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Fogo na estátua chama a atenção para os novos Borba Gatos que atacam os indígenas

Nabil Bonduki para Folha de São Paulo, em 25/07/2021.
Fogo na estátua chama a atenção para os novos Borba Gatos que atacam os indígenas

Estátua do bandeirante Borba Gato é incendiada em São Paulo - Gabriel Schlickmann/iShoot/Folhapress

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nabil-bonduki/2021/07/fogo-na-estatua-chama-a-atencao-para-os-novos-borba-gatos-que-atacam-os-indigenas.shtml?origin=uol

Quando o Estado se ausenta em um tema importante, setores da sociedade agem com as próprias mãos

 

Questionar as homenagens aos chamados bandeirantes é tema antigo. Em 2001, no meu primeiro mandato, apresentei um Projeto de Lei para suprimir uma referência ufanista aos bandeirantes e ultrajante aos indígenas que está esculpida no mármore da fachada da Câmara Municipal.

A proposta terminou arquivada, assim como estão paralisadas outras iniciativas semelhantes. Movimentos sociais, organizações e especialistas tem atuado para rever as homenagens a essas figuras de opressão, sem sucesso pois as atuais gestões tem se recusado a debater a questão. É isso que provoca confrontos indesejáveis.

Em 2020, um Condephaat composto majoritariamente por indicados pelo governador João Doria aprovou uma moção contrária a um Projeto de Lei da deputada Érica Malunguinho, que visava fomentar o debate e a criação de uma política pública qualificada sobre o assunto.

Quando o Estado se ausenta em um tema importante, setores da sociedade acabam agindo com as próprias mãos. Colocar fogo no Borba Gato foi uma resposta, na linha da “ação direta”, à falta de ações do poder público em rever a visão histórica que enaltece colonialistas e escravistas que praticaram o genocídio dos povos originários. Isso precisa ser feito, como está ocorrendo em todo o mundo ocidental, sobretudo após o assassinato de George Floyd em 2020.

Não vou repetir aqui os argumentos da minha coluna de 15/6/2020, “Remover monumentos e homenagens racistas sem destruir a memória”, que trata do tema de forma aprofundada. É urgente São Paulo debater e denunciar a farsa histórica construída sobre os bandeirantes como os heróis paulistas, revisar os currículos escolares e suprimir, através de um amplo debate democrático, as homenagens a esse genocidas.

Isso significa remover estátuas do espaço público, sem apagá-las da história pois sua própria existência é expressão da selvageria, e promover uma ampla revisão dos nomes de logradouros, rodovias e palácios, na linha do Projeto Ruas de Memória, implementado na gestão Haddad, que propunha mudar os nomes dos logradouros que homenageavam pessoas que atacaram os direitos humanos.

Essas iniciativas precisam ser formuladas de forma democrática, envolvendo todos os setores da sociedade, de modo a gerar alterações estruturais e permanentes. A mera derrubada, queima ou depredação de monumentos, como método, não é a melhor forma de rever a história.

Mas é indiscutível que a forte repercussão do happening no Borba Gato forçou a discussão desse tema. Ele não deve se inserir em um contexto de crescimento da polarização, do ódio e da radicalização, que precisamos evitar em um momento em que setores antidemocráticos se organizam e que as instituições estão desacreditadas.

Derrubar ou queimar estátuas, em si, não é um ato de esquerda ou de direita, mas uma ação que pode ter um viés autoritário. Inúmeros monumentos de Marx e Lenin foram derrubados em todos os países do leste europeu, na ira capitalista presente na derrocada do “socialismo real” soviético.

A extrema direita brasileira, representada pelo bolsonarismo de raiz, adoraria suprimir homenagens a Paulo Freire ou Darci Ribeiro e não hesitaria fazer isso de forma violenta. A pedra que relembra o local onde Marighela foi assassinado pela ditadura é frequentemente vandalizada por defensores do regime militar.

Não foi o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) que derrubou a escultura de Flávio de Carvalho, em homenagem ao poeta espanhol socialista Garcia Lorca em 1969, com o apoio velado da ditadura militar?

Mas é inegável o poder midiático do fogo em uma estátua tão simbólica como o Borba Gato segurando sua espingarda. Ele representa não apenas a necessidade de suprimir homenagens aos genocidas dos séculos 17 e 18, como também desperta a atenção sobre os ataques atuais aos povos indígenas, quilombolas e periféricos.

Não se trata, portanto, somente de rever a história, mas de denunciar os genocídios do presente. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal acaba de aprovar a PEC 490/2007, que atinge vários direitos dos indígenas previstos na Constituição, como a posse permanente de suas terras e o usufruto exclusivo sobre seus recursos naturais, permitindo a legalização de garimpos e o desmatamento nas Terras Indígenas.

Pelo projeto só teriam direito à desmarcação os povos indígenas que estivessem em posse (ou em disputa judicial) da terra no dia da promulgação da Constituição (5/10/1988), desconsiderando expulsões, remoções forçadas e violências cometidas anteriormente.

O governo Bolsonaro promove direta ou indiretamente, através da omissão, um processo descontrolado de invasão das terras indígenas por garimpeiros, desmatadores e grileiros de terras.

Esses são os novos Borba Gatos, que dão continuidade aos genocídios do passado, com o apoio do governo federal. Certamente, a violência praticada por eles é incomparavelmente maior do que a queima simbólica de uma estátua. Mas, nesse momento sensível da nossa história, não devemos dar pretextos a uma escalada autoritária.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nabil-bonduki/2021/07/fogo-na-estatua-chama-a-atencao-para-os-novos-borba-gatos-que-atacam-os-indigenas.shtml?origin=uol