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Pixo e graffiti: a periferia estampada nos muros da cidade

Por Victor Matioli para o IEA/USP em 04/10/2018.

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Eliana Sousa Silva abre o debate no IEA-USP

Em 2017, o canal de TV americano CNN chamou a artista Panmela Castro de “a rainha do graffiti brasileiro”. Anarkia Boladona, como é conhecida nas ruas, nasceu e foi criada na Vila da Penha, região suburbana da capital carioca. Contrariando as estatísticas, ingressou na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e se tornou bacharel em pintura. Depois, obteve o título de mestre em Processos Artísticos Contemporâneos pela Universidade do Estado Rio de Janeiro (UERJ). Panmela é um ponto fora da curva, um dos raros exemplos em que a academia e a produção artística das periferias se misturam. É a personificação do objetivo
da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência
em 2018.

Sob a titularidade de Eliana Sousa Silva, a cátedra pretende entender justamente como a universidade pode se aproximar da vida e da arte suburbana, para aprofundar os laços academia-comunidade. Do anseio nasceu o ciclo de eventos Centralidades Periféricas, que  já reuniu escritores e pesquisadores para falar sobre a literatura produzida nos e pelos subúrbios.

No dia 28 de setembro, o IEA recebeu o segundo evento do ciclo, intitulado Marcas na Pele da Cidade: Narrativas Visuais das Periferias, que tratou da arte urbana criada nas periferias, principalmente o pixo, o graffiti e a HQ. Segundo Eliana, “é importante que a universidade não só conheça, mas se aproprie dessas narrativas diversas”.

Além da titular da cátedra, que mediou o debate, e Panmela Castro, participaram do evento também Marcelo D'Salete, professor, ilustrador e autor de quatro livros de histórias em quadrinhos, Michel Onguer, artista plástico especializado em graffiti e fundador da Ciclo Social Arte, e Sérgio Miguel Franco, sociólogo e curador de arte especializado em pixação e graffiti.

Academia e periferia

Apesar de ter passado por duas grandes universidades durante sua formação, Panmela é crítica ao modelo que considera pouco flexível da academia. “O conhecimento que eu trazia das ruas era valioso para a universidade, mas havia uma exigência de que as referências fossem ‘tradicionais’”, lamentou. Por referências tradicionais, ela se refere a autores como Simone de Beauvoir e Foucault, que guiaram sua experiência acadêmica. Para ela, essa foi uma demonstração clara de que a universidade tem regras seculares, que não podem ser quebradas.

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Panmela Castro: "Hoje meu trabalho busca descolonizar o corpo, a arte e, utopicamente, a cidade"

Panmela entende que a solução para o distanciamento passa pela representação. “A melhor maneira de aproximar a periferia e a universidade é fazer com que as pessoas da periferia estejam dentro da universidade, e não só como convidadas, mas escrevendo as teses”, argumentou. Para que isso aconteça, ela defendeu a intensificação de políticas afirmativas, como as cotas: “É esse tipo de política pública que possibilita que as pessoas de periferia estejam nas universidades, como aconteceu comigo”.

“A universidade aborda a arte das periferias de maneira muito rasa”, continuou Michel Onguer. Ele considera que o discurso usado pela academia é restritivo e não atinge os membros da periferia: “As referências [bibliográficas], por exemplo, eu acho incríveis, mas sei que quem está fora da universidade não entende nada”. Ele acredita que, para se aproximar dos projetos artísticos da periferia, a universidade precisa “ir a campo”. “Se você procurar no Google, só vai encontrar os maiores projetos, mas se for até o último bairro da cidade vai encontrar coisas muito mais interessantes e que precisam de ajuda para existir”, pontuou.

Marcelo D’Salete lembrou que trazer a periferia para a universidade é importante, mas não esgota o problema. “É fundamental também que discussões como esta sejam levadas até as periferias”, defendeu. Ele acredita que é necessário ocupar esses ambientes, como já é tradicional nos saraus da periferia. “Precisamos, ainda, ter espaços dentro dos cursos universitários para que esse tipo de discussão entre, espaços que de fato promovam diálogos sobre diferenças e diversidade”, argumentou.

