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Saiba como foi a atuação de Roberto Alvim no governo de Jair Bolsonaro

Por Ana Clara Brant e Mariana Peixoto em 18/01/2020.
Saiba como foi a atuação de Roberto Alvim no governo de Jair Bolsonaro

Trecho do vídeo em que Roberto Alvim emula Joseph Goebbels ao anunciar criação de prêmio de fomento à cultura brasileira (foto: REPRODUÇÃO)

 

Foram 216 dias. Da entrada, em 18 de junho, à demissão, no início da tarde desta sexta-feira (17), não faltaram polêmicas na curta trajetória do diretor e dramaturgo carioca Roberto Alvim, de 46 anos, no governo Jair Bolsonaro (sem partido).
Em nota, o presidente da República comunicou o desligamento do secretário especial de Cultura da pasta, por causa de “um pronunciamento infeliz”. “Ainda que tenha se desculpado, tornou insustentável a sua permanência”, declarou Bolsonaro.
O mandatário se referia ao vídeo divulgado na noite de quinta-feira (16), em que Alvim, ao anunciar a criação de um prêmio nacional das artes, no valor de R$ 20 milhões, emulou um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, proferido em maio de 1933.
“A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada”, afirmou Alvim. O episódio gerou estupefação e repercutiu muito além do setor cultural e das fronteiras brasileiras.

ELOGIO

Bolsonaro, que na véspera elogiara seu secretário, afirmou repudiar as “ideologias totalitárias e genocidas, bem como qualquer tipo de ilação às mesmas”. Ele também manifestou “total e irrestrito apoio à comunidade judaica”.
Alvim chegou ao governo – primeiramente, foi diretor do Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e, a partir de novembro, tornou-se secretário especial de Cultura – no estilo Bolsonaro. Foram as redes sociais que chamaram a atenção para o diretor, até então um dos mais prestigiosos nomes das artes cênicas de São Paulo.
Em junho, ele publicou em sua conta no Facebook um chamamento para “artistas conservadores” criarem “uma máquina de guerra cultural”. Horas após a publicação, voltou às redes afirmando que não se referia a “orientações ideológicas, muito menos partidárias”. Segundo Alvim, sua intenção seria criar uma associação com artistas que se alinham ao conservadorismo na arte e que amassem “profundamente os mestres do passado e as obras clássicas por eles criadas”.
No começo de sua gestão na Funarte, artistas denunciaram censura por parte de Alvim. Ele teria proibido a peça Res Pública 2023, que ocuparia uma sala do Complexo Cultural Funarte SP. “A peça não foi aprovada porque me pareceu que não havia nela alusão estética, apenas um discurso político. Isso não se chama censura, e, sim,  curadoria”, declarou na época.

Em setembro de 2019, Alvim voltou às redes, desta vez para atacar Fernanda Montenegro. A atriz, então com 89 anos, havia posado para a revista literária Quatro cinco um vestida como uma bruxa prestes a ser queimada em uma fogueira de livros. Alvim a chamou de “sórdida” e “mentirosa”.
Em abril do mesmo ano, em entrevista ao Estado de Minas, Alvim, ainda sem nenhum vínculo com o atual governo – era diretor da Cia. Club Noir, que mantinha o teatro homônimo na Rua Augusta, no Centro de São Paulo – contou que tinha decidido trabalhar em teatro por causa de Fernanda Montenegro.
Ele tinha 13 anos quando foi levado pelos pais para assistir à peça Fedra, primeiro espetáculo teatral adulto que ele viu. Corria o ano de 1986, e a montagem de Augusto Boal com Fernanda Montenegro no papel-título lhe arrebatou de uma forma definitiva. “Fiquei tão fascinado que acordei no dia seguinte decidido a ser diretor de teatro”, afirmou. Entre abril e maio, a Club Noir cumpriu, no CCBB-BH, temporada de montagem de Fedra dirigida por Alvim e estrelada por sua mulher, a atriz Juliana Galdino.
As críticas de Alvim a Fernanda Montenegro, a dama do teatro brasileiro, suscitaram uma enxurrada de protestos, desgastaram a relação de Alvim com o ministro da Cidadania, Osmar Terra, ao qual a Funarte estava vinculada. Pressionado, Alvim declarou que estava sendo vítima de “um ativismo judicial orquestrado” e negou que deixaria o cargo. “Cargo, só entrego morto.”
Ainda em setembro, mais um imbróglio. A revista Veja revelou que Alvim havia tentado contratar Juliana Galdino para assumir a direção artística, em Brasília, do Projeto de Revitalização da Rede Nacional de Teatros. Na capital federal, o projeto consistiria na montagem da peça Os demônios. Pelo trabalho, a produtora Flô Produções e Entretenimento, de Galdino, receberia R$ 3,5 milhões. A escolha da atriz e da produtora tinha sido feita sem licitação ou processo seletivo.
Na esteira dessas duas polêmicas, Osmar Terra exonerou 19 funcionários da Funarte, sem o conhecimento de Alvim. Mas, em outubro, o ministro voltou atrás na exoneração, no que foi interpretado como uma vitória de Alvim na queda de braço com o ministro, garantida por sua proximidade com Bolsonaro. Embora o ocupante do cargo de direção da Funarte tradicionalmente despachasse no Rio de Janeiro, onde fica a sede da Fundação, Alvim fazia questão de permanecer em Brasília.
Com os funcionários reempossados, Alvim afirmou que o episódio tinha sido “um mal-entendido” e que “agora os trabalhos voltarão à normalidade”.
Em novembro, Alvim foi promovido a secretário especial de Cultura, e Bolsonaro transferiu a Secretaria Especial de Cultura para o Ministério do Turismo, desvinculando o secretário, portanto, da pasta de Osmar Terra (MDB).
Já secretário, num evento na Unesco, em Paris, Alvim atacou a arte produzida no Brasil nos últimos 20 anos e declarou que cultura teria se transformado em palanque político e instrumento de um projeto de poder da esquerda. Concluiu esse discurso com um pedido de retorno aos clássicos e a expressão “glória a Deus”.

