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TEMPO, ESPAÇO E INFINITO NA FÍSICA, por Thomás Haddad

Por um curioso hábito, muitos cientistas acreditam em uma influência maléfica ou regressiva da obra de Aristóteles sobre o que lhes parece ser a marcha triunfal de suas disciplinas. Ainda assim, os termos em que se dão muitos dos grandes debates científicos continuam sendo aqueles postos pelo filósofo – e nada mais caracteristicamente aristotélico que os quadros em que se desenvolveu a pesquisa física e matemática acerca do infinito, seja em relação ao tempo, ao espaço, ou às magnitudes. Todo o aparato conceitual mais profundo dessa investigação se delineou em umas poucas páginas, inevitáveis e nunca superadas, do Livro IV da Física de Aristóteles. Lá, aprendemos que há dois tipos de infinito, por sua natureza: o infinito de composição e o de divisão. O primeiro é o mais popular – o infinitamente grande, obtido pelo acréscimo interminável de novas partes a um objeto inicial (finito), e erroneamente identificado – diz-nos Aristóteles – com a totalidade. O segundo é o infinitamente pequeno – o exemplo clássico é do segmento de linha que é dividido ao meio, ao que segue a divisão ao meio de uma das metades, sucedida por nova divisão de um dos quartos, dos oitavos... Um ponto alto é como Aristóteles inverte o que ainda hoje é o senso comum: infinito não é aquilo que tudo engloba, mas aquilo a que sempre sucede mais do mesmo, interminavelmente.

A Física ainda traz outra classificação binária essencial para o estudo do infinito: ele pode ser potencial ou pode existir em ato. Aristóteles é categórico: o infinito de composição, quando se refere a um aumento ilimitado de um corpo sensível, não existe em ato; isso se aplica ao próprio espaço físico, o Universo: ele é uma esfera grande, mas limitada (limitada por qual coisa?, é a pergunta imediata até hoje). O infinito só é concebível na matemática (a seqüência de números naturais, por exemplo, cresce indefinidamente pela adição da unidade) e na geometria (retas paralelas se estendem indefinidamente sem se tocar, diz Euclides), e ainda assim somente em potência: todo número é potencialmente maior que alguns outros, mas não que todos os outros. (A matemática do século XIX terá um de seus momentos sublimes na refutação desta tese, estabelecendo a atualidade do infinitamente grande – números maiores que quaisquer outros)

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Do ponto de vista estritamente físico, a questão da infinitude do tempo não tem muitas alternativas possíveis: passado e futuro, independentes entre si podem ser infinitamente extensos, podem ter um ponto de partida ou de chegada, ou podem se encontrar ciclicamente. Para Aristóteles a única opção era a infinitude nas duas direções – o Universo sempre existiu e sempre existirá, e o tempo flui uniformemente. Essa opinião causaria problemas sérios a muitos pensadores cristãos, tendo em vista a necessidade de o tempo ter origem no ato criativo de Deus (não sendo o antes uma categoria aplicável à Criação). No entanto, o lento processo de laicização da física resultaria em um leve predomínio da opção pela infinitude (real) do passado e (potencial) do futuro, ao menos entre os séculos 17 e 19.

No século 20, a astronomia, combinada com a teoria da relatividade geral de Einstein (a teoria padrão para o estudo dos problemas cosmológicos), promoveria uma curiosa virada: todas as evidências apontaram, e essa ainda é a interpretação hegemônica, para uma origem temporal precisa do Universo, sobre a qual novamente não há sentido em falar de antes: o tempo teve seu instante zero exatamente na criação do Universo, o chamado Big Bang, e, inclusive do ponto de vista matemático, as equações cosmológicas de Einstein são formalmente inaceitáveis se aplicadas a momentos pretensamente anteriores. Sobre o futuro, por muito tempo foi difícil argumentar contra a incômoda possibilidade de um processo de destruição do Universo, inverso ao Big Bang, que resultaria no fim do tempo (aqui não há o após). Observações recentes, contudo, têm favorecido a opção por um futuro potencialmente infinito. A possibilidade de um tempo rigorosamente cíclico, ainda que legítima do ponto de vista formal (é uma conseqüência possível da teoria de Einstein), não parece ter suporte na experiência. No entanto, uma descoberta perturbadora, para quem não aprecia eternos retornos, é que, se o futuro for longo o suficiente (potencialmente infinito, na verdade), e respeitadas algumas condições que não sabemos existirem de fato, qualquer estado físico de coisas se repetirá com mínimas variações.

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A discussão sobre a infinitude do espaço é mais tortuosa. Do mundo fechado e finito de Aristóteles passou-se, no século XVII, a um Universo necessariamente infinito, que voltou a poder ser finito (ainda que ilimitado) com a física de Einstein... No século 16 e início do 17 Copérnico, Tycho Brahe e Kepler ainda defendem um Universo de tamanho finito. Mas à recorrente pergunta sobre o que o limita, suas respostas são insatisfatórias. Já Galileu admite que a infinitude do espaço não pode ser refutada pelo simples argumento, então corrente, de que nossa mente é finita, e o Universo também deve sê-lo, pois do contrário não poderíamos racionalizá-lo. Mas ele prefere não tomar partido, e se ocupa de outros problemas. No entanto, o processo inexorável de geometrização do espaço físico, realizado plenamente no século 17, principalmente por Descartes e Newton, torna inevitável a opção pela infinitude. O Universo seria a geometria realizada, e essa geometria não admite limitação. O espaço absoluto newtoniano é o teatro geométrico infinito das coisas naturais.

Em nosso tempo, algumas décadas de má divulgação científica vulgarizaram a teoria do Big Bang até destituí-la de sentido. A constatação da expansão cósmica fez ressurgir antigas questões, que são absolutamente naturais, mas que adotaram a falsa aparência de paradoxos. A mais freqüente é: se tudo começou em um ponto, onde estava esse ponto? Ou, em outros termos: um volume que se expande a partir de um ponto deve fazê-lo dentro de algum espaço previamente dado. Mas, da mesma forma que ocorre com o antes no tempo, o fora não é uma categoria aplicável ao problema. O espaço foi criado no Big Bang, e continua sendo criado com a expansão do Universo; não há um lugar no qual ele se expanda, pois ele é seu próprio lugar, e ele pode ser finito sem ser limitado exteriormente.

Mas, por outro lado, a idéia mesma do ponto originário é falsa – a teoria do Big Bang não é uma vindicação da finitude do espaço, pois também é perfeitamente compatível com o infinito. Mesmo o espaço infinito pode se expandir, a partir de si mesmo: o Big Bang não ocorreu em um ponto, mas em todo lugar.

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A assombrosa trivialidade da afirmação de que a física e a matemática ainda têm, potencialmente, infinitas coisas a dizer sobre o infinito a desautoriza como conclusão aceitável de qualquer raciocínio. Para encerrar um texto, mas ainda assim mantê-lo aberto, é melhor acompanharmos Raymond Queneau, autor dos quase lendários Exercícios de estilo: “Toda frase compreende uma infinidade de palavras; não percebemos senão um número muito limitado delas, porque as outras se encontram no infinito, ou são imaginárias.” (Fondements de la littérature, 1976, corolário do teorema 7).