A aproximação, para ele, deve ser feita sob a forma de pesquisas, cursos, cadeiras e disciplinas que enfoquem a produção artística dos subúrbios. Ele entende ser preciso mudar o perfil do público discente e docente nas universidades, através de políticas públicas de inclusão: “A política de ações afirmativas que temos hoje na USP é um avanço, mas ainda modifica pouco sua configuração”.

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Michel Onguer: "Começamos a pintar o nosso bairro, de uma maneira organizada, com o intuito de criar um ponto de conexão para as artes"

Empreendedorismo social pela arte

15 anos de idade, estudando em uma escola pública, cercado de pixadores. Foi assim que Michel Onguer teve seu primeiro contato com a arte urbana que depois tornou-se seu grande projeto de vida. Apesar da proximidade com diversas gangues de pixadores, Onguer não pixava. Ele gostava de desenhar e desde o início se dedicou ao graffiti. Em São Paulo, nas décadas de 1980 e 1990, os grupos não se misturavam: “Ou você era grafiteiro ou pixador”, contou. Oriundo do Jardim Ângela, na Zona Sul da capital paulista, foi criticado pelos conterrâneos pela escolha.

Provocado por um amigo, começou a consumir livros de arte e frequentar museus, um ambiente que se opõe diametralmente ao universo da arte urbana no qual se descobriu. Atualmente ele trabalha neste mercado de Fine Arts que, segundo ele, permitiu que enxergasse a arte de maneira mais ampla. Era marcante para ele, no entanto, o fato de os graffitis se concentrarem nas regiões mais centrais da cidade, como a Vila Madalena e a Avenida Paulista. Para contrapor essa lógica e permitir que a arte voltasse aos bairros da periferia — e lá ficasse —, Onguer criou com alguns amigos a organização cultural Ciclo Social Arte.

Segundo ele, o objetivo da iniciativa é empoderar e informar os moradores dos bairros sobre a arte. “Começamos a pintar o nosso bairro, de uma maneira organizada, com o intuito de criar um ponto de conexão para as artes, ou seja, ir além do graffiti”, explicou. O muro não é uma exclusividade dos grafiteiros, outras formas de expressão artística são aceitas e incentivadas. A comunicação com outros bairros também é uma característica do projeto: “Damos preferência para os artistas locais, mas também convidamos os de outros bairros para pintar”.

Depois do início das atividades do grupo, algumas escolas procuraram a Ciclo Social Arte para fazer pinturas em seus muros. Para Onguer, este tipo de graffiti — já tradicional — era comercial demais, deslocado dos interesses da organização. A solução encontrada foi sugerir pinturas autorais para as escolas, juntando os anseios das duas partes. A experiência funcionou e a Ciclo Social Arte continua até hoje pintando os muros dessas instituições.

A atuação da organização mudou a aparência do bairro, mas, para Onguer, a real transformação pretendida acontece nas pessoas. “Nós queremos que elas convivam com a arte não só para conhecer o graffiti, mas também como incentivo para que frequentem museus e consigam ‘ler’ a arte contemporânea”, contou.

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Sérgio Miguel Franco: "Políticas públicas culturais que atendam a grupos periféricos são imprescindíveis"

Pixadores e protagonismo urbano

O ensaísta Walter Benjamin usava o personagem flâneur — “errante”, em tradução livre — para compreender a sociedade urbana de Paris no século 19. Para Sérgio Miguel Franco, que se coloca no meio do caminho entre o urbanismo e a sociologia, há um paralelo possível para o objeto de estudo de Benjamin. “Existe hoje um personagem tão ou mais protagonista do que o flâneur foi no século 19: o pixador”, argumentou. “Foi com esse personagem, que caracteriza uma existência na periferia, que construí minha inserção no meio da arte contemporânea.”

Em 2012, Franco acompanhou um grupo de pixadores paulistanos convidados a participar da 7ª Bienal de Berlin, da qual participava como curador de pixação. A viagem e a rotina dos pixadores foi registrada no filme “Pixadores”, de 2015. Segundo o sociólogo, o longa já foi exibido em mais de 50 países. Mas quando Franco ofereceu o filme aos organizadores da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, recebeu como resposta que “não interessava à mostra falar sobre pixação”.

Marcelo D’Salete acredita que o atual momento social do Brasil torna obrigatório conhecer mais a fundo as expressões artísticas da periferia. “Muitas vezes, manifestações de jovens suburbanos, geralmente negros e pobres, podem resultar em graves casos de punições e repressões”, argumentou. Para ele, é preciso entender a arte como forma de existência e resistência dos grupos periféricos.

