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ARTE EM TRANSIÇÃO (LISTRADA), por Juliana Monachesi

Surgimento de inúmeros grupos de artistas que defendem a diluição da autoria e protagonizam ações que alargam o conceito de arte coloca em xeque o discurso crítico tradicional.

por Juliana Monachesi 

Um grupo de artistas, convidado por uma instituição a apresentar uma obra coletiva em um evento importante de arte contemporânea, enche de cal a sala a ele designada. No vernissage, a movimentação dos convidados levanta a poeira e, aos poucos, preenche todas as salas do museu com uma névoa branca. A cal invade o sistema de ventilação. O museu é fechado e permanece interditado durante três dias. O nome do grupo, sediado em Fortaleza, é Transição Listrada. O evento, uma megaexposição no Centro de Arte Dragão do Mar.

Caso se considere a interdição do museu como parte da obra, este trabalho simboliza o estado de espírito dos grupos de artistas da geração 2000: a crítica institucional (realizada estrategicamente a partir de dentro das próprias instituições) e o ativismo político (na forma, em geral, de uma nova forma de antiarte) seriam as principais características, a revelia deles mesmos, dos “coletivos” que desde o início deste século têm ressurgido com força no cenário da arte contemporânea e hoje contabilizam mais de 20, espalhados por todo o Brasil.

É arriscado, tanto agora como em qualquer época, rotular uma determinada produção artística. Os grupos têm atuação diversa e defendem posturas diferentes em relação ao sistema das artes, no entanto, o fato de realizarem principalmente trabalhos nas ruas ou de transgredirem de forma tática circuitos estabelecidos de arte e/ou comunicação (conseguindo espaço em jornais ou em grades de programação na TV; infiltrando-se em exposições apenas para contestar-lhes a pertinência) possibilita que se arrisque o agrupamento de todos eles sob uma mesma bandeira, seja ela a do a(r)tivismo, do neo-situacionismo, da estética do precário ou do neoconceitualismo.

Quando os artistas do grupo Laranjas, de Porto Alegre, somam o peso corpóreo de seus integrantes, compram o equivalente a isso em laranjas e postam-se em uma esquina da cidade oferecendo refrescos aos passantes; quando artistas do GRUPO, de Belo Horizonte, deambulam pelas ruas de São Paulo desenhando nas calçadas setas vermelhas para indicar o crescimento de pequenos matos e plantinhas; quando um representante do grupo Entorno, de Brasília, monta na entrada lateral da Casa das Rosas uma barraca de lona preta como as utilizadas por moradores de rua de sua cidade, fazendo referência aos “kits de campanha” de Joaquim Roriz, por diferentes que sejam os trabalhos, observa-se um tom comum.

Os exemplos poderiam encher este jornal de ponta a ponta, tamanha a efervescência deste “movimento”. Mais importante é perscrutar o tipo de abordagem de que o discurso crítico pode se valer para dar conta de uma produção que apenas em último caso formaliza-se como “obra de arte”, o objeto por excelência da crítica de arte. Uma saída interessante nos vem de uma curadora carioca, Marisa Flórido, que localiza assim a trama de relações em que esse tipo de produção se inscreve: “uma trama de afetos, sistemas e fenômenos exteriores ao universo soberano e autônomo da arte moderna. Tomando de assalto o que permanecera às margens de seu universo auto-referente, [estas obras] invadem-se pelas alteridades, deslocam-se para os espaços do mundo, realizam-se na circunstância e nos encontros fortuitos”¹.


1. em texto para a exposição “Sobre(a)ssaltos”, integrante do programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais 2001/2003.