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COSMOSCOCA 30 ANOS DEPOIS, por Cauê Alves

COSMOCOCA 30 ANOS DEPOIS



“quero esclarecer que não vou expor em galeria alguma em são paulo, como vem sido noticiado em jornais do rio-s.paulo, segundo soube; em primeiro lugar: não sei desde quando ‘exponho em galerias’; as experiências que fiz foram bem limitadas, quanto a exposições e promoções: uma no rio, em 66 (G4); experiências no mam e na rua (apocalipopótese em 68, tropicália em abril 67); internacionais: uma retrospectiva na whitechapel em Londres (69), que foi uma experiência ambiental (sensorial) limite; e em 70, praticamente 1/3 da exposição information no museu de arte moderna de new york, dedicado a mim (ninhos); essas duas promoções internacionais foram experiências extraordinárias, bem diferente do caráter assumido por exposições (venda de obras, chauvinismo promocional, etc.); foram experiências limite, vividas como tal”.

                                                           Programa Hélio Oiticica, doc. nº 0239/70

 

Essas palavras foram escritas nos anos 70 por Hélio Oiticica e enviadas, de Nova Iorque, para que o poeta Torquato Neto as fizesse publicar na coluna Geléia Geral do Jornal Última Hora do Rio de Janeiro. Trinta anos após a primeira Cosmococa, CC1, co-produzida com Neville D’Almeida, em 13 de março de 1973, luxuosas impressões das imagens de Oiticica estão à venda na exposição Momentos – Frames, Cosmococa, na Galeria Fortes Vilaça [em abril-maio de 2003], em São Paulo. A exposição não traz a projeção dos slides constituinte do projeto COSMOCOCA programa in progress, que devido ao efeito de movimento, foi também denominado de quasi-cinema por Oiticica.

        As Cosmococas reproduzidas em pôsteres possuem uma autonomia limitada, pois parecem ser dependentes da referência aos ambientes criados para sua projeção. O que causa estranheza na edição impressa são algumas intervenções – em nome da restauração – que deram novo brilho às cores e apagaram todas as marcas do tempo. Mas o problema maior é a inclusão desses trabalhos num circuito comercial de galerias ao qual Oiticica, em vida, sempre mostrou aversão. Mas nesses trinta anos desde a invenção das Cosmococas muita coisa mudou...

COSMOCOCA programa in progress possui nove CCs, cinco realizadas com Neville D’Almeida, compostas de projeções de seqüências de slides num ambiente. O trabalho pode ser montado graças às minuciosas instruções deixadas por Oiticica que, com disciplina e extrema organização, produziu centenas de textos e notas ao longo de sua vida. Foi também a partir de seus escritos que se justificou a tiragem apresentada na Galeria. Em vida, Oiticica não as ampliou, mas cogitou a realização de pôster “em print positivo” conforme nota do NTBK 2/73 pp. 54-55.

Esses pôsteres das Cosmococas estão longe de serem a produção mais interessante de Oiticica. Reduzidos a pranchas bidimensionais, neles não há a preocupação com o ambiental, presente nos seus mais significativos trabalhos. No texto Posição e Programa, 1966, Oiticica desenvolveu a noção de ambiental. Trata-se, em linhas bem gerais, de uma refundação da arte que acaba com “as antigas modalidades da expressão: pintura-quadro, escultura” em prol de uma totalidade. Elementos como cor, luz, palavra, ação, dança, fotografia, estrutura, tempo, espaço, música e construção tornam-se indivisíveis. O ambiental é a proclamação da liberdade de meios e da participação do espectador. É também uma ruptura com “próprio conceito de ‘exposição’.” Por isso, Oiticica passa a se referir às suas mostras e trabalhos como “experiências” e “manifestações ambientais”.

