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As Artes Como Abre-Alas

O ESTADO DE S. PAULO

02 de outubro de 2005

CADERNO 2 - CULTURA


As artes como abre-alas


Uma análise da atuação de Edemar Cid Ferreira, mecenas que usou mostras para fazer negócios

RODRIGO NAVES
Especial para o Estado

 

       No dia 20 de setembro, com a decretação de sua falência, teve fim a novela do Banco Santos, iniciada em 12 de novembro do ano passado com a intervenção do Banco Central. Há ainda no entanto muita água para rolar sob essa ponte. Edemar Cid Ferreira, ex-dono do Santos, foi indiciado pela Polícia Federal, no dia 6 de junho deste ano, por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, evasão de divisas, entre outras acusações. Além disso, algumas de suas empresas não financeiras continuam a funcionar. E muita gente perdeu sua aposentadoria nesse jogo.
       Edemar sai do meio de arte brasileiro da mesma forma que entrou: meteoricamente. Não tinha qualquer vínculo - nem apreço - com as artes visuais antes de assumir a presidência da Bienal, em 1993, e não deixa instituição ou projeto em funcionamento. Nada, além da reforma de alguns prédios. Sua coleção de objetos de arte e antigüidades, peças com pouca relação entre si, permanece lacrada e deverá ser vendida para pagar suas dívidas. Nos quase 15 anos em que atuou no cenário artístico paulista e brasileiro o ex-banqueiro teve um poder que talvez nenhum outro cidadão tenha tido no meio de artes visuais do Brasil. O fim de sua trajetória pede uma reflexão para qual esse artigo pretende colaborar.

De pequeno empresário a mecenas

     Edemar Cid Ferreira provém de uma família de classe média de Santos e, diz-se, chegou a militar no Partido Comunista. Em 1969, começa a atuar no mercado financeiro, através da Santos Corretora. O boom da Bolsa de Valores de fins dos anos 1960 e começo dos 70 ajuda sua corretora a fazer dinheiro. Edemar consegue, em 1989, autorização para abrir o Banco Santos, que no início dos anos 1990 é ainda uma instituição de pouca expressão. O período não tinha sido dos melhores para Edemar. Ele enfrentou uma série de problemas, inclusive a acusação de envolvimento com o traficante americano apelidado de Capitão América, como noticiaram


PASSOU POR PROBLEMAS, COMO
ENVOLVIMENTO  COM TRAFICANTE

vários órgãos de imprensa (Época 340, 4/11/2004). O banqueiro teria ajudado o advogado do traficante a se encontrar com o então ministro da Justiça, Abi-Ackel. Também se noticiou várias vezes, no começo da década de 90, um possível envolvimento de Edemar com PC Farias.
      Tudo leva a crer que seu envolvimento com o meio de artes visuais a partir de começos dos anos 1990 tenha origem na tentativa de obter um prestígio público que o livrasse das suspeitas levantadas anteriormente, ajudando-o também a expandir suas atividades comerciais. Uma frase sua deixa pouca margem a dúvidas quanto a esse projeto: "A cultura é um abre-alas. A gente vem atrás fazendo negócio."
      A projeção pública vinha antecedida de uma rede de conhecimentos e amizades influentes. Edemar se casara com a filha do falecido senador Alexandre Costa (PFL-MA), Márcia, político próximo do ex-presidente José Sarney, também ele amigo íntimo de Edemar, a ponto de o banqueiro ser padrinho de casamento da filha do ex-presidente, Roseana. Esses vínculos deram desenvoltura ao projeto cultural de Edemar Cid Ferreira e facilitaram os novos contatos que se fariam necessários no momento de levantar fundos para as instituições que viria a dirigir.

POR QUE AS ARTES VISUAIS?