A história do professor com a arte urbana começou na Escola Técnica Carlos de Campos, no bairro do Brás, em São Paulo. Lá, D’Salete participou de um grupo de grafiteiros que, segundo ele, “flertava e convivia com a pixação”. Para ele, ambas as expressões artísticas se aproximam do conceito de “performance”, geralmente usado nas artes plásticas. “O graffiti e a pixação exigem percorrer a cidade, conhecer seu espaço, vê-la como um suporte e intervir sobre ela com muita energia”. explicou.

Ele acredita que “Pixo”, filme dirigido por João Wainer e lançado em 2010, é um atalho para conhecer as intervenções deste grupo de jovens na cidade. “Existe neles um componente de ocupar o espaço, mas existe também um componente de transgressão”, afirmou. “Não podemos esquecer que vivemos em uma cidade cuja arquitetura, em grande parte, se presta à exclusão, a deixar o outro fora”. Para ele, os altos muros de casas abastadas, que impedem os jovens periféricos enxergar o horizonte, são um convite para deixarem suas marcas e se verem representados em um espaço que não os considera.

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Marcelo D'Salete: "Vivemos em uma cidade cuja arquitetura, em grande parte, se presta à exclusão, a deixar o outro fora"

D’Salete lembrou ainda que a independência financeira de grupos como o criado por Michel Onguer é importante para que a arte criada na periferia continue sendo propagada. “Mas também é relevante que existam programas governamentais que apoiem esse tipo de iniciativa”, defendeu. Sérgio Miguel Franco completou ressaltando que os pixadores paulistanos só puderam ir à Bienal de Berlin porque receberam verba de um edital do Ministério da Cultura. “Políticas públicas culturais que atendam a grupos periféricos são imprescindíveis”, concluiu.

Arte urbana e gênero

Apesar de ser reconhecida hoje por seus graffitis, durante mais de uma década Panmela se dedicou ao pixo. Por ser um ambiente frequentado majoritariamente por homens, ela revelou que sentia a necessidade de se masculinizar para pertencer ao grupo. “Eu precisava andar e falar como os homens, porque eles não aceitavam uma ‘mulherzinha’ ali no meio deles”, explicou. Escondendo sua feminilidade, foi aceita, mas não completamente: “Por mais que eu me masculinizasse, o fato de ter um corpo feminino me impedia de atingir o poder que os meninos tinham e eu tanto almejava”.

Quando deixou a pixação e entrou no universo do graffiti, entretanto, Panmela sentiu justamente o contrário. “Ali eu tinha que estar muito quietinha, ser bem menininha, para não fugir do padrão esperado pelos grafiteiros”, revelou. Ela levantou questionamentos também sobre o quão representativos das periferias são os graffitis atuais. “O graffiti, que é visto por muitos no Brasil como uma expressão artística da periferia, na verdade foi importado de Nova York, juntamente com seus personagens característicos e tipografia”, criticou.

Por outro lado, muitos rebatem o argumento dizendo que os artistas brasileiros exploram, no graffiti, suas vivências e experiências pessoais no subúrbio. “Me pergunto se não é só uma representação estereotipada para garantir a sobrevivência do artista, já que é muito difícil viver de arte no Brasil”, refletiu. “Minha preocupação é encontrar uma arte que realmente nos represente e não seja só uma apropriação do que vem de fora.”

A postura questionadora de Panmela, que não se cala quando vê um graffiti que reproduz a lógica “importada” que ela tanto critica, gerou inimizades no meio e questionamentos sobre sua arte. “Quando uso elementos mais provocadores, como as flores-vaginas, minha página do Facebook é derrubada, sou processada, o que não acontecia quando eu pintava somente bonequinhas cor-de-rosa”, ironizou. Hoje, Panmela afirma que seu trabalho pretende “descolonizar o corpo, descolonizar a arte e, utopicamente, descolonizar a cidade”.

Essa produção passou a disputar a formulação de conceitos e consensos com a universidade, na opinião de Ivana. "A cultura periférica fez as discussões mais interessantes no país nos últimos 10, 20 anos."

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP

Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/pixo-e-graffiti