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Este tesouro ficou no escuro

Por falta de pagamento, o Masp teve a luz cortada. A gestão do museu é uma obra-prima de incompetência

 

REVISTA VEJA

31 de maio de 2006

ARTE

Fonte: REVISTA VEJA. Este tesouro ficou no escuro. Cad. Arte. Ed. 1958. 21/05/2006. Disponível em http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/310506/p_098.html. Acesso em  05/06/2006.


Este tesouro ficou no escuro

 

A RIQUEZA...
• Em seu acervo há 7 517 obras de artistas como Ticiano, El Greco, Van Gogh e Degas, atualmente objeto de uma mostra
• O valor estimado da coleção é de 1,2 bilhão de dólares
• O prédio, criado pela arquiteta Lina Bo Bardi, é um ícone modernista e um cartão-postal de São Paulo

...E A MISÉRIA DO MASP
• As contas de luz atrasadas somam quase 3,5 milhões de reais e levaram ao corte de fornecimento na semana passada
• Uma ação judicial movida pelo INSS contra o Masp, exigindo o pagamento de 3 milhões de reais, dificulta a obtenção de recursos das leis de incentivo à cultura. Um quadro de 4 milhões de reais teve de ser dado em juízo como garantia
• Em 2005, o museu deixou de receber mais da metade da verba de 1,6 milhão de reais destinada a ele pela prefeitura paulistana por não ter apresentado o plano de gastos exigido
• O número de visitantes caiu nos últimos anos. O Masp investe em exposições de grande visibilidade, que atraem um público ocasional, mas abandonou o objetivo de formar uma freqüência fiel

 

Na semana passada, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) sofreu um apagão. Detentor do mais importante acervo da América Latina, ele teve seu fornecimento de eletricidade cortado por três dias, por causa de uma dívida de quase 3,5 milhões de reais com a distribuidora de energia Eletropaulo. O abastecimento foi restabelecido na sexta-feira, depois de um acordo em que o museu se compromete a pagar seu débito em 48 prestações. Quando ficou no escuro, o Masp acabava de inaugurar uma mostra do impressionista francês Edgar Degas (1834-1917). Além de itens de sua própria coleção, como a tela Quatro Bailarinas em Cena, a exposição traz empréstimos de museus como o Metropolitan, de Nova York, e o D'Orsay, de Paris. Todos esses tesouros correram risco. A eletricidade é essencial para a preservação de obras de arte. Oscilações na temperatura ou na umidade podem estragar uma pintura. Assim que a força foi cortada, um gerador foi acionado e outros dois, alugados. Até onde se sabe, não houve danos ao acervo. Mas a simples possibilidade de que isso ocorresse, por uma razão tão patética quanto a falta de pagamento da conta de luz, causou um rombo na reputação do Masp (e dos museus brasileiros de maneira geral). Pior ainda é o fato de que o episódio da semana passada não descreve totalmente a obra-prima de incompetência que é a gestão do museu, dirigido há onze anos pelo arquiteto Julio Neves.

O imbróglio da conta de luz se arrasta há tempos. Apesar de ter pago os últimos onze meses em dia, o Masp quebrou dois acordos de renegociação de débitos antigos, razão pela qual o corte foi feito. Não bastasse isso, o museu já foi flagrado utilizando uma ligação irregular de eletricidade. O "gato" teria resultado em mais de 400.000 reais de prejuízo para a Eletropaulo. Outra pendenga opõe o museu ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), que cobra 3 milhões de reais em créditos trabalhistas. O caso está em debate na Justiça, mas já levou o Masp a outro constrangimento – um de seus quadros teve de ser dado como garantia em juízo. Uma ação legal como essa atrapalha a obtenção de recursos da iniciativa privada por meio das leis de incentivo à cultura. O inacreditável é que o Masp não tem conseguido se beneficiar nem mesmo das verbas que lhe dão de mão beijada. No ano passado, a prefeitura de São Paulo pretendia destinar-lhe 1,6 milhão de dólares. A direção do museu não apresentou um plano de gastos e a falta de transparência foi punida com a retenção da maior parte do montante. Os quase 700.000 reais recebidos custearam salários atrasados, quando deveriam ter sido investidos em atividades culturais.

Em meio a esse pandemônio, a presidência de Julio Neves resolveu despender força num projeto faraônico: a construção de uma torre de 130 metros sobre um prédio ao lado do Masp. Em troca de ter o seu nome estampado no alto da construção, uma companhia de celulares gastaria 10 milhões de reais no projeto. A idéia foi vetada no ano passado pelo Conpresp, órgão que fiscaliza o patrimônio urbanístico paulistano.

À frente do Masp, Neves organizou algumas boas mostras, como essa de Degas. Mas um museu não se sustenta apenas com lampejos ocasionais. Como demonstram experiências bem-sucedidas como a do MoMA, o museu de arte moderna de Nova York, um grande museu precisa ter visitação fiel – o que se faz com campanhas para a admissão de sócios, ou com a exploração engenhosa do acervo permanente e da biblioteca. Além de descuidar de atrair público, o Masp afastou muitos mecenas. Neves assumiu a presidência em 1995, numa eleição traumática. Depois disso, vários antigos conselheiros se afastaram e o museu foi cedendo à lógica da panelinha. Ora, o Masp é um exemplo do que a elite brasileira já produziu de melhor. Ele foi construído nos anos 40 e 50 graças à obstinação de seus fundadores, o empresário Assis Chateaubriand e o crítico italiano Pietro Maria Bardi, e às muitas doações que eles souberam conquistar. Se é um disparate culpar a "elite branca" pelos crimes do PCC, como sugeriu recentemente o governador paulista Cláudio Lembo, é correto apontar sua importância na preservação do patrimônio cultural. O Masp tem de ser erguido – enquanto é tempo.

 

 


Fonte: REVISTA VEJA. Este tesouro ficou no escuro. Cad. Arte. Ed. 1958. 21/05/2006. Disponível em http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/310506/p_098.html. Acesso em  05/06/2006.