Você está aqui: Página Inicial / Livros / Museu Ideal (edição livro Museu Arte Hoje)

Museu Ideal (edição livro Museu Arte Hoje)

Jean Galard, Marcel Araújo, Paulo Sérgio Duarte e Fernando Cocchiarale - Entrevistas conduzidas por Martin Grossmann

Jean Gallard

 

De passagem por São Paulo, onde participou de uma mesa redonda sobre Roland Barthes na Bienal do Livro, Jean Galard conversou com o Fórum Permanente a respeito dos museus de arte e dos espaços para a arte contemporânea no Brasil e na França, e apontou a internet como espaço privilegiado para a crítica na atualidade. (11/03/2006)

FP - Há um texto do Adorno intitulado “Museu Valéry-Proust”, em que ele faz um contraste entre a visão dionísica de Proust com essa visão mais crítica de Valéry. Parece um jogo dialético sem solução entre essas duas idéias, uma situação muito peculiar do museu que vive em um estado de crise permanente. Ele não é mais o meio que representa o Iluminismo, mas ao mesmo tempo também não pode ser destruído e considerado como o mais representativo da civilização ocidental ou uma herança de um período difícil, do Colonialismo, da conquista do Novo Mundo. Como você vê o museu hoje? Trabalhando no Louvre, que sem dúvida é o o paradigma de museu europeu, você acha que é possível superar esse paradoxo?

Jean Galard - Em relação ao público, permanece esse fenômeno fundamental da dificuldade em relação com as obras, porque todas estão chamando a atenção ao mesmo tempo. O público está um pouco disperso de maneira totalmente inevitável, eles não olham nada, passam pelas obras e dão uma olhada de dez segundos.

FP - Mas parece que o museu não tem como morrer, não é? Apesar das críticas do Séc. XX, a essa concepção ocidental e eurocêntrica de museu, o museu sobrevive e vai muito bem aparentemente.

Jean Galard - Certos museus.

FP – Então, porque o museu hoje? Porque o museu continua em evidência?

Jean Galard - Você aceitaria que a pergunta é sobre museus de arte? Essa é uma distinção importante, porque hoje, existem museus de sociedades, de objetos, de artesanato, eco-museus, etc., que se desenvolvem muito, já que o museu entrou para a área política, e para os políticos, em todos os sentidos, o museu é necessário para atrair turistas e para a recuperação das cidades. Então, há museus de todo tipo. Quando não há acervo suficiente para todos, faz-se museus com qualquer coisa. Bem, a questão é: porque museus de arte?

FP  - Sim, o que é o museu de arte hoje?

Jean Galard - Outra distinção é o porquê do museu de arte antiga e o porquê do museu de arte moderna e contemporânea. Sobre o museu de arte antiga, seriam todas as considerações sobre a necessidade de tomar consciência do passado, não só conservar as obras, mas também essa possibilidade que o museu proporciona mudar um pouco os pontos de vista contemporâneos e podermos voltar ao passado. É preciso conhecer o passado para que possamos compreender onde estamos, e deixar de dar esse privilégio ao contemporâneo, que é uma doença da nossa época. Os museus de arte contemporânea evidentemente constituem um paradoxo, porque a arte contemporânea é relativamente nova para os museus. O museu de arte contemporânea me dá uma espécie de hierarquia contestável e provisória. Esse fato tem que ser considerado, pois para a imensa maioria do público, o museu se tornou um lugar não de reconhecimento do passado, mas de pretensão em relação ao presente. Mas seria realmente chocante se fosse uma seleção e uma hierarquia definitiva.

FP - A sua resposta está ligada a uma outra pergunta que gostaríamos de fazer, que é sobre a relação da intelectualidade brasileira com o contexto cultural. Fazemos essa pergunta porque entendemos que para o estrangeiro, e principalmente para aquele com uma  permanência maior no Brasil, é mais fácil  observar a situação local de forma crítica. Então, essa crítica  também é importante para nós, no sentido de tentarmos entender um pouco esses mecanismos, essas idiossincrasias  brasileiras no contexto  cultural. Será que você poderia nos ajudar a entender essa situação local?

Jean Galard - O que eu vejo como elemento favorável no Brasil e que não existe na França é a passagem de um campo ao outro. Do campo universitário que é um dos maiores campos intelectuais para o cultural, o que praticamente não existe na França, pelo menos no campo dos museus, onde temos setores profissionais muito definidos, e um professor universitário nunca vai poder dirigir um museu, porque há corpos de curadores para isso, e os curadores não vão dar aulas de História da Arte na universidade. Não há essa passagem, que tem que ter e que existe nos Estados Unidos. Em todo caso, me parece que existe aqui esse elemento positivo, para que haja uma inter-relação fecunda entre o mundo intelectual e a vida cultural. É necessário ainda que haja intermediários, que são as publicações periódicas, semanais ou diárias. E sobre esse ponto, eu tenho dúvidas e preocupações ao mesmo tempo, em relação com o Brasil e com a França.

FP - No Brasil, nunca houve essa mediação de revistas, de publicações especializadas na arte. Muitas tentativas, mas nenhuma continuidade.

Jean Galard - Me dizem que o “Mais” é bem diferente do que era há dois anos atrás. Eu vejo toda semana por Internet, mas não percebi realmente a diferença. O que eu percebi diretamente foi o desaparecimento do Jornal de Resenhas. E isso é grave, porque eram artigos relativamente desenvolvidos e havia a reprodução de todos esses artigos na forma de livros, que constituem um panorama formidável sobre a vida intelectual, artística e cultural do Brasil, com índice dos nomes dos autores dos artigos e índice dos autores das obras comentadas.

