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ENTREVISTA com MOACIR DOS ANJOS

NUMERO entrevista MOACIR DOS ANJOS


Número: Comente um pouco a respeito de sua formação.


Toda minha formação acadêmica é como economista. Embora sempre tenha acompanhado com interesse e proximidade a produção em artes visuais, o período em que vivi em Londres, entre 1990 e 1994, para fazer o doutorado e quando pude também freqüentar muitos museus e galerias, foi decisivo para consolidar o desejo de um envolvimento maior que o de observador passivo. Entre 1995 e 1998, fiz uma pesquisa que aproximava a questão monetária de questões culturais e, em seguida, uma outra que investigava relações possíveis entre moeda e arte. Ao mesmo tempo, comecei a escrever breves textos críticos para artistas que eram também amigos. Também nessa época comecei a pesquisar e escrever sobre um tema que até hoje me é muito caro, que é o suposto antagonismo entre o local e o global, o regional e o universal e outros pares de conceitos que a produção artística de Pernambuco (principalmente a música, através do Mangue Beat) questionava de modo muito claro.  Interessa-me muito, por exemplo, observar e anotar convergências entre a obra de um artista visual e a de um escritor ou de um músico. Em 1998 foi criado o Instituto de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco, onde já atuava como pesquisador desde 1989, e fui convidado para assumir um cargo de coordenação. Por fim, em 2001, fui convidado para ser diretor do MAMAM, equipamento ligado à Prefeitura do Recife.

 

Número: Como você vê a sua atuação em “múltiplas frentes”: história da arte, teoria, crítica de arte, curadoria, administração de uma instituição cultural?

 Essa atuação se dá menos por um desejo de diversificar atividades do que por uma imposição da rarefação do meio das artes visuais no Brasil, a qual se mostra talvez mais aguda ainda no Recife, ao menos quando comparado com São Paulo ou Rio de Janeiro. As temporalidades que essas atividades demandam são muito diferentes, bem como é distinta a natureza dos problemas a serem enfrentados em cada uma delas. Por isso, atritos e desacertos têm que ser o tempo todo negociados. Mas isso expressa a condição tardia de nosso meio, em que é preciso lidar com uma complexidade cada vez maior de ações sem termos, ainda, conseguido resolver questões básicas, quer as relacionadas à formação de profissionais, quer as voltadas à estruturação de nossas instituições culturais. Não é possível hierarquizar essas frentes, e é de seu fortalecimento mútuo que vai depender  a inserção das artes visuais no campo de interesses efetivos da sociedade brasileira. Sem instituições que gozem de autonomia, as visões curatoriais não se desdobram em programas articulados de exposições, esgotando-se em discursos efêmeros e desenraizados. E sem coleções minimamente abrangentes e bem cuidadas, nossa história não cessará de ser uma narrativa da falta e da incompreensão do que foi e é feito no país. Mas é da contínua formação de uma massa crítica (historiadores, filósofos, curadores, jornalistas etc.) voltada à discussão da arte contemporânea que depende a interlocução articulada e propositiva com as instituições, sem o que se arrisca a criar apenas elegantes monumentos à obviedade.

 

Número: A questão local/global é algo sobre o que você tem escrito recentemente. Em termos mais gerais, como você definiria o regional no contexto da arte contemporânea?

 Primeiro, deve-se enfatizar que as diferenças entre a produção de um lugar e a de outros não se devem a questões ontológicas. Não cabe, num ambiente cada vez mais interconectado, a tentativa de naturalizar criações artísticas. Na produção contemporânea, o local (ou o específico, ou o regional) se impõe por meio dos modos singulares com que os artistas articulam os elementos que trazem as marcas da história e da formação de um lugar e os elementos que expõem, criticamente, a natureza contingente daqueles. O que confere distinção à produção de um lugar em relação a outro é o ponto de vista de onde são feitas essas articulações, é o contexto (histórico, político, cultural) a partir do qual essas aproximações são tecidas. O regional não é mais algo rigidamente definido, mas é o lugar de enunciação de um embate aberto com o outro, o qual pode assumir formas distintas e mudar ao longo do tempo. Nesse sentido, os limites de uma região qualquer não podem ser mais definidos como espaços de separação, mas como espaços de contato e de troca.

