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Classe ensaia mobilização inédita em reação a proposta do MinC de criar câmara setorial
A música se levanta
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
A voz grave de locutor de rádio
ou cinemão à moda antiga se abre
ao microfone, anuncia que vai começar o espetáculo. Poderia ser
um auditório de fãzocas da dourada Rádio Nacional, uma assembléia estudantil tipo anos 60 ou
um culto religioso em qualquer
época e lugar -mas nada disso.
O "locutor" se chama Ivan Lins e
está no palco da casa carioca de
jazz Mistura Fina para anunciar
um levante na música brasileira. É
dia 28 de outubro de 2004.
As tentativas de reorganização
da classe musical, no Rio, vêm se
acelerando desde o ano passado,
no âmbito do Fórum Carioca de
Música. Em São Paulo, partem de
fóruns e cooperativas ainda pequenas e isoladas. Agora todas se
afunilam por causa da proposição, pelo Ministério da Cultura
(MinC) do também músico Gilberto Gil, da criação de uma série
de câmaras setoriais para a cultura -entre elas a de música.
A idéia foi importada do Ministério da Indústria e Comércio,
que costuma manter grupos de
discussão e trabalho abrangendo
todos os elos de cadeias produtivas de diversos setores -"para
soja, para porco, para suíno",
exemplifica o violonista Dalmo
Mota, representante do Sindicato
de Músicos do Rio de Janeiro no
concerto e um dos condutores da
nova mobilização.
A platéia de cerca de cem pessoas do Mistura Fina está em polvorosa. Divide-se acaloradamente entre aplausos e vaias remetidos ao governo federal, ao ministro-cantor, ao representante do
sindicato ("Não conheço você,
nunca ouvi falar, conheço líder estudantil de longe, você não me representa", brada o compositor
Abel Silva, encarnando o contra-tudo-e-contra-todos).
Vários se colocam contra a participação de outros elos da cadeia
musical na câmara setorial. Tibério Gaspar, veterano co-autor do
hino vencedor de festival "BR-3"
(70), cunha o termo "hidra" (que
virará moda e mania ao longo da
reunião-show) para definir os inimigos em comum -além do governo, um monstro à parte.
O bicho de cinco cabeças, segundo ele, solda gravadoras, editoras, TVs, rádios e empresários
musicais. Esquece-se de que os
próprios músicos, compositores,
intérpretes e letristas formam a
sexta cabeçorra do monstro. "Somos muito fortes, somos milhares, mas não temos consciência de
classe. Esse é que é o perigo", (auto)critica Tibério, quase encontrando a sexta cabeça.
Em meio à balbúrdia de bichos
diversos numa arca de Noé, discursos dos chefes de chapa vão
tentando clarear o panorama. A
plenária aos poucos absorve a retórica de que é preciso forjar a impressão de uma classe unida e
apresentar propostas concretas
no próximo encontro com o ministro, marcado para esta quinta-feira, no Rio.
O comissariado, em forma de
quinteto sem cordas, é constituído por Dalmo Mota, pelos históricos Francis Hime e Ivan Lins
("Dalmo é um grande violonista",
ele tenta salvar mais tarde), por
Cristina Saraiva (que se autodefine "letrista e artista desconhecida") e por Ana Terra, co-autora,
com Angela Ro Ro, de "Amor,
Meu Grande Amor" (79).
Se, em reunião anterior, na casa
de Hime, compareceram espectadores-atores mais ou menos jovens, como Frejat, Zélia Duncan e
Pedro Luís, desta vez o predomínio é da velha guarda da combalida MPB, no meio da qual bóiam
meio perdidos militantes egressos
da música erudita ou do pop dos
anos 90 (como o radiofônico Jorge Vercilo) e 80 (Fernanda
Abreu). A ex-backing vocal da
Blitz provoca: "Chamei um monte de gente, DJ Marlboro, MV Bill,
Paula Toller, não vieram. Cadê os
"conscientes'? Cadê MV Bill, Paralamas, Titãs, Kid
Abelha? Cadê o
Lobão?".