FP - Mas se você diz que isso também é uma raridade na França! Qual é o lugar da crítica hoje?

Jean Galard - A Internet! Você percebeu como eu cheguei a essa conclusão formidável, preparada desde o início da nossa conversa?

FP - Então, o Fórum Permanente caminha pela via certa, não é?

Jean Galard - Com certeza. A imprensa escrita está em crise por causa de pessoas como eu, que não compro todos os dias o Le Monde ou o Libération na França, mas, todos os dias, vou à Internet para ver todos os títulos e ler aqueles artigos que me interessam particularmente, os quais eu imprimo e depois coloco em meus dossiês, e que se tornam meus instrumentos de trabalho. É mais fácil de classificar e usar do que uma página de jornal. Então, eu sou um dos responsáveis pela crise dos jornais. Não sei se eles sabem disso, mas vamos cada vez mais trabalhar, cultivar e pensar pela Internet. É um instrumento formidável.

FP - Para finalizar, fazendo referência a um francês, André Malraux, e seu pensamento em relação ao museu de arte, o Fórum Permanente pergunta: que museu de arte você imagina para este milênio? Qual seria o seu museu imaginário?

Jean Galard – Ao ouvir essa pergunta, eu tenho imediatamente uma coisa para dizer: o museu não pode ser a resposta. Primeiro, o museu deveria ter um acervo. O problema de hoje é que muitos museus abrem suas portas sempre por razões políticas, e depois fecham ou ficam com pouco público, porque o acervo não é suficiente. Isso é fundamental. Agora, talvez por não ser curador, e pelos motivos que eu já expliquei, eu gostaria de lugares onde o acervo é um dos elementos, ao lado de salas de conferências, programas de cinema, de todo um conjunto de discussões e documentações. Os museus deveriam ser sempre centros culturais, centros de atividades de descobrimento de obras visuais e de descobrimentos de conhecimentos contidos nos livros ou nas exposições, de falas e discussões das pessoas mais variadas. No Louvre, com um auditório de quatrocentos lugares, conseguimos organizar muitas dessas atividades como conferências, debates e simpósios. Mas eram eventos muito fechados sobre História da Arte e Arqueologia. Hoje mudou. Estou vendo uma abertura, com temas que eu não poderia fazer serem aceitos quando eu estava lá, e que agora estão sendo feitos. Para mim, esse é o ideal, é uma espécie de museu como o Museu de Alexandria, trezentos anos antes de Cristo, com uma biblioteca, um lugar onde se passeia e tem esculturas, lugares para discussão, salas de conferência e vários pesquisadores em uma residência.

 


 

Paulo Sérgio Duarte

 

Em outubro de 2005, durante viagem de estudos e intercâmbio cultural à Alemanha promovida pelo Goethe-Institut de São Paulo, Paulo Sérgio Duarte da Fundação Iberê Camargo, Marcelo Araújo, Fernando Cocchiarale e Rejane Cintrão falam ao Fórum Permanente sobre a possibilidade de termos instituições de arte sólidas no Brasil.

Fórum Permanente - Paulo, o que é o museu de arte hoje, no Brasil e no mundo?

Paulo Sérgio Duarte - No meu modo de ver, a arte é uma manifestação do conhecimento humano tão importante quanto as manifestações do conhecimento científico e religioso. Dentro do sistema cognitivo humano, o homem estaria incompleto se não fossem as manifestações artísticas, e o museu é uma forma de preservá-las. Evidentemente, o Brasil, com as suas dimensões de território e população, precisa de um sistema eficiente de museus de arte, mas é sintomático e deprimente, para qualquer brasileiro educado ou que chegou a um determinado grau de instrução, a situação dos museus de arte, começando pela capital federal, que até hoje não tem um museu de arte digno de um país que tem mais de 170 milhões de habitantes e 8,5 milhões de quilômetros quadrados.

FP - Como você vê o museu de arte hoje no Brasil? Há algo positivo, que podemos falar bem, divulgar como sendo característico regional brasileiro, ou que aponte para um futuro mais promissor?

Paulo Sérgio Duarte - O museu de arte no Brasil tem déficits enormes. A melhor situação no panorama artístico brasileiro é a da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Isso não quer dizer que ela esteja cumprindo completamente a sua missão, porque ainda falta muita coisa. Eu cito como exemplo o fato de que em nenhuma cidade do Brasil, nem no Rio ou São Paulo, eu posso dar, nos conjuntos de museus existentes, um curso de arte brasileira do Século XX. Ou seja, não existe uma Sala Guignard, uma Sala Portinari, uma Sala Tarsila, uma Sala Anita Malfati, uma Sala Segall (o caso Segall é uma exceção à regra, porque existe o Museu Lasar Segall), e isso para não falar da arte contemporânea. Há uma lacuna formidável, há muito o que fazer. O que entusiasma no Brasil é tudo o que falta por fazer. Quando se faz uma viagem como esta na Alemanha, é que nós vemos quanta coisa há para realizar no Brasil, não somente pela nossa geração, mas também pelas próximas.

FP - Falando de problemas na nossa história de museus de arte, há soluções para problemas crônicos, como o problema financeiro, a relação entre o público e o privado, e a efetiva apropriação de indivíduos, e até de corporações, das instituições?

