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O governo federal, o desleixo e o desmanche da cultura

Por Lilia Schwarcz para o Nexo Jornal em 18/11/2019.

No início de novembro, o governo federal decidiu transferir a Secretaria Especial da Cultura da pasta da Cidadania para o Ministério do Turismo, comandado pelo polêmico Marcelo Álvaro Antônio, ele próprio indiciado pela Polícia Federal por crime eleitoral e associação criminosa, atividades mais conhecidas como “candidaturas-laranja”. Já em sua pomposa nota oficial, o ministro declarou que sua pasta tem “sinergias e atividades naturalmente integradas”. O que há de “natural” ele não explicou, mas aproveitou para divulgar sua visão original, digamos assim, em relação ao que seria o papel da cultura: “A cultura é um dos principais atrativos do país e é responsável por grande parte da movimentação de visitantes nacionais e internacionais”. Me explique quem tiver entendido a complexidade da definição de Marcelo Álvaro Antônio.

Para piorar, nesse meio tempo, o presidente da República nomeou o dramaturgo Roberto Alvim para chefiar a Secretaria Especial da Cultura. Alvim exercia o cargo de diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte (Fundação Nacional de Artes) e ganhou a simpatia da ala bolsonarista quando, em setembro, usou seu Facebook para atacar a atriz Fernanda Montenegro, de 89 anos. Na publicação, que viralizou, ele usa termos como “sórdida” para descrevê-la; tudo por causa de uma capa da edição de outubro da revista Quatro Cinco Um, em que a atriz aparece retratada como uma bruxa, sendo queimada numa fogueira de livros. Resultado: o ator, que utilizou, ele, sim, de comportamento “sórdido”, conseguiu o que queria – um cargo no Olimpo da política atual.

Essas e outras atitudes tomadas pelo Executivo indicam não só sua contrariedade diante de intelectuais e artistas, como sua vontade de sucatear a Cultura. Mas se as notícias que relatei acima bombaram na mídia, preocupa uma certa política de subsolo, aquela mais miúda, feita na calada e sem muito alarde. Um episódio muito significativo, nesse sentido, refere-se à nomeação da nova presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa. Essa história simboliza o pouco caso do governo diante de importantes instituições culturais e o desprezo frente à produção de história, cultura, patrimônio, memória e arquivos de uma forma geral.

Vamos ao evento. Desde 1930, a tradição foi que fossem escolhidas para dirigir a Casa de Rui Barbosa personalidades de reconhecido valor acadêmico. Por isso mesmo, a recente nomeação de Letícia Dornelles acabou gerando muito espanto. Autora de novelas e de livros infantis, a nova presidente da casa foi repórter do programa Fantástico, da Globo, trabalhou no Globo Esportes e apresentou Esporte Total na TV Bandeirantes. Ela também traz no seu currículo o fato de ser roteirista e atriz. Todavia, e definitivamente, não tem o perfil para gerir uma casa que é responsável pelo acervo e a pesquisa da obra de Rui Barbosa, mas que também cuida de preservação, de investigações e da divulgação de vasta documentação no campo da literatura e da filologia.

Por essas e por outras é que o caso não me parece isolado; significa uma política premeditada do governo e bem vale uma reflexão mais detida sobre o perfil dessa instituição e seus desafios. A Casa de Rui Barbosa – situada num palacete na rua São Clemente, 134, em Botafogo, no Rio de Janeiro – é uma instituição pequena. Ela conta com um número reduzido de funcionários, que consomem poucos recursos do Estado. Talvez por isso mesmo, ninguém poderia imaginar que ela fosse motivo para uma espécie de intervenção (disfarçada) do Estado, que não se deu ao trabalho de sequer consultar os envolvidos com o trabalho da Fundação.

Além do mais, questões ideológicas – pertencimento ao campo das esquerdas ou das direitas – parecem nunca terem afetado as nomeações anteriores e o bom convívio democrático com as diferenças. O historiador Américo Jacobina Lacombe, por exemplo, que permaneceu por mais de 50 anos no cargo, era assumidamente conservador. Era uma pessoa muito preparada, não apenas por seu conhecimento profundo da obra de Rui Barbosa, como de história brasileira de uma forma geral. Ex-integralista, nunca usou opções políticas como critério para formar os quadros da instituição. Tanto que convidou para prefaciar as obras de Rui Barbosa “velhos comunistas” como Astrogildo Pereira e grandes intelectuais como Francisco de Assis Barbosa, Homero Senna, Origenes Lessa, Thiers Martins Moreira. Muitos deles acabaram fazendo parte dos quadros da instituição, assim como Plinio Doyle e o filólogo Adriano da Gama Kury. Além do mais, jovens pesquisadores que entravam na instituição foram sempre acolhidos com respeito, independentemente de suas opções políticas. Na verdade, o critério imperante na fundação sempre foi, e continua sendo, o vínculo comprovado com a vida acadêmica, bem como apresentar produção significativa.