Lobão, notório
rebelde com várias causas, estava
viajando, mas
promete que vai
aparecer nas próximas reuniões.
Entre emepebistas históricos como Marcos Valle,
João Bosco e Carlos Lyra e uma pequena legião de
operários da música, nota-se a ausência quase total
de figurões da dita
linha de frente da
música nacional. Cristina Saraiva
tomou a iniciativa de manter informado por fax o outrora participante Chico Buarque, colega dela
nos jogos de futebol. Maria Bethânia mandou avisar que não tem
muita paciência para essas coisas,
Caetano Veloso está cantando no
Primeiro Mundo.
Até o momento ainda não deram as caras bichos tão diversificados quanto militantes de samba
de raiz, movimento hip hop, funk
carioca, axé music, canção sertaneja (afora Sérgio Reis, atuante no
grupo paulistano, que tenta seguir
de perto o carioca com intensas e
intensivas reuniões).
Quem organiza o movimento e
orienta o Carnaval, por enquanto,
são artistas com quem o grande
público não tem familiaridade,
como Cristina e
Dalmo no Rio e
Carlinhos Antunes e Juca Novaes
em São Paulo.
Mas, nas duas
cidades, a voz
mais forte tem sido a de Ivan Lins,
que freqüentemente adota um
discurso de tomada de responsabilidade, mais proposta e menos reclamação.
Quando o
maestro Antonio
Adolfo, o outro
co-autor de "BR-3", reclama do
que virou o Ecad
(Escritório Central de Arrecadação de Direitos),
Ana Terra retruca: "Virou por
quê? Porque nós deixamos". E
Ivan carimba: "A culpa é nossa".
Ele toma gosto pela coisa e adquire ares de chefe popular, às vezes quase messiânico/populista.
Eis algumas de suas palavras de
ordem: "O governo considera a
cultura um subproduto", "a classe
política não é confiável", "sou privilegiado, podia estar em casa assistindo vocês fazerem, mas quero colocar todo meu prestígio, me
jogar de cabeça nisso", "quero
sentar frente a frente com o pessoal do jabá, ouvir eles dizerem na
minha cara que não pagam jabá",
enfim "talvez esta seja a grande
missão da minha vida".
Mas Ivan acaba por expor também sua própria classe, comumente associada a
fama, glamour, riqueza e futilidade:
"Precisamos discutir a céu aberto,
para que a comunidade saiba que
viver de música
não é tão fácil assim. A comunidade não sabe nada
sobre jabá, sobre
direitos autorais,
sobre pirataria".
Adiante, se refere à desunião de
seus pares: "Às vezes um tenta chutar o balde, mas
outros dois dão
para trás, com a
desculpa de que
"ah, eu estava lá tocando bem no rádio, ia me prejudicar" ". Como Ivan bem sabe, os
que tocam bem no rádio por enquanto continuam guardados em
casa contando o vil metal.
Hime, parceiro histórico do politizado Chico Buarque, admite
que a classe se inspira no burburinho propagado a partir da fauna
cinematográfica e da polêmica
proposta de criação da Agência
Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav).
Sublinha discurso propositivo,
mas também independente. "Os
músicos são sempre acusados de
não se mobilizarem, esta é uma
oportunidade histórica dada pela
presença de Gil no governo" mas
também, "se for o caso de criar
uma agência lá na frente, que seja
de preferência independente do
governo; quem
vai criar políticas
somos nós, é a
classe musical".
Cristina Saraiva
toca no mesmo
assunto: "Quando rolou a história
da Ancinav, me
perguntei por que
a gente também
não tem uma
agência. O cinema está organizado, na música não
temos política nenhuma. Precisamos dar finalmente uma mostra de maturidade
política, que vai
depender da nossa capacidade de
construção coletiva".
E ela completa, ecoando o medo
e a desconfiança subjacentes em
muitos dos discursos: "O mais
importante é que a gente se organize, se estamos organizados e
unidos não há como o governo
passar rasteira".
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