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A Ponta do Iceberg

Crise que atinge o Masp pode se estender a outros museus se não se modificar a relação entre Estado, iniciativa privada e sociedade civil

 

FOLHA DE S. PAULO

28 de maio de 2006

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A Ponta do Iceberg

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

 

Nenhuma questão de cultura é apenas um caso singular, nenhuma questão de cultura se resolve apenas num formato estrutural. Caso e forma geral se combinam para gerar efeitos. Portanto, as saídas para uma questão cultural serão buscadas na convergência dos dois planos.
A questão Masp -hoje constrangedora para o museu mas também para toda a política cultural pública ao redor- inclui um caso singular a chamar a atenção geral: a ausência de um projeto curatorial de prazo pelo menos médio, distinto da simples inércia rotineira, tocado por um curador estável e que arme o diálogo do museu com sua coleção e com a arte da cidade e do mundo. Um projeto curatorial dá ao museu uma linha cultural que lhe desenha uma trajetória econômica.
Economia e idéia cultural andam juntas, mas é a idéia cultural que determina, não a economia, e é o projeto curatorial que aponta os rumos, não o inverso. Um museu se faz com uma idéia curatorial e se desfaz sem ela. Esse é um aspecto singular desse caso. O resto são detalhes, de discussão interna do museu ou não, mesmo porque, no resto, o Masp é largamente viável, se quiser.
Seria, porém, um erro cômodo supor que a questão Masp se resume a um aspecto e a alguns nomes ou incidentes. A forma geral do problema é sua dimensão sistêmica, determinante num país fragilizado como este. Por sua condição simbólica, o que ocorre no Masp é mais que a ponta do iceberg. Nem por isso constitui um caso isolado, contendo em si toda a origem de seu problema.
Na perspectiva do sistema da arte, a chamada crise do Masp, que não é só dele, remete, antes de nada, à rediscussão de um contrato social para os museus.
Admiti-lo significa aceitar que, no sistema da arte do qual os museus são cabeças-de-ponte (sobretudo fora daqui, porém aqui também), quase nada mais, em país fragilizado, pode ser feito por um único ator social. O Masp é privado, mas o privado, aqui, não dá conta.
O poder público, sozinho, sozinho -e fará melhor se entender que seu papel é adotar uma política cultural de cooperação com a sociedade civil para que ela alcance seus objetivos, como seu parceiro, e não seu concorrente.
À iniciativa privada, como ao terceiro setor, cabe entender que deve responder pelo que faz ("accountability") não só em termos de manejo do eventual dinheiro público usado como de projeto. E entender, de vez, que responsabilidade social pela cultura não significa só patrocinar exposições mas comparecer o tempo todo, mesmo quando o assunto não tem glamour (pagar conta de luz). E ao terceiro setor cabe arregaçar muito mais suas mangas culturais.

Carros e cultura
Nessa rediscussão do contrato social para os museus, o poder público poderia esclarecer, por exemplo, pois também ele deve prestar contas, por que a indústria automobilística (que pode se deslocar para a China a qualquer momento) recebe tantos poderosos incentivos (ganha o terreno, não paga impostos durante anos, tem financiamento público a juros amigos) enquanto o setor cultural, em que, no entanto, trabalham muito mais pessoas, fica apenas com os clássicos, limitados e criticados incentivos fiscais (e, no entanto, um museu nunca iria se deslocar para a China, nunca os recursos nele investidos se esfumariam da noite para o dia).
E caberia perguntar, a todos, por que este país, que tem no Sesc um modelo de política cultural bem-sucedida, coisa de Primeiro Mundo, não gera solução análoga para os museus -quer dizer, amparo público, gestão privada e significação social.
Há, claro, outros tópicos de caso a enfrentar: por que em Buenos Aires uma coleção ótima, embora reduzida (comparada ao que há aqui), consegue construir para si um museu novo, de primeira linha -o Malba- e aqui o Masp não consegue pagar a conta da luz? Por que Porto Alegre constrói um museu novo para Iberê Camargo (1914-94) e aqui o Masp não consegue pagar a conta de luz? O exemplo de Ciccillo Matarazzo [criador do Museu de Arte Moderna de São Paulo] está morto e esquecido? Por quê?

Vão livre
Esses dois casos estão, por certo, imersos em duas outras formas gerais. Nenhum configura uma pergunta que caiba só ao Masp responder.
No vão livre do Masp, que não pode ser só uma boa metáfora, há espaço para uma grande mesa redonda e três cadeiras para três personagens: poder público, iniciativa privada e sociedade civil. Uma quarta se reservaria a um convidado que não precisa ser apenas observador: o sistema S (Sesc, Sesi).
Na pauta, o novo contrato social dos museus: administração (mandatos de diretoria de museus públicos, participação do setor privado no museu público e vice-versa), finanças (incentivos, aportes diretos do setor público e do privado) e projeto curatorial (desenvolvimento da coleção, papel cultural, competências).
Sem um novo contrato -para todos os museus, públicos e privados-, nem museus hoje sem crise aparente (mas ela está ativa no coração do sistema) se verão livres de virar icebergs a derreter -não sem antes afundar mais uma ou outra idéia de cultura.


TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e autor de "Niemeyer" e "Guerras Culturais" (ambos pela editora Iluminuras), entre outros livros.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2805200616.htm