São Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Classe ensaia mobilização inédita em reação a proposta do MinC de criar câmara setorial

A música se levanta

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

A voz grave de locutor de rádio ou cinemão à moda antiga se abre ao microfone, anuncia que vai começar o espetáculo. Poderia ser um auditório de fãzocas da dourada Rádio Nacional, uma assembléia estudantil tipo anos 60 ou um culto religioso em qualquer época e lugar -mas nada disso. O "locutor" se chama Ivan Lins e está no palco da casa carioca de jazz Mistura Fina para anunciar um levante na música brasileira. É dia 28 de outubro de 2004.
As tentativas de reorganização da classe musical, no Rio, vêm se acelerando desde o ano passado, no âmbito do Fórum Carioca de Música. Em São Paulo, partem de fóruns e cooperativas ainda pequenas e isoladas. Agora todas se afunilam por causa da proposição, pelo Ministério da Cultura (MinC) do também músico Gilberto Gil, da criação de uma série de câmaras setoriais para a cultura -entre elas a de música.
A idéia foi importada do Ministério da Indústria e Comércio, que costuma manter grupos de discussão e trabalho abrangendo todos os elos de cadeias produtivas de diversos setores -"para soja, para porco, para suíno", exemplifica o violonista Dalmo Mota, representante do Sindicato de Músicos do Rio de Janeiro no concerto e um dos condutores da nova mobilização.
A platéia de cerca de cem pessoas do Mistura Fina está em polvorosa. Divide-se acaloradamente entre aplausos e vaias remetidos ao governo federal, ao ministro-cantor, ao representante do sindicato ("Não conheço você, nunca ouvi falar, conheço líder estudantil de longe, você não me representa", brada o compositor Abel Silva, encarnando o contra-tudo-e-contra-todos).
Vários se colocam contra a participação de outros elos da cadeia musical na câmara setorial. Tibério Gaspar, veterano co-autor do hino vencedor de festival "BR-3" (70), cunha o termo "hidra" (que virará moda e mania ao longo da reunião-show) para definir os inimigos em comum -além do governo, um monstro à parte.
O bicho de cinco cabeças, segundo ele, solda gravadoras, editoras, TVs, rádios e empresários musicais. Esquece-se de que os próprios músicos, compositores, intérpretes e letristas formam a sexta cabeçorra do monstro. "Somos muito fortes, somos milhares, mas não temos consciência de classe. Esse é que é o perigo", (auto)critica Tibério, quase encontrando a sexta cabeça.
Em meio à balbúrdia de bichos diversos numa arca de Noé, discursos dos chefes de chapa vão tentando clarear o panorama. A plenária aos poucos absorve a retórica de que é preciso forjar a impressão de uma classe unida e apresentar propostas concretas no próximo encontro com o ministro, marcado para esta quinta-feira, no Rio.
O comissariado, em forma de quinteto sem cordas, é constituído por Dalmo Mota, pelos históricos Francis Hime e Ivan Lins ("Dalmo é um grande violonista", ele tenta salvar mais tarde), por Cristina Saraiva (que se autodefine "letrista e artista desconhecida") e por Ana Terra, co-autora, com Angela Ro Ro, de "Amor, Meu Grande Amor" (79).
Se, em reunião anterior, na casa de Hime, compareceram espectadores-atores mais ou menos jovens, como Frejat, Zélia Duncan e Pedro Luís, desta vez o predomínio é da velha guarda da combalida MPB, no meio da qual bóiam meio perdidos militantes egressos da música erudita ou do pop dos anos 90 (como o radiofônico Jorge Vercilo) e 80 (Fernanda Abreu). A ex-backing vocal da Blitz provoca: "Chamei um monte de gente, DJ Marlboro, MV Bill, Paula Toller, não vieram. Cadê os "conscientes'? Cadê MV Bill, Paralamas, Titãs, Kid Abelha? Cadê o Lobão?".
Lobão, notório rebelde com várias causas, estava viajando, mas promete que vai aparecer nas próximas reuniões.
Entre emepebistas históricos como Marcos Valle, João Bosco e Carlos Lyra e uma pequena legião de operários da música, nota-se a ausência quase total de figurões da dita linha de frente da música nacional. Cristina Saraiva tomou a iniciativa de manter informado por fax o outrora participante Chico Buarque, colega dela nos jogos de futebol. Maria Bethânia mandou avisar que não tem muita paciência para essas coisas, Caetano Veloso está cantando no Primeiro Mundo.
Até o momento ainda não deram as caras bichos tão diversificados quanto militantes de samba de raiz, movimento hip hop, funk carioca, axé music, canção sertaneja (afora Sérgio Reis, atuante no grupo paulistano, que tenta seguir de perto o carioca com intensas e intensivas reuniões).
Quem organiza o movimento e orienta o Carnaval, por enquanto, são artistas com quem o grande público não tem familiaridade, como Cristina e Dalmo no Rio e Carlinhos Antunes e Juca Novaes em São Paulo.
Mas, nas duas cidades, a voz mais forte tem sido a de Ivan Lins, que freqüentemente adota um discurso de tomada de responsabilidade, mais proposta e menos reclamação.
Quando o maestro Antonio Adolfo, o outro co-autor de "BR-3", reclama do que virou o Ecad (Escritório Central de Arrecadação de Direitos), Ana Terra retruca: "Virou por quê? Porque nós deixamos". E Ivan carimba: "A culpa é nossa".
Ele toma gosto pela coisa e adquire ares de chefe popular, às vezes quase messiânico/populista. Eis algumas de suas palavras de ordem: "O governo considera a cultura um subproduto", "a classe política não é confiável", "sou privilegiado, podia estar em casa assistindo vocês fazerem, mas quero colocar todo meu prestígio, me jogar de cabeça nisso", "quero sentar frente a frente com o pessoal do jabá, ouvir eles dizerem na minha cara que não pagam jabá", enfim "talvez esta seja a grande missão da minha vida".
Mas Ivan acaba por expor também sua própria classe, comumente associada a fama, glamour, riqueza e futilidade: "Precisamos discutir a céu aberto, para que a comunidade saiba que viver de música não é tão fácil assim. A comunidade não sabe nada sobre jabá, sobre direitos autorais, sobre pirataria".
Adiante, se refere à desunião de seus pares: "Às vezes um tenta chutar o balde, mas outros dois dão para trás, com a desculpa de que "ah, eu estava lá tocando bem no rádio, ia me prejudicar" ". Como Ivan bem sabe, os que tocam bem no rádio por enquanto continuam guardados em casa contando o vil metal.
Hime, parceiro histórico do politizado Chico Buarque, admite que a classe se inspira no burburinho propagado a partir da fauna cinematográfica e da polêmica proposta de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav).
Sublinha discurso propositivo, mas também independente. "Os músicos são sempre acusados de não se mobilizarem, esta é uma oportunidade histórica dada pela presença de Gil no governo" mas também, "se for o caso de criar uma agência lá na frente, que seja de preferência independente do governo; quem vai criar políticas somos nós, é a classe musical".
Cristina Saraiva toca no mesmo assunto: "Quando rolou a história da Ancinav, me perguntei por que a gente também não tem uma agência. O cinema está organizado, na música não temos política nenhuma. Precisamos dar finalmente uma mostra de maturidade política, que vai depender da nossa capacidade de construção coletiva".
E ela completa, ecoando o medo e a desconfiança subjacentes em muitos dos discursos: "O mais importante é que a gente se organize, se estamos organizados e unidos não há como o governo passar rasteira".


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.