Em compensação, a Pinacoteca do Estado de São Paulo reúne pela primeira vez quatro das nove Cosmococas de Oiticica, sendo a CC2 inédita. A noção de ambiental não está ausente do projeto montado na Pinacoteca. Os ambientes, com slides projetados nas paredes, ruídos e músicas, trazem proposições para um lazer criativo em salas com colchões, redes e balões de ar. São também espaços para a dança e comportamentos inusitados como lixar as unhas durante a projeção.

As CCs surgiram como um projeto de filme não narrativo e experimental, com referências ao dito Cinema Marginal e a Godard, que “questiona metalingüisticamente a própria razão de ser do fazer cinema”. Reflexo de uma polêmica da época, a oposição entre o Cinema Marginal e o Cinema Novo,  menos estética que ideológica, redunda no estabelecimento de categorias limitadas que desprezam as particularidades dos filmes. Mas as CCs sem dúvida estão mais ligadas ao Cinema Marginal. Oiticica faz questão de marcar sua oposição em relação à seriedade e à espetacularização que o Cinema Novo parecia cada vez mais privilegiar. Entretanto, filmes como Câncer, de Glauber Rocha, filmado em 1968 com a participação de Oiticica e montado apenas em 72, mostram que as divergências entre Cinema Novo e Cinema Marginal não são tão claras como poderiam parecer. O que ocorre é que o dito Cinema Marginal radicalizou e levou às últimas conseqüências algumas propostas presentes em Estética da Fome, manifesto redigido em 1965 por Glauber Rocha, enquanto cineastas ligados ao Cinema Novo, em fim dos anos 60, sem abandonar o engajamento, se aproximaram de padrões convencionais que agradavam ao grande público. Combatendo a passividade e suscitando a participação desde 1960, com os Núcleos, Oiticica buscou nas CCs romper com o que chamou de “hipnotizante submissão do espectador frente a tela”. Nesse contexto, é sintomático que a precariedade de um filme realizado em slide, também devido a carência de recursos e a falta de uma indústria cinematográfica brasileira, puderam, somadas ao improviso, ser constituintes de um trabalho altamente experimental. Em cenas esteticamente fortes, as Cosmococas são formadas de fragmentos congelados, ”momentos-frames”, que rompem com o tempo convencional do filme. Assim, a edição, feita enquanto são tiradas as fotos, e os intervalos entre os slides constroem o tempo das CCs. A montagem valoriza a trilha sonora que, com a quebra do desenvolvimento linear do filme, parece casual, como se pudesse ter sua ordem alterada.

        A base das imagens fotografadas para o projeto das CCs foram recolhidas de jornais, capas de disco ou livro e redesenhados com carreiras de cocaína. A droga possui um sentido transgressor e libertador, como um estímulo para a participação coletiva e a expansão da consciência e, simultaneamente, é tratada como pigmento e linha. Os desenhos foram realizados sobre retratos como o do cineasta ligado aos surrealistas, Luis Buñuel e o do ídolo da contra-cultura Jimi Hendrix. A artista admirada por Oiticica, Yoko Ono, cujo livro Grapefruit aparece ao lado de uma tradução para o inglês de Que Significa Pensar do filósofo alemão Martin Heidegger, também faz parte da série de apropriações de Oiticica. Estampada na capa do livro de Norman Mailer, Marilyn Monroe, ícone da cultura pop consumida pela sua própria imagem, remete ao trabalho de Andy Warhol.

A apresentação de COSMOCOCA programa in progress na Pinacoteca do Estado [abril-junho de 2003], mesmo tendo Oiticica uma posição anti-institucional, não é problemática como a mostra comercial da galeria. Após a morte do artista, sua obra pode ser considerada como patrimônio artístico público; e ao museu, entre outras tarefas, cabe exibir o trabalho, colaborando, segundo uma necessidade cultural e social, para a formação da história da arte. A obra de Oiticica, respeitada em sua integridade, é muito bem vinda em nossas ainda precárias instituições culturais públicas.

 

                                                                                                                                                                                    Cauê Alves