Paulo Sérgio Duarte - Na Europa, e na Alemanha em particular, onde estamos agora, o Estado sempre atuou muito ativamente em políticas compensatórias, e jamais entregou a formulação dessas políticas para o setor privado. Ou seja, a atuação pública é muito presente em todos os países europeus, particularmente na Alemanha, na Itália e na França. A atuação do setor público é absolutamente indispensável em um país com as características do Brasil. No entanto, nos últimos anos, houve um liberalismo neófito no Brasil que abriu mão ou delegou a setores do capital privado a formulação das próprias políticas, e o Estado renunciou a seu papel público de gestor. Eu acho que a retomada lenta e balanceada do intercâmbio do papel do público e do privado na área cultural vai se redesenhar a partir das experiências passadas, e a partir dos erros que foram cometidos, nós poderemos “corrigir os rumos”. Devemos analisar, fazer um balanço dos erros e melhorar. Não podemos pensar que antes de delegar ao setor privado estava tudo uma maravilha, e que entrando o setor privado, tudo se desmanchou, se degradou. Isso não é verdade. Nunca houve um sistema constituído para o olhar da arte brasileira, que pudesse ser desmanchado posteriormente. É um processo em construção, que se desviou de um determinado rumo que vinha seguindo. Eu acho que essa correção de rumo e a retomada das responsabilidades do Estado e do setor público na formação de políticas nacionais e de relações internacionais são muito importantes e indispensáveis, até para saber como o capital privado pode atuar melhor. Por enquanto, o capital privado praticamente não atua, o que atua é uma renúncia fiscal, ou seja, o dinheiro público, que é dado de mão beijada para o setor privado formular suas próprias políticas culturais e institucionais. Então, há que se pensar que é preciso criar estímulos à participação efetiva do capital privado, não com dinheiro público, não com renúncia fiscal (a renúncia fiscal existe em outros países, mas nunca no percentual que existe no Brasil), mas com dinheiro do capital privado, que é o que ocorre nos Estados Unidos, na França e na Alemanha. Temos igualmente de estender e fortalecer o estímulo fiscal principalmente para a formação de acervo: percentuais mais elevados para aquisições para coleções abertas ao público e percentuais mais baixos para eventos temporários.

FP - Como você avalia a relação entre as Bienais e os museus? São Paulo e os museus locais, e agora a Bienal do Mercosul e os museus locais, e até talvez aquela tentativa de se fazer aquela Bienal em Fortaleza.

Paulo Sérgio Duarte - Em primeiro lugar, eu acho que o museu mantém um acervo permanente com uma programação temporária e a bienal é um lugar para um panorama mais amplo da produção contemporânea. As bienais estão voltadas para a produção contemporânea, e o recuo histórico que ela deve fazer é sempre pequeno, no máximo algumas décadas. É preciso lembrar que a Bienal é hoje uma instituição, e vou repetir aqui o que a Beral Madra, uma curadora e crítica turca de arte disse recentemente a respeito da última Bienal de Veneza: as Bienais se tornaram sofisticadas, caras e pesadas demais para mostrar um leque diverso da produção contemporânea, que são produções não-bienalizáveis, ou seja, não se encaixam no formato institucional da Bienal. À Bienal cumpre o papel de mostrar a produção contemporânea, mas ela abrange somente um determinado segmento da produção contemporânea, e não se deve pensar que essa mostra pode fazer um arco completo dos segmentos de manifestação artística que existem hoje. Uma série de segmentos importantes sequer pode se aproximar de uma Bienal sem perder seu caráter. O caráter anti-institucional de uma série de produções artísticas contemporâneas torna impossível que elas se enquadrem dentro de uma Bienal. Uma vez que a Bienal as absorvesse, elas perderiam seu caráter artístico conceitual, que é o de estar fora de qualquer instituição. A Bienal atua sobre a cidade que a produz e a recebe. Ela trata de uma questão urbana muito ligada a ela, que transcende o próprio evento artístico. A Bienal, na verdade, é um processo onde uma cidade, uma comunidade local, toma consciência do papel da arte no concerto do conhecimento humano, no concerto do jogo de prestígio, do jogo de poder através do qual aquela comunidade se relaciona com seus vizinhos, com os outros Estados e com o restante das nações. É preciso não descartar esse aspecto da Bienal, e não isolá-la numa questão de especialistas em arte para discutir seus aspectos artísticos. Ela tem um papel que joga pesadamente na questão política e no prestígio da cidade que a realiza. Não é qualquer cidade que consegue realizar uma Bienal. No entanto, existem nos Estados Unidos estudos, e acredito que na Europa já devem existir também, sobre o “efeito bienalização”; mais de 50 Bienais surgiram no mundo do final dos anos 80 e durante a década de 90. Nesse roldão de Bienais reproduzidas abundantemente pelo mundo, uma delas foi a Bienal do Mercosul. Então, falar sobre essa Bienal é muito diferente de falar da Bienal de Veneza ou da Bienal de São Paulo. Uma é mais do que centenária e a outra teve sua primeira edição em 51. Ambas são Bienais modelo. A Bienal do Mercosul tem um recorte muito interessante, que faz dela hoje a maior mostra de arte latino-americana existente no mundo. Neste ano, nós estamos mostrando 172 artistas, sendo que 85 são de 7 países diferentes da América Latina: Argentina, Bolívia, Chile, México, Paraguai e Uruguai, além, evidentemente, do Brasil. Então, nada existe no mundo para mostrar um recorte dessa região. E a Bienal do Mercosul, desde sua primeira edição, também interage com artistas de outros continentes. Na atual edição, por exemplo, nós temos 4 artistas convidados de outros continentes: Ilya Kabakov, Marina Abramovic, Pierre Coulibeuf e o Stephen Vitiello. Ela é uma Bienal que não quer ser latino-americana de uma forma purista, e não joga com a questão da identidade latino-americana no sentido tradicional da palavra. É uma Bienal que nasceu muito consciente de que a questão da identidade no mundo contemporâneo atravessa outros problemas que vão além das identidades nacionais ou regionais. O constructo da identidade é muito mais complexo do que a questão da nação ou região, e dentro dessa situação, a Bienal do Mercosul é tanto causadora de efeitos locais e regionais quanto ela é um sintoma do grau de consciência da questão educacional e cultural atingido no Rio Grande do Sul. Ela é o sinal de maturidade da cidade de Porto Alegre e do Estado do Rio Grande do Sul, sinalizando, apontando para um grau de consciência diferenciado em relação a outras regiões do Brasil, por sua consistência e sua profissionalização, pela sua dimensão em escala. Ela pode adquirir outros perfis e ter desenhos diferenciados. O importante, a meu ver, é que no caso concreto da Bienal do Mercosul, a Bienal de Porto Alegre, como eu costumo chamá-la, deve ser redesenhada, para incorporar um projeto educativo permanente, para que a Bienal não cesse seus efeitos com o encerrar da mostra, e não espere mais dois anos para que algo aconteça. Ela não está em uma trama cultural tão densa como a Bienal de São Paulo, que permite que outras instituições preencham as lacunas. As instituições culturais existentes no Rio Grande do Sul, particularmente em Porto Alegre, não atendem ainda à demanda da sua população. No caso de Porto Alegre, o papel educativo de formação voltado especificamente para a arte contemporânea poderia ser cumprido pela Bienal, em interação com as outras instituições existentes no local. O que me interessa é discutir esse processo local como um processo permanente, e não um evento bienal, na trama específica do lugar chamado Porto Alegre, que é diferente de um lugar como São Paulo ou como o Rio de Janeiro.