       A primeira questão a ser transposta diz respeito à área escolhida pelo banqueiro. Afinal, por que as artes visuais, um setor até então de pouca visibilidade no País e que dificilmente ajudaria a projetá-lo? A resposta tem vários aspectos. Por um lado, até então as artes visuais guardavam uma aura elitista, um setor ainda não maculado pela aproximação popular e portanto adequado para quem queria fazer negócios com a fatia endinheirada da população. Não creio que aconteceria o mesmo com a promoção de festivais de rock ou com o estabelecimento de prêmios literários. Por outro, o meio de artes no Brasil permanecia (e permanece) extremamente desarticulado e sem instituições fortes e, portanto, dificilmente ofereceria resistência à ascensão de um neófito ambicioso. A eleição de Júlio Neves para a presidência do Masp (batendo por 1 voto um dos raríssimos mecenas dignos do nome no País, José Mindlin), em 1994, um ano depois de Edemar conquistar a Bienal, confirma essa hipótese.
      A fragilidade do meio artístico brasileiro era, no entanto, compensada pela existência de uma instituição forte e respeitada na área, a Bienal de São Paulo, que desde os anos 1950 adquirira expressiva significação para a cultura brasileira. Havia mais: a 21ª Bienal, de 1991, tinha sido um desastre e enfraquecera a instituição. A decisão de não mais convidar os artistas a participar da Bienal e de submeter a uma comissão de seleção apenas os artistas que se propusessem a expor deu com os burros n'água. Pouquíssimos artistas de relevo se apresentaram e a mostra fracassa. É então que Edemar assume a presidência da Bienal e a reergue nas 22ª e 23ª edições.
       O sucesso de sua atuação na direção da Bienal leva o banqueiro a criar no interior da instituição uma outra organização, a Associação Brasil +500, que prepararia a mostra em comemoração aos 500 anos do descobrimento do País - uma exposição que inclusive levaria ao adiamento da 25ª Bienal, o que mostra a força conquistada por Edemar a essa altura. A associação posteriormente se torna independente da Bienal e será a semente da BrasilConnects, fundada em 2001 e que organizará várias exposições de sucesso dentro e fora do Brasil.
       Edemar Cid Ferreira não estava para brincadeira. O público das Bienais aumenta significativamente - muito em função dos núcleos históricos, que mostram obras de grandes artistas modernos internacionais - e a Mostra do Redescobrimento atinge 1,9 milhão de visitantes. A mostra de Picasso, na Oca, alcança 1 milhão de visitantes e também outras exposições têm grande sucesso: Parade (arte moderna francesa), Os Guerreiros de Xi’An, arte russa, etc. Pode-se levantar restrições a várias dessas exposições. É inegável porém a ampliação de público para as artes visuais que as mostras proporcionaram e a possibilidade para muitos brasileiros de ver obras que, de outra maneira, jamais veriam.

A ARTE E A EFICÁCIA DA ARTE

      Esses aspectos benéficos da atuação de Edemar Cid Ferreira têm uma contrapartida perversa. O banqueiro não apenas deixou de lado qualquer tentativa de criar instituições sólidas. Ao contrário, rachou a Bienal de São Paulo ao apoiar o adiamento da 25ª edição, que coincidiria com sua Mostra do Redescobrimento. E, fundamentalmente, pôs em prática uma forma de exposição que colocava a arte em segundo plano, em beneficio da grandiosidade dos eventos, com a qual sua visibilidade e prestígio cresceriam junto com os negócios. Há aqui uma inversão de papéis que convém analisar.
      Certamente, a dimensão transgressora, de ampliação


