choque nas pessoas.
Alvim defendeu uma cultura “heróica” e “nacional” e nossos “mitos fundantes”? O que isso significa para o nazifascismo e como se liga à história brasileira?
Ana Maria Dietrich: Trata-se de uma imensa semelhança com o discurso do ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. Esse discurso tem fundamento nos ideais totalitárias do regime nazista: culto à nação (comunidade nacional) em detrimento dos não nacionais, retorno aos heróis e aos mitos. Na nossa história, temos dois períodos que parte desse discurso tem ressonância: Estado Novo (1937-45), no qual se fala da formação do homem nacional, e quando havia circulação de teorias eugênicas. O outro é a ditadura militar (1964-1985), em que também há uma sobrevalorização do nacional e do discurso de que os militares eram heróis que iriam salvar a nação dos comunistas. Nos dois períodos, a polícia política agiu no Brasil, e houve a Lei de Segurança Nacional que favorecia muitas arbitrariedades. Esses são regimes autoritários, enquanto o regime nazista foi totalitário.
Tiago Soares: Há um denominador comum a todos os movimentos fascistas e que gravitam em torno deles, que é a ideia de recuperação de um passado idealizado, de reconstituição de uma tradição e de uma mitologia perfeita que muitas vezes não é exatamente a história do país, junto a uma intensa defesa da modernização da tecnologia. É mais ou menos como viver um passado idealizado com uma excelência técnica. Ao mesmo tempo, o intelectual camaronês Achille Mbembe sugere que o fascismo tem como um de seus traços fundadores uma espécie de perda de controle dos países colonizadores do final do século 19 e começo do 20, do que foi a tecnologia de organização social e de controle das colônias. O fascismo seria a aplicação dessa tecnologia na própria metrópole, com o controle extremo dos corpos, da sociabilidade, do lugar de cada um na sociedade. A partir dessa ideia, há um nexo entre a tradição escravocrata do Brasil, essa sociabilidade construída a partir da escravidão, e o fascismo. Nessa busca do mito fundante do Brasil, não seria absurdo imaginar uma certa busca de um passado escravocrata idealizado também, em que cada um tem seu lugar na sociedade. Então, é uma espécie de fusão da tradição europeia com o que seria uma tradição brasileira. ​​
Bolsonaro disse que a esquerda não merece ser “tratada como pessoas normais”. Como enxerga esse discurso?
Ana Maria Dietrich: Há uma semelhança com os discursos fascistas de exclusão do diferente, quer seja um alvo político (esquerdas) ou social (minorias). O grupo alvo são as esquerdas ou quem apoie os partidos de esquerda e de ideias mais progressistas. Há, sim, riscos pois esses discursos refletem em toda a sociedade, mesmo que não haja ações políticas efetivas por projetos de governo. Os apoiadores se sentem à vontade para agir alinhados a esse tipo de discurso.
Tiago Soares: É um risco, porque a gente também vive uma transformação no modo como esses dispositivos de força funcionam. Temos na nossa memória, por conta da experiência da ditadura de 1964, a ideia de um regime de força e de controle e repressão violenta como um aparato de Estado de cima para baixo, pesado, com uma grande capilarização dentro da máquina pública. O que existe, hoje, no modo como esses regimes funcionam, é uma espécie de regime de controle e vigilância dentro da sociedade para a sociedade, quer dizer, você legitima que um braço armado da própria sociedade faça esse trabalho de controle e vigilância. Não chegamos ainda a um ponto de extermínio, mas ataques como o do Porta dos Fundos mostram que existe uma escalada disso. O ponto, nesse novo modo de funcionamento do autoritarismo e do totalitarismo, é que a relação deles com a máquina pública, por ser mais porosa e eventual que seja, é a legitimação. Uma vez que o comando do regime mande um sinal, ao dizer que um grupo, ação ou obra é indesejável, essa rede é mobilizada. A desorganização da informação, a pulverização do poder que permite que a sociedade se organize de modo muito mais rápido e maleável para se colocar contra abusos também pode, numa engenharia reversa, servir para abusos.