FP - Talvez na nossa tradição institucional, nós damos mais atenção a esse tipo de acontecimento do que aos museus? Porque nós temos uma experiência, um know-how em Bienais que de certa maneira coloca sempre o museu no segundo plano?

Paulo Sérgio Duarte – O que é importante no caso do Brasil, não é opor a Bienal ao museu, mas passar a idéia de como essas instituições se complementam. Elas são complementares, jamais nenhum museu vai poder dar conta da produção da arte contemporânea na escala e na dimensão que uma Bienal dá. Também deveriam ser introduzidas no Brasil estratégias museológicas de interação específica com as Bienais, em termos de formulação de políticas de aquisição de obras. Uma série de atualizações que determina e solicita que obras os museus desejam, no lugar de empurrar para dentro dos museus doações que eles não pretendem e não querem aceitar. Isso seria interessante. Muita gente deseja que quando uma Bienal acontece na cidade, ela deixe traços permanentes e não seja apenas episódica. Assim, essas cidades estão sendo desenhadas e construídas. Não se trata de Veneza, onde a cidade em si é uma obra de arte, e hoje, o acontecimento Bienal, nos jardins e em alguns outros palácios, acontece dentro de uma grande obra de arte pré-existente à própria Bienal, que é a própria cidade de Veneza. Quando uma obra de arte ocorre dentro de uma cidade que é uma grande obra de arte, o compromisso dela marcar essa cidade é muito diferente do compromisso de uma obra que acontece numa cidade em processo de construção e de civilização, como no caso das cidades brasileiras. No caso de Porto Alegre, eu acho que a Bienal deve estabelecer esse compromisso permanente de formular políticas e criar sua marca numa cidade que está se construindo através das obras de arte que ela deixa para a cidade. E eventualmente, havendo um consenso com as direções dos conselhos dos museus locais, examinar a possibilidade de doações para as coleções locais. Eu acho importante essa interação entre o museu e a Bienal, e não se deve nunca pensar em oposição.

FP - E há uma utopia possível? Que museu você imagina? Qual o seu museu imaginário?

Paulo Sérgio Duarte - No meu museu de arte imaginário para o Brasil, o visitante entraria em um grande elenco de obras de arte contemporânea e depois retomaria historicamente o início da Modernidade através de diversos momentos da constituição do olhar moderno no Brasil, indo de Castanheto a Anita Malfati, da Semana de 22 e Tarsila do Amaral até os anos 40. Passaria pelos dois Construtivismos: o paulista e o carioca. Ele seria constituído de um anel contemporâneo envolvendo as múltiplas possibilidades de cruzar nichos históricos, que sedimentariam a produção contemporânea, no seu núcleo central. Envolvido pela arte contemporânea e tendo como centro a mesma arte contemporânea, entre o anel e o núcleo as vertentes históricas cruzadas, não necessariamente em ordem cronológica, mas por afinidades eletivas de linguagens nas associações entre o passado e o presente. Esse seria meu museu imaginário.


Fernando Cocchiarale

 

FP - Fernando, o que é o museu de arte hoje, no Brasil e no mundo?

Fernando - Como o Brasil é um país que por tradição tem como modelo o Ocidente, nós somos em uma certa medida invasores ocidentais; nós precisamos nos medir pelos padrões das instituições ocidentais, européias, norte-americanas, etc. Produzimos arte contemporânea, há mais de um século, baseada em padrões que vieram de fora, e, portanto, os modelos de arte brasileira foram feitos buscando os caminhos dos museus de arte internacional. Quanto aos museus do exterior, eu sinto que hoje eles estão interessados em um tipo de discussão que pode ser nova para eles, mas que está muito mais próxima dos nossos esforços, que é a idéia de um museu multi-cultural. O Brasil, por sua própria natureza, é multi-cultural. No entanto, acho que nós ainda não chegamos ao patamar de institucionalizar museus em um nível anterior a esse. Por outro lado, nos últimos 20 anos, houve uma sensível melhora na formação do status técnico dos museus, nas concepções de montagem, na manipulação das obras e na formação de técnicos especializados.

FP - E para quem fazemos os museus?