E se foi durante o governo Vargas que o então jovem Américo Jacobina Lacombe seria nomeado para dirigir a instituição, foi também durante sua longa administração que se daria início à publicação das obras completas de Rui Barbosa, ao mesmo tempo em que o estabelecimento foi transformado em grande centro de pesquisa, documentação e memória. Aliás, desde os anos 1970, um anexo foi acoplado à casa original, o que possibilitou a contratação de um grupo de pesquisadores, arquivistas e museólogos especializados, ampliando-se o papel da instituição como um centro de excelência em estudos históricos, literários, filológicos e jurídicos.

Ao seu arquivo mais propriamente histórico foi incorporado o arquivo do museu de literatura, que foi criado por Plinio Doyle e hoje abriga coleções de autores como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Vinícius de Moraes, dentre tantos outros.

A casa promove, igualmente, encontros, seminários, exposições de reconhecida qualidade, muitos deles convertidos em publicações. Por sinal, a editora da fundação, iniciada a partir da publicação das obras de Rui Barbosa, hoje acumula um vasto catálogo nas áreas de literatura, história, direito, folclore e artes.

Um bom exemplo do perfil dinâmico da instituição pode ser encontrado nos anos 1980, quando concentrou importantes publicações sobre os centenários da Abolição e da República. Foram publicados, então, a partir dos seminários por lá realizados, livros hoje considerados clássicos, como: “Os bestializados”, do historiador José Murilo de Carvalho; “A guerra das ruas”, de Eduardo Silva; “Queixas do povo”, de Marcos Bretas; “Cinematógrafo de letras”, de Flora Sussekind; “Brasil pelo método confuso”, de Isabel Lustosa – sendo que toda a produção acadêmica desses três últimos autores foi realizada na instituição e, em grande parte, fazendo bom uso de seus arquivos.

Estudos nas áreas de culturas urbanas são também uma marca da casa, bem como aqueles sobre história da imprensa. A área de políticas culturais, criada em 2002, é hoje responsável por uma cátedra patrocinada pela Unesco, e o setor de direito abriga outra cátedra internacional, a Sérgio Vieira de Melo, voltada aos temas relacionados aos refugiados. Em 2016, foi aberto um mestrado profissionalizante sobre memória e acervos, e, desde 2018, vem sendo estruturado um Instituto de Altos Estudos, com o objetivo de tornar mais estreitos e formais os laços que já unem a Fundação Casa de Rui Barbosa ao mundo acadêmico não só nacional, como internacional.

Entretanto, como nesses tempos sombrios conhecimento vale muito pouco – o que importa é ter apenas alguma opinião –, parece que bastou Letícia Dornelles se candidatar (e ter a perspectiva de contar com um bom salário numa casa prestigiosa) para que levasse a vaga.

Conta a história que o presidente Washington Luis, passando pela rua São Clemente, soube que a casa que pertencera a Rui Barbosa seria demolida para a construção e passagem de uma adutora e tratou de impedir a destruição do imóvel. O exemplo mostra como, mesmo antes da criação do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), existiam políticos que sabiam da importância do patrimônio histórico para a manutenção da memória e da história de um país.

A Fundação Casa de Rui Barbosa tem ainda sede na mesma casa onde residiu o jurista e intelectual brasileiro, entre 1895 e 1923, data de sua morte. Comprada pelo governo brasileiro, juntamente com a biblioteca, os arquivos e a propriedade intelectual das obras de Rui Barbosa, o estabelecimento foi aberto ao público como museu – o primeiro museu casa público do Brasil. Enfim, diante de uma instituição como essa, o que fez com que Letícia Dornelles fosse indicada como presidente? Descuido? Não acredito. Desejo de aprimorar a instituição? Acredito menos ainda. Só pode ser então descaso, menosprezo e a mais absoluta falta de atenção para com setores da cultura nacional. Isso na melhor das hipóteses. Na pior, trata-se de provocar o desmanche mesmo. Por inanição.