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ARTE VIRGEM NA DÉCADA DO CONCRETISMO, por Heloísa Espada

Arte virgem na década do Concretismo


Quando o assunto é a arte feita no Brasil durante os anos cinqüenta, pensa-se, quase que exclusivamente, nas poéticas construtivas. Mas, pelo menos nos grandes centros, o pós-guerra marcou também a entrada da chamada arte “primitiva” e “popular” nos museus. No período em que abriram o Masp (1947) e os diversos MAMs[1], parte dos críticos considerava os trabalhos de naïfs, crianças e pacientes psiquiátricos exemplares. Mário Pedrosa os chamava de arte virgem e acreditava que sua divulgação teria um efeito didático num ambiente cultural ainda preso a uma estética figurativa e de viés naturalista. Segundo ele, esse embate era fundamental para a mudança de cenário, mais ou menos como havia acontecido na Europa no fim do século XIX, quando o contato com obras “primitivas” desencadeou uma série de revisões que deram origem às vanguardas artísticas.

Um caso curioso é o do trabalhador rural, vigia e pintor (entre muitas outras atividades) José Antônio da Silva que, no final dos quarenta, tornou-se uma “celebridade” no meio artístico paulistano. Em 1946, Silva participou da exposição de inauguração da Casa de Cultura de São José do Rio Preto, evento que foi também um salão de pintura, cujo júri era composto pelos críticos Lourival Gomes Machado, Paulo Mendes de Almeida e pelo filósofo João Cruz Costa. Num depoimento dado cerca de trinta anos depois, Mendes de Almeida disse que a maioria das obras do salão “eram telas de um rançoso academicismo, (...) oleogravuras decrépitas, com flores, pássaros, aves mortas, tachos de cobre, enfim, tudo o que fazia a parafernália da pior seara dos salões de belas artes, como se não tivesse havido a semana de 22 ou mesmo sequer o impressionismo” (apud Sant’Anna: 1993). Diante dessa produção, os jurados premiaram três trabalhos de Silva: Boizinhos, Dom Pedro e José Bonifácio e Passeio de Jangada. As pinturas eram feitas sobre flanela, com gestos aparentes, cores estridentes e sem nenhuma ilusão de profundidade. Na ocasião, os críticos fizeram uma palestra em que Lourival Gomes Machado mostrou os quadros de Silva de cabeça para baixo para provar que, em arte, as questões cromáticas e formais são mais importantes que o tema, pois os trabalhos “funcionavam” em qualquer posição. A elite da cidade não deixou que o prêmio fosse dado a Silva, mas o episódio serviu de passaporte para sua entrada no circuito artístico da capital paulista. Dois anos depois, com o incentivo de Machado, ele fez uma mostra individual na Galeria Domus, a única que comercializava arte moderna em São Paulo. Na ocasião, Pietro Maria Bardi comprou as 37 telas expostas e depositou Colheita de Algodão (1948) no acervo do Masp. Um ano depois, o MAM/SP editou Romance de Minha Vida, autobiografia que Silva vinha escrevendo nos últimos dez anos. No livro, ele relata, por exemplo, a visita do crítico belga Leon Degand, o primeiro diretor do MAM/SP, a seu ateliê em São José do Rio Preto. O autor era semi-analfabeto, mas a edição, muito elegante, não apresenta erros de ortografia, pois foi inteiramente revisada. Ou seja, a uma manifestação “popular” e “autêntica” foi dada uma formatação erudita. Na I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, Silva recebeu o prêmio aquisição do Museu de Arte Moderna de Nova York.

Era a arte virgem entrando junto com a abstração e o construtivismo nas instituições. No final da década de quarenta, os desenhos, pinturas e esculturas feitos por pacientes dos psiquiatras Nise da Silveira e Osório César começaram a ser expostos em centros culturais e museus. Desde 1946, com a ajuda do artista plástico Almir Mavigner, Silveira coordenava o ateliê de artes do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Em São Paulo, Osório César foi responsável pela Escola Livre de Artes Plásticas freqüentada por internos do Hospital do Juqueri. Na imprensa, o médico, que era também crítico de arte, argumentava que os trabalhos de seus pacientes eram puras manifestações do inconsciente. O Masp expôs os trabalhos do Juqueri em 1948 e, no ano seguinte, obras do Engenho de Dentro. Após a exposição dos pacientes de Silveira, Bardi pretendeu lançar um álbum com trabalhos de Raphael Domingues, um dos expositores, como a primeira publicação do setor de artes gráficas do Instituto de Arte Contemporânea do Masp.[2] Bom lembrar que Raphael havia freqüentado aulas de desenho antes de ser internado, seus traços concisos e ao mesmo tempo ornamentais não tinham nada de rústicos. Em 1949, Pedrosa e Degand selecionaram as obras para a mostra Nove Artistas do Engenho de Dentro, no MAM/SP.