Fernando - Eu acho que há hoje uma discussão muito grande sobre o papel do museu como formador de cidadania e de consciência civil, mas eu discordo disso. Não podemos esquecer que qualquer instituição artística tem que atender, em primeiro lugar, as expectativas da comunidade; não a comunidade de moradores, mas a comunidade artística, de historiadores, daqueles que gostam de arte e querem encontrar instituições que atendam às suas expectativas num mundo de complexidades, sofisticação e profissionalismo de alto nível. Se você agrada ao usuário interessado, você fatalmente já criou condições para expandir essa instituição para o resto da comunidade. Eu não acredito em nivelamento por baixo. Em nome de conquistar o público, ficamos muitas vezes preocupados em fazer programas educacionais, investimos demais em explicações e afastamos os artistas, os estudantes de arte e os historiadores do museu. Se você os afasta, você corta o vínculo do museu com a seiva que o alimenta. Eu acho que temos que começar a pensar também nos principais interessados.

FP - Como você vê o museu de arte hoje no Brasil? Algo positivo? Algo que podemos falar bem, divulgar como sendo característico local ou brasileiro? Ou algo que aponte para um futuro mais promissor?

Fernando - Eu não sei. Hoje em dia, com essa explosão de construção de museus pelo mundo inteiro, o Brasil não consegue ficar longe disso. Mas aqueles que poderiam permitir a existência de bons museus, ou seja, o capital e o Estado, não entendem a complexidade da coisa e assinam o ponto criando um monte de museus pelo país, sem dotá-los de edifícios adequados, coleções pertinentes, staff especializado, etc. É como se com isso nós criássemos argumentos que justificassem a nossa sincronia com o mundo ocidental, sem que de fato essas coisas fossem implantadas, porque não há compreensão nem vontade política de investir seriamente, como fez, por exemplo, a Espanha. Eu não falo só do Guggenheim de Bilbao. Valença vai fazer um tremendo museu que é inacreditável. Ao invés de investir na proliferação pura e simples, talvez devêssemos nos concentrar em melhorar as instituições que já existem.

FP - Quando falamos de museu no Brasil, nós ressaltamos as crises; mas houve uma melhoria nos últimos anos? Quais as saídas para certas situações que nós sempre encontramos?

Fernando - Eu acho que melhorou. Se eu olhar para o Rio Grande do Sul, Pernambuco, mesmo a Bahia num dado momento, ou Fortaleza, com o Dragão do Mar. Mas existem problemas também. Um deles tem a ver com a precariedade institucional do Brasil, pois estamos em um país onde as pessoas e as relações que elas possuem, quando ocupam um cargo, podem fazer toda diferença ou podem colocar tudo a perder. Se você tem uma gestora casada com um governador de Estado, ela consegue toda a verba necessária; quando mudar o governo e nomearem um doutor em História da Arte para dirigir o mesmo museu, ele vai desabar, porque não tem acervo. E isso é um problema. Por outro lado, a comunidade e os profissionais da área têm hoje um grau elevado de proficiência, informação, exigência e know-how. Eu acho inclusive que se o Brasil tivesse dinheiro, saberia fazer museus bem bacanas. Não há falta de know-how.

FP - Que problemas podemos contornar? Há solução para os problemas crônicos como o financeiro, a relação entre o público e o privado? A apropriação de indivíduos de incorporações em nossas instituições?

Fernando - Existem problemas anteriores que até poderiam ser resolvidos. Por exemplo, o desenvolvimento de laços cooperativos sérios entre instituições do país todo, instituições que poderiam trabalhar em conjunto trazendo exposições internacionais, fazendo esforços verdadeiros de articular verbas para baratear custos, mas muitas vezes se comportam como rivais, porque existe essa história de vaidades pessoais ou desavenças afetivas prevalecerem sobre a lógica institucional. Outra questão é a discussão sobre a mudança das leis de incentivo. As grandes corporações, sobretudo os bancos, criaram suas próprias instituições, e como são centros culturais, que não têm coleção, eles acabam transformando os museus de fato existentes em bancos de obras para empréstimo de seus eventos. Talvez um dos mecanismos fosse um dispositivo que obrigasse que metade da renúncia fiscal, que hoje vai para essas instituições, fosse repassada para instituições que têm acervo, numa espécie de compensação. Outro ponto que eu acho importante, se dá na esfera do corpo a corpo; talvez pudesse ser um corpo a corpo mais cooperativo, que seria um pool de museus de uma cidade ou até de um país, por exemplo, o Museu de Arte Moderna do Brasil, que fizesse um trabalho sistemático junto a setores empresariais de várias cidades, no sentido de sensibilizá-los para a importância do investimento cultural. Eu acho que esse é um trabalho de médio e longo prazo, porque é um trabalho de conscientização. Existem vários níveis de possibilidades, e o primeiro deles, eu acho que seria articular instituições que tenham perfil semelhante, seja em cada cidade, seja pensando no país de uma maneira mais complexa. Porque as pessoas ainda tendem a se comportar como se estivessem competindo nas instituições, e isso nós já vimos muito e não ajuda ninguém. Eu sou otimista ainda, acredito no Brasil. Daqui a uns 20 anos as coisas vão estar melhores. Acho que mecanismos como associações de amigos, palestras e debates vão resultar num esforço coletivo de programação. Já essa coisa da apropriação, eu acho realmente absurdo. Você não tem o direito de fazer uma versão doméstica de uma coisa que transborda esse âmbito; apesar dos ocupantes de certos cargos não compreenderem isso. Num país onde não se tem muitas opções de aprendizado visual direto, de contato direto para a pesquisa de uma obra, não podemos nos dar ao luxo de ter um museu entregue às baratas simplesmente porque “virou a sua casa”. Isso é inconcebível. Tem a ver com a precariedade institucional e com a prevalência de vontade executiva, que se superpõe à maquina institucional que deveria quase andar sozinha.