 

Número: Você será o curador do próximo Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP.  Que sentido pode adquirir um panorama nacional, dentro de um contexto internacional de arte contemporânea, no qual as fronteiras, pelo menos na arte, são tão flexíveis?

 O Panorama da Arte Brasileira assumiu, já há várias edições, um formato especulativo e crítico sobre a produção brasileira em curso, e essa é a sua principal relevância para o campo artístico do país. Fazer uma curadoria sobre essa produção implica negociar, mesmo que implicitamente, com as expectativas existentes sobre as fronteiras simbólicas que singularizariam a arte brasileira frente à criação de outros países. Na próxima edição do Panorama, pretendo não somente explicitar essa negociação mas tomá-la como principal questão a ser enfrentada na mostra. Sem ter a pretensão descabida de elaborar um mapeamento da produção recente feita no território nacional, a exposição buscará refletir criticamente sobre o próprio sentido que sua missão institucional adquire na contemporaneidade. Entre as questões que vão guiar o projeto curatorial, está o interesse por discutir o estatuto da expressão arte brasileira em um ambiente de acelerada internacionalização da produção simbólica. A idéia será discutir, na mostra, quais os sentidos em que é ainda possível falar de uma arte nacional em um mundo que promove, progressivamente, o desmanche de fronteiras rígidas entre expressões culturais diversas.

 

Número: Você acompanha bastante de perto o trabalho de Cildo Meireles. Que características do trabalho do artista marcam as suas escolhas como crítico?

Em um nível mais imediato, chama a atenção o seu poder de sintetizar, de forma visualmente acessível e atraente mesmo ao mais desavisado dos visitantes de uma exposição, questões conceitualmente complexas. Admiro também a estreita vinculação que promove entre ética e estética, posto que cada trabalho seu é também uma tomada de posição acerca do mundo onde vive, sem cair nunca em mero comentário engajado. Ao contrário, seus trabalhos constantemente renovam, de uma maneira não redutível a outras formas expressivas, o modo de entendimento de questões fundamentais da vida contemporânea. Além disso, sua obra não se sujeita a demarcações de tema ou estilo, frustrando qualquer tentativa de enquadrá-la no interior de limites bem definidos. Ao provocar tensões entre campos de percepção distintos e atestar o contato ruidoso entre os modos diversos de atuação no mundo, o tempo todo desautoriza a existência de fronteiras, enfatizando, ao contrário, o fluxo. Cildo trata de modo crítico a questão do espaço, quer em sua dimensão física, quer em sua dimensão política. Através de metáforas potentes que apelam a vários sentidos simultaneamente, ele consegue embaralhar essas dimensões comumente pensadas como independentes, permitindo-nos adquirir um conhecimento que não existia antes.


Número: Com relação ao papel da crítica de arte hoje, você considera ser ainda possível uma crítica capaz de emitir juízos de valor sobre os trabalhos de arte?

Não creio ser possível pensar em juízos de valor universais ou perenes. Mas creio que é papel da crítica (aqui entendida de forma ampla, incluindo curadorias, programação de instituições, premiações, etc) enunciar juízos a partir de pontos de vistas explicitamente definidos, contextualizando o que é dito e, portanto, assumindo o seu caráter contingente e parcial. É através da contraposição e do entrechoque entre esses enunciados que acordos – também eles necessariamente provisórios – sobre o valor que determinados trabalhos possuem podem emergir. Afinal, é de convenções forjadas em fóruns diversos que nos apoiamos para julgar e tomar decisões no mundo, quer em relação à produção artística, quer em qualquer outra esfera da vida. Convenções que, por sua natureza, estão sempre sujeitas a serem desafiadas, desfeitas e novamente criadas.