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Razão geométrica, divergências e ruptura na arte brasileira a partir dos anos 50

Por Mauro Bellesa para o IEA/USP em 07/11/2019

Concretismo, Razão e Industrialização - 27/9/2019

Participantes do encontro (a partir da esq.): Glauco Arbix, Helena Nader (moderadora), Paulo Herkenhoff e Talita Trizoli

A manifestação da razão geométrica nas artes plásticas brasileiras em várias vertentes a partir dos anos 50 e as correlações e consequências disso foram debatidas no encontro Concretismo, Razão e Industrialização, no dia 27 de setembro. O evento foi o 10º encontro da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral.

Para o crítico de arte e curador Paulo Herkenhoff, titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência e um dos expositores do encontro, os conceitos ligados a abstração geométrica são variados e não podem ser misturados, e nos anos 50 deram margem aos “mais acalorados debates na arte brasileira”.

Segundo ele, são seis os principais conceitos surgidos a partir da razão geométrica que se instalou no ambiente artístico no pós-guerra: geometria sensível, arte concreta, op art, concretismo, neoconcretismo e minimalismo.

Geometria sensível

De acordo com o curador, o conceito de geometria sensível surgiu na Argentina para diferencia a arte latino-americana do rigor da arte concreta, valorizando a inclusão de símbolos locais como forma de atingir o universal.

Dentre os artistas brasileiros dessa linhagem, Herkenhoff destacou Alfredo Volpi (1896-1988), sobretudo o das pinturas com fachadas e bandeirinhas, e Rubem Valentim, afrodescendente que reduziu formas e apetrechos da arte sacra do candomblé a um conjunto de imagens geométricas.

Grande parte da exposição de Herkenhoff foi dedicada às características do neoconcretismo e do concretismo e às divergências entre os dois movimentos. De acordo com ele, o manifesto "Ruptura" (1952) de Waldemar Cordeiro (1925-1973), líder do grupo de pintores concretistas de São Paulo, reflete posicionamentos presentes no Manifesto da Arte Concreta, escrito por Theo van Doesburg, do movimento holandês De Stjl, em 1930.

“A obra deve ser concebida no espírito antes da execução, ser de tal modo racional que possa ser integralmente concebida antes de sua realização; o quadro deve ter uma técnica mecânica e procurar uma clareza abstrata”, disse Herkenhoff.

Segundo Herkenhoff, Cordeiro era leitor de Antonio Gramsci e se assumia como um intelectual orgânico que se aliaria ao operariado. “Daí a arregimentação de artistas vindos da área técnica da indústria, como Hermenegildo Fiaminghi e Luiz Sacilotto.”

"As características básicas dessa pintura são o aspecto bidimensional, o atonalismo - com cores primárias e complementares apenas -, movimento linear preciso e fatores de proximidade e semelhança. “Imagino que esses fatores  vão resultar no ‘Plano Piloto da Poesia Concreta’ dos poetas concretistas paulistas [Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari]."

Ideologias

No campo ideológico as diferenças eram marcantes entre artistas e poetas, de acordo com o curador: “Nise da Silveira e Mario Pedrosa eram trotskistas, ela freudiana e ele junguiano. Para os dois a arte seria umprocesso para a desalienação. Havia uma estirpe de cepa stalinista. Hélio Oiticica era anarquista. Haroldo de Campos tinha como referência Engels e Ferreira Goulart refletia a partir de Lukács.”

Os aspectos que diferenciam o neoconcretismo do concretismo são a rejeição a uma objetividade excessiva, a valorização do signo e a abertura ao acaso, explicou. Além disso, “no concretismo há uma adesão tóxica à forma e à op art, enquanto no neoconcretismo existe uma passagem para a psicologia e a psicanálise”.

No entanto, Herkenhoff julga faltar uma análise maior das diferenças entre o movimento concretista e o neoconcretista e entre os artistas de cada corrente.

Na opinião de Herkenhoff, apesar de o manifesto de Cordeiro falar em ruptura, “não foi o concretismo que rompeu com o passado, pois baseou-se em coisas já feitas; foi o neoconcretismo que promoveu a ruptura nas artes plásticas brasileiras”.

Em relação ao minimalismo, Herkenhoff afirmou que após a queda do Muro de Berlim não há mais interesse na pop arte. “O que interessa é a pax americana, que precisa de uma forma universal, que será o minimalismo”.

Se o neoconcretismo foi uma reação à excessiva objetividade do concretismo, o minimalismo será uma reação ao excessivo expressionismo abstrato de pintores como Jackson Pollock, disse Herkenhoff. O representante brasileiro mencionado pelo expositor foi Cildo Meirelles, “que diz fazer o mínimo minimalismo”.

Poesia concreta

Glauco Arbix ressaltou que não conhecia o suficiente de artes plásticas para discuti-las, por isso concentrou sua fala na poesia concreta, “um movimento que marcou minha geração”.

Em relação a Waldemar Cordeiro, disse que se afastou da obra dele por ser stalinista, segundo ouviu de Haroldo de Campos. “Também me afastei da poesia de Ferreira Goulart por ele ter se aproximado do PCB [Partido Comunista Brasileiro].”

Arbix disse ter uma visão oposta à Herkenhoff em relação à importância do concretismo. “Graças aos poetas concretistas, fui conhecer Ezra Pound, Dante, Arnaut Daniel, os poetas chineses. O grupo me levou a uma ressignificação do modernismo, a pensar o Brasil que estava se industrializando.”