FP - Mas como podemos mudar isso?

Fernando - Se houvesse uma articulação maior entre as instituições e troca de informações. Eu acho que quando pegamos um conjunto de instituições que sejam respeitadas na comunidade, na cidade, no Estado, no país, se empresta um peso diferente do que ações isoladas de indivíduos. De nada adianta fazer um discurso que pregue integração, se ele não faz autocrítica. Está na hora de fazermos isso. Por exemplo, porque não existe uma revista ou um jornal que traga a programação dos principais museus do Brasil? Poderíamos ter um mapa das artes, que são relatórios bi-língues feitos nos Estados Unidos. Já conversei com vários galeristas, e vários compradores estrangeiros pegaram aquele mapa no hall do hotel e foram à galeria. Teríamos informação reunida e esquematizada. É claro que divulgar a informação favorece. Mas, na verdade, não é uma ação, mas sim uma rede de ações que precisam estar muito bem articuladas para que essa coisa flua. Para que todos os museus tenham informação sobre todos os outros.

FP - Como você avalia a relação entre as bienais e os museus de arte no Brasil, em especial São Paulo e Porto Alegre? Sem esquecer Fortaleza, que apontou para uma Bienal lá, em relação com o Dragão do Mar, não é?

Fernando - Eu não sei se o Brasil, apesar de ser continental, agüenta mais bienais do que já tem, até porque há uma proliferação de bienais no mundo e nós sabemos perfeitamente que as mais importantes são as de Veneza e de São Paulo. A do Mercosul é importante. Eu não posso avaliar, porque nasci junto com a Bienal, no mesmo mês, mas pelo que li sobre isso, sei que a Bienal de São Paulo desempenhou um papel importantíssimo na transformação da cidade no pólo que é hoje em dia. Eu não tenho dúvida que nós também podemos observar isso no caso de Porto Alegre, que tem uma coisa surpreendente, o apoio do empresariado local. Isso é uma coisa digna de nota. E os resultados estão vindo: tem a Bienal (porque acho que a Bienal veio para ficar e a esta altura já está lá) e a Fundação Iberê Camargo. Eu não tenho dúvida de que se a relação é positiva e é costurada pelas elites locais, ela dá certo. A Bienal de São Paulo foi exatamente isso. Basta dizer que se você pegar São Paulo no final do pós-guerra, você tem a criação do MAM, do MASP e da Bienal mais ou menos brotando da mesma fonte. Havia um momento de orgulho empresarial, que empurrou essa coisa toda. No Rio Grande do Sul está dando certo por causa disso.

FP - E também porque na Bienal de São Paulo já tem mais de 50 anos, não é?

Fernando – Ela tem uma história de crises. Na década de 60 quando houve o boicote, a crítica ao modelo das Bienais, etc. Quando eu falei que acho que já está de bom tamanho para o Brasil ter duas Bienais, mesmo com a sua dimensão continental, penso que outros lugares podem ter outras modalidades de eventos que sejam complementares. Não é preciso que cada cidade tenha uma Bienal, porque a Bienal de São Paulo e a do Mercosul são complementares; uma tem a tradição, tem credibilidade universal, e a outra tem criado um papel importante, sobretudo no contexto Sul e latino-americano.

FP - Como você avalia esta iniciativa do Goethe, de organizar uma viagem a instituições de arte na Alemanha? E esta viagem à Alemanha é inspiradora? Há comparações possíveis ou exemplos a serem seguidos? Há pontos de partida para projetos de intercâmbio que fortaleçam a rede internacional?

Fernando – Eu acho importante. Ela resulta da iniciativa de um país que tem um projeto cultural planetário, que dimensiona muito bem a grandeza que o país tem, e que aspira continuar tendo. Quem não dá passos largos, não anda mais do que poucos centímetros. Acho que temos que ser pretensiosos mesmo. Do nosso ponto de vista, ao lado da “humilhação” de certas realidades que vemos aqui, isso é importante, porque acabamos vendo modelos alternativos, propostas de gestão que podem ser até muito avançadas ou polêmicas. Esse tipo de confronto de experiência do outro é muito importante para nós.

FP - Entre a utopia e o possível, que museu você imagina? Qual seu museu imaginário?

Fernando - Sendo realista, eu teria que imaginar um museu possível, e não um museu ideal, que tivesse um regime jurídico que permitisse exceção no pagamento de profissionais realmente especializados. Primeiro, teria que ser um museu que pudesse remunerar condignamente seus pares. Segundo, um museu que tivesse condições técnicas padrão, que justificassem a existência de um parceiro de porte que permitisse ter climatização por câmeras, manipulação com luvas, etc. Um museu que tivesse (e esse é um problema gravíssimo dos museus brasileiros) toda atenção voltada em montar maravilhosamente uma coleção permanente, com renovação periódica de seu acervo. Enfim, um museu que pudesse remunerar bem seu staff, um staff enxuto, que tivesse dinheiro para a atualização regular de sua coleção, que tivesse os padrões técnicos mínimos que o tornassem aceitável e desenvolver intercâmbios de outras exposições. Finalmente, uma verba, que permitisse um pool de exposições internacionais, e assim por diante. Não é muita coisa. Um bom staff técnico, uma boa gestão, mostra permanente do acervo. O resto, à medida que você vai crescendo, você vai exigindo um sapato de tamanho maior... Mas vamos começar assim, com três anos cabe um sapatinho, depois pede-se um sapato 4, depois 5, depois 6, não dá para querer atingir a estratosfera do zero em 60 segundos. É por isso que eu fico sempre com o possível.