COLOCOU A ARTE EM SEGUNDO PLANO
EM PROL DO BRILHO DO EVENTO

dos significados e experiências, ainda que ameaçada pelo conservadorismo pós-moderno, permanece uma componente decisiva das grandes obras de arte. O que Edemar Cid Ferreira fez foi conferir, de maneira caricatural e exponenciada, essa dimensão aos eventos que comandou, que assim adquiriam maior relevância do que os trabalhos que abrigavam. O exemplo mais gritante talvez tenha sido a intervenção de Bia Lessa no setor de arte barroca da Mostra do Redescobrimento, no qual o mar de flores de papel mal permitia que se vissem as obras expostas. E basta folhear os jornais da época para ver quem ganhou mais espaço na mídia no período, se as obras ou a cenografia.
       Ou seja, o “arrojo" na montagem das exposições, combinado com estratégias de marketing poderosas, parecia conter o aspecto decididamente estético das mostras, no interior da qual as obras se mostravam seres comportados e disponíveis. A surpresa, o inesperado, residiria mais na montagem e na divulgação das exposições do que nos objetos expostos. Seria possível argumentar que esse fenômeno ocorre em todos os países e que participaríamos apenas de uma tendência mundial. De fato, não inventamos essas pirotecnias. Nos outros países, porém, o apelo proporcionado pelas grandes exposições é contrabalançado pelas coleções permanentes, que possibilitam um convívio e uma experiência mais adequados aos trabalhos de arte, sem falar em todo um sistema educacional que torna aquele contato mais produtivo. As obras de arte já incorporadas à história da arte, ainda que continuem a instigar, passam a funcionar também como cultura, como compreensão e manifestação da história e de seus dilemas.
       No período artístico regido por Edemar Cid Ferreira os termos se inverteram. As obras de arte, mesmo as contemporâneas, eram dispostas de modo a dar sentido a estratégias de divulgação estranhas à sua natureza. Elas se mostravam de saída como cultura e não como arte. Pacificadas por um contexto que as obrigava a falar histericamente, tinham um sentido determinado de antemão. Picasso vinha permeado pelo labirinto de espelhos que os visitantes eram obrigados a atravessar. Isso conferia ao cubismo uma leitura primária e equivocada, por mais que houvesse a desculpa do Minotauro e seu labirinto. E a Mostra do Redescobrimento punha num mesmo saco objetos totalmente heterogêneos - de artefatos indígenas a obras modernas -, como se tudo aquilo produzido num território mantivesse com o País uma relação de natureza semelhante.
       Assim compreendida, a arte se constituía numa espécie de mundo-do-faz-de-conta, um reino de fantasias sem realidade


O BANQUEIRO, FEITAS AS CONTAS,
ATRAPALHOU MAIS DO QUE AJUDOU

própria e pronto a ser usado para outras destinações. Até mesmo seus vínculos problemáticos com a experiência social perdiam o sentido, já que habitava um terra-de-ninguém que apenas reforçava o estereótipo da imaginação como operação volúvel e maleável.
        Junto com isso vinha o pior: o lucro e a capacidade de “fazer negócios” como medida única de todas as atividades, o realismo do poder como parâmetro de todos os gestos. A confirmação melancólica dessa verdade veio com a intervenção no Banco Santos. Quando a fonte secou, cessaram todas as mostras, toda a aparente pujança de nossa arte e da capacidade de realizar mostras internacionais. Num país em que a arte contemporânea ainda é vista como simples arbítrio e futilidade, não poderia, haver maior desserviço. De alguma forma o breve reinado de Edemar Cid Ferreira assegurava que de fato não se tratava de uma atividade séria e sim de veleidade e capricho, passageiros por natureza.
        Num artigo publicado na Folha que alcançou justa repercussão - A Morte do Masp (13/6/2005) -, Mario Cesar Carvalho chamava a atenção para o fato de que “a elite paulistana abandona completamente a esfera pública” e em vez de partilhar seus bens “privatiza os bens públicos”. Levantam-se aí questões relevantes e a permanência de Julio Neves à frente do Masp confirma aquele abandono. E convém não deixar de lado as exceções, como Milú Villela, que há mais de uma década ajuda a dar ao MAM uma regularidade rara nos museus de arte do País.
       As questões levantadas por Mario Cesar têm uma complexidade que convém observar. Se os capitalistas americanos são mais generosos que os brasileiros, algo na dinâmica da sociedade norte-americana os civilizou nesse sentido. Trata-se de mais que pura filantropia. Trata-se de corresponder a expectativas que têm raízes sólidas e dinâmicas na sociedade. Essa solidez e complexidade nós não criamos. Pior: se considerarmos a atuação de alguns mecenas do passado, como Ciccillo Matarazzo, a situação talvez até tenha se tornado mais difícil. Além disso, é preciso considerar um fator singelo e decisivo: o gosto. Albert Barnes ou Sergei Shchukin não construíram suas coleções (hoje públicas) apenas por ostentação. Eles gostavam da melhor arte contemporânea e eram ricos. E isso depende de muito mais que esforços espasmódicos e gestos isolados. Depende da formação de um meio exigente e diversificado, tanto cultural quanto socialmente. Depende do confronto de opiniões e sobretudo de uma produção artística à altura da experiência contemporânea, tanto na realização de obras quanto na escolha de seus caminhos. Penso que Edemar Cid Ferreira, feitas as contas, atrapalhou muito mais do que ajudou esse processo de formação. Está na hora de tirarmos lições de sua trajetória.



Rodrigo Naves é critico de
arte e autor de A Forma Difícil