Mário Pedrosa defendeu publicamente o valor artístico dos trabalhos produzidos por pacientes de Silveira e apoiou as primeiras escolinhas de arte para crianças coordenadas por Ivan Serpa, futuro líder do Grupo Frente, a partir de 1947, no Rio de Janeiro. Para ele, não havia oposição entre a arte virgem e a arte construtiva, pois ambas revelavam os padrões estéticos universais que haviam sido identificados pela teoria da Gestalt. Pensava que os “virgens”, por não estarem condicionados às normas artísticas convencionais, estariam mais aptos a manifestar espontaneamente formas de origem inconsciente que corresponderiam a valores estéticos objetivos, tais como noções de simetria, equilíbrio e ritmo. Segundo o crítico, da mesma maneira, a arte concreta correspondia a impulsos elementares e inconscientes de organização. O fenômeno artístico era considerado como “natural” e justificado cientificamente pela Gestalt.

No Brasil, a interpretação dos fatos artísticos muitas vezes é uma leitura literal dos depoimentos e documentos produzidos pelos protagonistas dos acontecimentos. Em 1954, o Manifesto Ruptura lançado pelo grupo de artistas concretos de São Paulo condenava “o naturalismo ‘errado’ das crianças, dos loucos, dos primitivos, dos expressionistas, dos surrealistas, etc” como uma forma de expressão ultrapassada e sem lugar no mundo contemporâneo. Mas Geraldo de Barros, um dos signatários do texto, freqüentava tanto o ateliê de terapia ocupacional do Engenho de Dentro quanto o Hospital do Juqueri. Isso sugere que sua assinatura no manifesto possivelmente não correspondia a uma adesão irrestrita aos pressupostos do texto. Sua participação talvez fosse estratégica e estivesse ligada à necessidade de se unir ao grupo que, em São Paulo, marcava um posicionamento duro contra o modernismo figurativo de temática nacionalista.

Esse momento da história é identificado por muitos como decisivo na consolidação de uma arte “efetivamente” moderna, leia-se não-figurativa, no país (julgamento que contém em si uma definição de moderno, diga-se de passagem). Após 1945, a produção de naïfs, crianças e psicóticos não apenas passou a ser reconhecida como arte, mas, a seu modo, contribuiu também para o processo de difusão da idéia de autonomia formal que legitimava as poéticas construtivas. No caso de Pedrosa, a importância conferida à arte virgem sinaliza uma ampliação das referências freqüentemente citadas nas leituras sobre a arte brasileira dos cinqüenta. Sugere, por exemplo, possíveis correspondências entre a arte virgem e o conceito de art brut desenvolvido por Jean Dubuffet, na França, no mesmo período. As experiências do Grupo CoBrA podem ser outra fonte de comparação. No fim da II Grande Guerra, na Europa, as ações ligadas às poéticas informais estavam vinculadas a uma profunda descrença na técnica e no pensamento científico. Já no Brasil, para um dos principais críticos do período, a arte virgem tinha qualidades semelhantes às da arte concreta que, na época, era uma das poucas a confiar no potencial transformador da forma e do pensamento racional.

                                                                                                                                                             Heloisa Espada




ROMILDO SANT’ANNA, Romildo. 1993. Silva: quadros e livros, um artista caipira. São Paulo: Editora da Unesp.


[1] Foram fundados, na mesma época, MAM / SP (1948), MAM / RJ (1949), MAM / Florianópolis (1949), MAM / Resende (1950) e MAM / Bahia (1959).

[2] Segundo carta de Pietro Maria Bardi endereçada a Nise da Silveira, em 25 de março de 1950. Possivelmente as intenções de Bardi não saíram do papel, pois não foram encontrados indícios dessa publicação no centro de documentação do Masp.