 


 

Marcelo Araújo

 

Fórum Permanente - Marcelo, o que é museu de arte hoje, no Brasil e no mundo?

Marcelo Araújo - Eu penso que o museu de arte segue cumprindo a sua função social que é fundamental na nossa sociedade. Quando eu digo segue, é porque isso implica em uma idéia de continuidade. Não acho que seja um papel novo, essa função, que já vem de alguns séculos, é a de preservar signos artísticos, resultado da criatividade humana, e dar-lhes um sentido, entendendo que esses signos são fundamentais para a construção das culturas e das individualidades. Na minha opinião, os museus desempenham um papel essencial na construção do indivíduo, e quando eu falo em preservação, estou entendendo preservação no sentido amplo. Não só da conservação stricto sensu, quer dizer, de objetos, mas de toda a articulação das ações da museologia (comunicação, pesquisa, documentação, catalogação, conservação, ação educativa, etc.), estabelecendo redes de sentido que permitam aos signos artísticos se estruturar com os elementos básicos da construção das personalidades e das culturas. No mundo de hoje, o museu é fundamental, devido a processos culturais cada vez mais complexos e de uma certa maneira mais frágeis. Há principalmente a questão da educação do olhar. Farei uma comparação que é politicamente paradigmática: dez anos atrás, no Brasil, a condição necessária para o voto, para o exercício da condição primeira da cidadania, era você ser alfabetizado. Hoje em dia, essa condição não é mais exigida, porque o voto é efetuado através de um computador no qual aparece a fotografia dos candidatos, e a leitura é, portanto, visual. É fundamental entender que uma imagem não é desprovida de valor; ele não é o dado de uma realidade pura, mas é uma construção, e um dado que foi construído pode ser manipulado. Essa é uma questão de educação do olhar, e o uso da arte tem um papel fundamental nesse processo. Quando lembramos das grandes linguagens que surgiram e se consolidaram no Século XX, como a fotografia, o cinema, o videoclip e a publicidade, elas têm a característica comum de serem linguagens que trabalham com a visualidade, muitas vezes acelerando à velocidade um número incomensurável de imagens. Na verdade, o museu de arte tem a capacidade de educar o olhar dos visitantes para que eles possam entender esse processo de formação de imagens e de construção de valores, que hoje é uma condição fundamental para o exercício da cidadania na sociedade contemporânea. Se não tivermos o olhar preparado para ver como as imagens podem ser construídas e quais são seus significados ficamos praticamente entregue ao universo das imagens, sem uma condição de exercício real da cidadania. Portanto, o museu tem um sentido político, que eu considero fundamental, e um sentido mais amplo, a construção dos significados essenciais para a formação da personalidade e para a criação de valores.

FP - Nesse sentido, para quem fazemos os museus?

Marcelo Araújo - Os museus existem para a população como um todo.

Essa é uma visão fundamental, que os museus devem ter hoje em dia. O museu tem que ser voltado à toda a sociedade. No entanto, estamos falando de segmentos que são absolutamente diferenciados em termos de formação e e necessidades, o que nos leva, entrando em questões mais técnicas, à busca de ações específicas para esses diferentes públicos, seja do ponto de vista das necessidades, da faixa etária, da formação e da compreensão. Mas se o museu não tiver essa visão e não se preparar para isso, ele corre um altíssimo risco de se isolar e perder a sua função social.

FP - Como você vê o museu de arte hoje no Brasil? Algo positivo, que podemos falar bem, divulgar como sendo característico local ou brasileiro, que aponte para um futuro mais promissor?

Marcelo Araújo - Tenho tido a oportunidade e até o privilégio ao longo da minha carreira de participar de projetos museológicos em diversos países na América Latina, Estados Unidos e Europa, e visitar museus no Japão, na Índia, e de uma maneira mais técnica, e eu penso que o museu como um todo é uma instituição que enfrenta hoje os mesmos desafios e as mesmas questões.

Eu acho que são processos muito similares. Não vejo uma especificidade dentro da realidade brasileira. É claro que existe um contexto cultural que coloca determinadas questões mais gerais, mas não acho que elas sejam específicas do universo museológico. Sem dúvida nenhuma, a fragilidade das relações sociais no Brasil, sob todos os pontos de vista, nos obriga a uma criatividade em termos de soluções não só técnicas, mas também de encaminhamento de processos, que em outros países, ao contrário, em função da consolidação dessas relações, se desenvolvem sem muita dificuldade. Contudo, isso não é específico do contexto museológico. Na verdade, no contexto museológico, nós temos desafios maiores. No meu ponto de vista, os processos museológicos são processos de médio e longo prazo, e o museu tem uma relação de tempo muito específica. É um tempo totalmente contrário, que se choca com os tempos da cultura contemporânea que são ditados por imposições políticas ou por linguagens que aceleram o tempo. É um tempo de desaceleração e de atenção que o museu solicita para um olhar analítico e crítico, no qual grande parte das pessoas hoje em dia encontra uma enorme dificuldade, porque a vida contemporânea nos obriga a uma ação contrária. Esse grande desafio, comum aos museus de todo mundo, no Brasil, é ainda maior, principalmente do ponto de vista dos choques ou das pressões políticas, onde continuamos tendo que nos dedicar ao desenvolvimento de soluções ou de estratégias possíveis para sobreviver dentro de uma situação que muitas vezes é extremamente diversa. O espaço de respeitabilidade ou a posição conservadora que o museu adquiriu nas sociedades ocidentais ao longo do Século XIX e começo do Século XX, não foi ocupado no Brasil, pelo menos não de uma maneira muito ampla. O espaço que ele tem hoje corre o risco muito grande de estar mais ligado às questões da indústria do lazer ou da indústria cultural, do que com as questões culturais. Falando no contexto brasileiro, talvez isso apresente desafios maiores para serem enfrentados, mas que também são compartilhados com outros países que estão passando por processos sócio-culturais e econômicos similares aos nossos.