Alcoolismo e conversão

A adaptação de Leite derramado (2016), do romance homônimo de Chico Buarque, foi um divisor de águas para o diretor Roberto Alvim. Mais em termos pessoais do que profissionais, a despeito do sucesso da montagem. Em relato ao programa Na verdade, exibido em 20 de julho na Rede Século XXI (emissora de TV do interior paulista, com programação eminentemente católica), Alvim, ao lado da mulher, Juliana Galdino, se emociona ao relembrar sua conversão.
“A peça me consumiu demais, o processo de ensaio era angustiante. Mergulhei pesado no alcoolismo para tentar soltar minha criatividade. Tenho 1,90m de altura, peso 100 quilos. Na época, pesava 75, todo mundo me chamava de vampiro, suava o tempo inteiro, era como uma figura d'O gabinete do Dr. Caligari (clássico do terror do cinema mudo dos anos 1920)”, disse. Citou ainda o “sucesso gigantesco” da peça e sua amizade com Chico Buarque, “ídolo da alta esquerda”, e Vladimir Safatle, “um dos maiores filósofos da extrema-esquerda”, autor da trilha sonora da montagem.
Quando Leite derramado estreou, Alvim caiu doente. “Uma doença grave no intestino. Eu evacuava sangue, entrava e saía de hospital fazendo um tratamento que não curava a doença. Cheguei a anunciar a minha morte em um festival de Santos.”
A cura, segundo ele, veio da religião. “Um dia, chegando em casa depois de passar mais uma noite em hospital, a babá do meu filho me pediu para fazer uma oração. Eu disse para ela sair do meu quarto, mas a Juliana disse que deixasse, pois mal uma oração não iria fazer. No começo, eu ansiava para que ela calasse a boca. É clichê o que vou dizer, mas o que senti quando ela colocou a mão na minha cabeça foi uma luz, uma energia. Foi intervenção direta de Nosso Senhor Jesus Cristo.”
Ainda segundo o relato de Alvim, no dia seguinte, ao ir novamente ao hospital, ele estava curado. “Fiquei em choque, percebi que eu não compreendia o que havia acontecido.” Nos primeiros momentos, ele passou a frequentar a igreja duas vezes por dia, comungando dia sim, dia não.

CARREIRA

Em 29 anos de carreira teatral, Roberto Alvim foi considerado um potencial sucessor de nomes como Antunes Filho, Zé Celso Martinez Corrêa e Gerald Thomas. “Até para dignificá-los e honrá-los, temos que superar nossos mestres em pelo menos 30% em outras direções”, disse ele ao Estado de Minas, em junho de 2013, quando esteve em Belo Horizonte lançando o livro Dramáticas do transumano e outros escritos seguidos de Pinokio.
Nascido no Rio de Janeiro, em 1973, Alvim se formou na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL) e começou a trabalhar como diretor teatral aos 18 anos. Ao conhecer Juliana Galdino, então uma das principais atrizes paulistanas, formada na escola Antunes Filho, mudou-se para São Paulo em meados da década de 2000. Casou-se com Juliana, com quem teve seu único filho, Theo, de 11 anos.
Também ao lado de Juliana criou o Club Noir, misto de teatro, escola e bar no Baixo Augusta. Fechado em junho com uma dívida de R$ 30 mil, o teatro foi mantido com dificuldade pelo casal durante um bom tempo com dinheiro próprio. Um dos primeiros trabalhos do Club Noir foi O quarto (2008), de Harold Pinter, que garantiu à companhia reconhecimento da crítica.
Trabalhando sem parar, Alvim chegou ao ápice da produção em 2013, quando montou as sete tragédias de Ésquilo em um só ano. “Foi a primeira vez no mundo que as peças foram montadas uma única vez”, afirmou, em abril do ano passado, ao Estado de Minas.
Além das tragédias gregas, também montou espetáculos protagonizados por Nathalia Timberg (Tríptico Samuel Beckett), Caco Ciocler (A construção, de Franz Kafka), Guilherme Weber, Mário Bortolotto e Pascoal da Conceição (Fantasmas, de Henrik Ibsen). Suas peças foram encenadas na França, Alemanha, Espanha e México.
Alvim é também um dos poucos brasileiros publicados na Les solitaires intempestifs, coleção francesa de dramaturgia contemporânea.