Naquela época, em 15 anos o número de trabalhadores da cidade de São Paulo passou de 1,2 milhão para 2,4 milhões, disse Arbix. “O ritmo de surgimento de fábricas dava a ideia de se querer acabar com o artesanato, que nunca teve uma tradição forte no Brasil como na Europa.”

O Brasil vivia o início de uma transformação profunda do mundo rural para o urbano, disse Arbix. “Também vivíamos o mundo de Guerra Fria e buscava-se a perspectiva de um horizonte positivo. As expressões artísticas tratavam das coisas boas e das grandes mazelas. Hoje ‘desenvolvimentismo’ virou uma palavra maldita.”

Nesse panorama, surgiram movimentos que tentaram entrar em sintonia com a nova realidade, afirmou Arbix. “Daí a importância do diálogo e da discussão da nossa história para analisar aquele período.”

“Em 1956 ocorre o workshop do Dartmouth College, nos Estados Unidos, onde 12 pessoas deram início à reflexão sobre inteligência artificial. O trio de poetas concretistas cita a cibernética em 1958, no 'Plano Piloto da Poesia Concreta'." Viver intensamente passa a ser viver a informação de forma adequada, de acordo com o sociólogo. “A precisão da linguagem era chave desse movimento, contrário à tirania do verso e da estrofe, uma luta contra o dogmatismo."

Animosidade

Para Herkenhoff, a “animosidade bairrista” entre os grupos de Rio de Janeiro e São Paulo não foi motivada pelos cariocas, “não eram eles que questionavam os paulistas”. Ele também questionou Arbix em relação à posição Cordeiro: “Nunca ouvi falar que ele era stalinista. Ele viveu a guerra na Itália e era gramsciano”.

A época era de um ambiente de esquerda extremamente complexo, segundo Herkenhoff. Num ambiente assim, há artistas que provocam a crise, há os que a transferem para os outros por meio de um processo de pequenas estratégias e há os que vivem a crise, afirmou o curador. “O que acho espetacular em Cordeiro é que ele viveu a maior crise ética e ideológica do Brasil”.

Quanto ao perfil político de Cordeiro, Arbix disse que é perfeitamente possível alguém ser stalinista e gramsciano. Afirmou ainda que não se deve ler a política pela arte: “Pode ser até algo complementar, mas não dá muito certo”.

Artes plásticas e gênero

Além da discussão sobre a razão geométrica e sua manifestação em vários movimentos das artes plásticas, especialmente no concretismo e no neoconcretismo brasileiros, o encontro tratou de um caso específico, o de Judith Lauand, única mulher do grupo de artistas concretistas paulistas, atualmente com 97 anos.

A importância da trajetória Lauand foi apresentada pela historiadora de arte Talita Trizoli, atualmente em pesquisa de pós-doutorado do Instituto de Estudos Brasileiros (IEA) da USP.

Segundo Trizoli, Lauand superou as restrições sociais da época, conseguiu estudar artes em Araraquara e em 1952 foi para São Paulo, onde passou a estudar gravura com Lívio Abramo. “Mas foi com a participação no concretismo que ela ingressou nos registros da historiografia da arte do país”, afirmou.

O contato da artista com os concretistas deu-se quando ela foi voluntária na 2ª Bienal de São Paulo, em 1954.  O Grupo Ruptura já existia, integrado por meia dúzia de amigos homens. Ela foi convidada por Waldemar Cordeiro a participar do grupo. “O acolhimento de Lauand aconteceu por confluência de pretensões. Ela trazia um vocabulário geometrizante, expressionista e cubista quando se encontrou com o concretismo.”

Para Trizoli, a participação da artista no grupo e na primeira exposição de arte concreta é, “na visão feminista, um ponto fora da curva”. Na época, não havia parcerias, pontos de contato entre homens e mulheres, comentou. “Há grande presença de mulheres, mas sua circulação é bastante restrita e negociada. Com situações peculiares, com um acolhimento amplo e depois conflitos, comportamento misóginos e machistas.”

Com o tempo, alguns aspectos do trabalho de Lauand passaram a desagradar alguns integrantes do grupo, afirmou a pesquisadora. Um deles é a artista apresentar a necessidade de pensar não apenas numa racionalidade dura, desértica. Em entrevista a Celso Fioravanti, disse gostar muito da matemática, do rigor, mas “a arte não pode ser só intuição matemática e razão, deve haver algo mais”, relatou Trizoli.

Além disso, ela é uma “extrema colorista, utiliza as cores para estruturar as imagens, com as camadas de cor estabelecendo contrastes e as formas se organizando a partir disso”.

Como historiadora da arte feminista, Trizoli disse que sempre se incomodou como o tratamento de “Dama do Concretismo” dado a Lauand. “Mas o que é uma dama? O primeiro significado que vem à cabeça é de que seja um tratamento elogioso, que explicita um certo extrato social e poder. Uma dama, porém, não pode transcender o papel social que lhe reservam. Pode significar também cortesã, concubina ou espaços sociais nem sempre negociados com aspectos positivos.”

Trizoli também falou da linguagem feminizada usada pela crítica para falar da obra de Lauand, com termos que não aparecem em contextos pejorativos, mas são aplicados somente a ela, como previsível, sensível, delicada, geometria feminina, despojamento formal, fissuras emocionais.

Os integrantes do Grupo Ruptura não tinham penetração no mercado para suas obras e eram obrigados a trabalhar com outras atividades, como o design gráfico. A alternativa foi criar uma galeria própria, a Novas Tendências, segundo Trizoli. “Todos eram sócios, mas a única pessoa convocada a trabalhar nela como vendedora fixa e responsável pela limpeza foi Lauand. Isso incomodava muito a ela.”

Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/concretismo-e-industrializacao