FP – Você esteve, na sua trajetória profissional, à frente de processos museológicos extremamente interessantes, como o Lasar Segall, e agora a Pinacoteca. A partir da sua experiência, do seu trabalho nessa área, do privilégio de visitar outros países, qual sua opinião sobre os últimos 10 ou 20 anos no mundo dos museus brasileiros? Porque, geralmente, as pessoas tendem a reclamar mais, a falar mais de problemas do que dos aspectos positivos da museologia brasileira?

Marcelo Araújo – Nós temos uma situação um pouco paradoxal. Houve avanços importantes. Do ponto de vista de formação pessoal, capacitação, conscientização e progressos técnicos, um número significativo de museus brasileiros tem hoje boa capacitação técnica de suas equipes, de suas instalações, e das áreas expositivas. Existe atualmente um mercado de trabalho, não só dentro dos museus, mas em torno desse universo de exposições de arte, que é extremamente sofisticado no Brasil, mesmo tomando como referência padrões internacionais. Por outro lado, nas dificuldades estruturais, políticas, de conhecimento, valorização, disponibilidade de recursos orçamentários e agilidade das instituições, não vejo nenhum avanço, para não dizer que houve retrocesso. Nos âmbitos federal, estadual, municipal, mesmo dentro das universidades e no setor privado, não ocorreram mudanças significativas nos últimos 10 anos. Para mim, é uma situação bastante paradoxal, pois existem conquistas de capacitação técnica, realização e compreensão. Eu acho que hoje nós temos uma capacidade extremamente sofisticada de desenvolver projetos e ações no Brasil, e, por outro lado, uma realidade que continua com as mesmas dificuldades.

FP - E o equilíbrio entre o público e o privado?

Marcelo Araújo - Nas questões que continuam sendo determinantes, a relação entre o público e o privado é bem difícil, porque aí entra o reconhecimento do papel do Estado na área cultural, onde, na verdade, há, senão um retrocesso, uma diminuição. Nos anos 70 e no começo dos anos 80, havia ações mais estruturadas e organizadas, e hoje elas estão extremamente fragilizadas. Nós vemos instituições federais como o IPHAN onde há mais de uma década não se contrata nenhum profissional, e, quando você passa décadas sem contratar ninguém, há um lapso de gerações que é praticamente impossível de ser reposto. Nas outras esferas, municipal e estadual, isso também acontece. Para mim, essa é uma situação preocupante, porque a médio prazo, isso acaba fragilizando as instituições de uma maneira praticamente irreversível, fazendo com que daqui a um determinado tempo, essas instituições tenham que ser repensadas e recriadas a partir do zero, o que significa um desafio totalmente desnecessário, que traz riscos imensos.

FP - Pensando nos museus no Brasil e em seus problemas crônicos, principalmente financeiros, a relação entre o público e o privado, e pensando até na apropriação de indivíduos ou grupos de indivíduos e até de corporações e coleções e museus brasileiros, como podemos ir adiante?

Marcelo Araújo - Eu acho que essas questões todas, esses conflitos, problemas e paradoxos, têm solução. Se nós pensarmos em termos de propostas, muitas vezes, elas são até relativamente fáceis de serem encontradas. O que existe no Brasil é um embate político muito grande no cenário em que esses problemas ocorrem, e há necessidade fundamentalmente de vontade política de avançar no grau de organização. A questão do conflito entre o público e o privado (e aí sabemos também que esse problema não é prerrogativa da área museológica), é uma das questões mais difíceis neste começo do Século XXI, e ela ocorre paralelamente à diminuição da ação estatal. Sem dúvida nenhuma tem que haver pensamentos e propostas. Por exemplo, no caso do Brasil, uma situação muito pontual, mas que nos últimos anos já vem sendo combatida, é a destinação de verbas que recebem incentivo da Lei Rouanet para aplicação em institutos corporativos. Obviamente, isso não configura uma ação pública, ou pode até ser uma ação pública revertida em benefício corporativo, numa proporção totalmente inadequada quando se pensa que, na verdade, estamos trabalhando com verbas públicas. Por exemplo, deve haver uma limitação a esse tipo de benefício, que na verdade já vem ocorrendo nos últimos anos, mas que deve ser ainda maior.

FP - Para finalizar, entre a utopia e o possível, que museu você imagina? Qual seu museu imaginário?

Marcelo Araújo - Meu museu imaginário é bem possível. Ele é um museu que teria condições técnicas e financeiras mínimas para desenvolver seus objetivos e projetos. Eu estou falando de uma instituição que tivesse uma política clara e definida, que pudesse encontrar os meios dentro da sociedade e do governo, se fosse uma instituição estatal, para poder cumprir esse papel de trabalhar no seio da sociedade, valorizando as obras de seu acervo de forma que elas pudessem ser entendidas e compreendidas naquilo que trazem como meio de reflexão da realidade na qual estão inseridas. Durante as últimas décadas ocorreram muitas discussões sobre o papel dos museus, muitas vezes até discussões acadêmicas, sobre currículos ou áreas, união de museus, centros culturais, bibliotecas, mas é importante o museu entender o seu papel específico. Utopicamente, gostaria que ele tivesse condições para desenvolver esse papel. Para finalizar, o museu ideal e utópico, para mim, é o museu que se tornasse tão vital e importante para as pessoas que elas passariam a ter com ele uma relação tão essencial e cotidiana como se entrassem em um supermercado, em uma farmácia ou em um cinema.