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ANA TAVARES E O ESPECTADOR COMO ARTISTA, por Juliana Monachesi

Trabalhos de Ana Tavares questionam passividade do público e "chamam para o jogo"


Na produção teórica sobre arte interativa e/ou participativa, já se considera o artista como um "estilista da experiência". Recentes exposições internacionais que abordaram o assunto especificamente alargam a discussão, deixando para trás uma leitura conservadora que considera qualquer obra participativa pós-ocaso das utopias como um item para consumo de massa. Estudos consistentes segmentam a participação segundo estratégias de "arte coletiva", "novo estilo de arte pública", "arte como serviço" e "arte como ação social", apontando em todas elas uma ambição de borrar as fronteiras entre arte e realidade ao integrar de alguma forma a presença humana na obra.

Ana Maria Tavares participou este ano de três destas exposições: "Living Inside the Grid", no New Museum of Contemporary Art, em Nova York (de fevereiro a junho); "The Straight or Crooked Way", no Royal College of Arts, em Londres (de março a abril); e "At Your Own Risk", no Schirn Kunsthalle Frankfurt (de junho a setembro). A exemplo de outros consagrados artistas brasileiros, de quem o circuito de artes no exterior testemunha melhor os desdobramentos da trajetória do que as instituições nacionais, a artista pôde desenvolver sua pesquisa nestas mostras, requintando suas "armadilhas estéticas".


A análise da produção de Ana Tavares costuma seguir o percurso relação entre espaço, obra e espectador - tensão entre escultura e design como armadilha para os sentidos - deslocamento de "não-lugares" - participação e diluição na obra. Cumpre agora propor um percurso que parta já destas obras que pressupõem uma decisão do espectador-participador. É com Visiones Sedantes, projeto desenvolvido para a Bienal de Havana de 2000, que a artista emancipa a obra de uma vez por todas do terreno estéril das artes plásticas.


Diante do desafio de ocupar uma galeria da Biblioteca Nacional de Havana, forrada de lajotas de cerâmica branca e com uma fachada de vidro com vista para uma praça conhecida pelo comércio turístico de livros antigos em bancas improvisadas, a artista instalou uma sala vip de aeroporto, com música ambiente e ar condicionado, vedada com insulfilm no qual estavam impressas palavras escapistas, do universo do anestesiamento. "O lugar era uma contradição, o que fez com que o trabalho ganhasse um caráter político: ele foi instalado em uma região de Havana onde estavam fazendo muitas lojas de grife e funcionava como um espião a vigiar essa situação perversa do turismo predatório."


Espelhos retrovisores miravam a venda de livros para turistas enquanto a biblioteca estava vazia. "O fora se transformava em cinema, em uma miragem." As palavras impressas na fachada foram colecionadas desde "Porto Pampulha", exposição individual de 1997 na qual a artista transfigurou o Museu da Pampulha. Abordando os estados de suspensão do espectador (em relação à paisagem, à arte e ao contexto do projeto modernista em que o ex-cassino foi construído), Ana Tavares antecipava ali sua gramática "Relax’o’visions" (título da exposição seguinte, no MuBE, em 1998, na qual a relação com Niemeyer era transposta para a arquitetura de Paulo Mendes da Rocha).


Relax’o’visions são as válvulas de escape que as pessoas precisam na situação contemporânea; são momentos de suspensão, de alívio. Trata-se do instante do sujeito com ele mesmo para se libertar por meio de algum artifício. O site specific deslocado no MuBE vem como uma pergunta e a obra não fornece resposta. É nesse trabalho que eu começo a nomear essas condições de suspensão", explica. Enredada na reflexão sobre o público da arte, Ana Tavares volta-se para um resgate da experiência do encontro consigo mesmo e da capacidade de transtornar.


Também em 2000, a artista realiza o trabalho Estação II no Centro Universitário Maria Antonia, como parte da defesa de tese de doutorado pela USP. A experiência de passagem que permeia muitas de suas obras (fundamentadas na discussão de Marc Augé sobre não-lugares) é explorada aqui como tensão entre espaço real e virtual. Um vídeo-simulação, construído com ferramentas de computação gráfica, propõe um percurso pela praça Panamericana como se esta tivesse passagens subterrâneas que desembocassem em uma arena gramada com um labirinto de corrimãos (projeto concebido pela artista para a exposição "Arte e Espaço Urbano: Quinze Propostas", 1996, de Aracy Amaral).


Em 2001, as visões sedantes conhecem seu primeiro desdobramento, em Cityscape, apresentado na mostra "Bienal 50 Anos": uma instalação-poema visual na qual a artista retoma a coleção de escapismos e reveste com elas uma parede de inox colorido, na qual as palavras aparecem e desaparecem. "Trata-se de um jogo de consciência e inconsciência, daquilo que você sabe mas não quer fazer." Diante da parede, que espelhava a paisagem do parque do Ibirapuera, vários banquinhos, formando um mirante. Um som ambiente que partia de trás deste muro das lamentações transmitia barulhos da cidade misturados às palavras sendo repetidas: "lexotan", "credit card", "sexo", "sunset", "sunrise", "sparkling water", "relax’o’visions".


Em 2002, Visiones Sedantes 2 é montada na galeria da Fiesp, como parte da exposição "Estratégias para Deslumbrar", fazendo da fachada de vidro a quarta parede de uma sala que foi construída para o trabalho. Novamente, um lounge de aeroporto, com música ambiente e ar condicionado, leva o espectador à experiência de suspensão: a avenida Paulista transforma-se na miragem diante de um corpo que, sedado, rende-se ao cansaço e se senta, absorve o tempo morto da espera, fantasia com a música easy listening diante de um piano sem pianista. "O corpo não resiste: ele vai e se encosta. É uma distração resultante de se fazer isso por hábito." Não se trata de uma crítica à alienação do corpo, Ana Tavares afirma que o sujeito a quem se dirige seu trabalho é um especialista em usar o espaço urbano. O que ela busca na obra é explicitar as senhas que permeiam essa utilização hiper-especializada.


Também em 2002, a artista desenvolve o projeto Numinosum para a galeria Brito Cimino, inspirado inicialmente na especulação imobiliária (configurada na explosão não planejada da Vila Olímpia) e nas infindáveis especulações a que o sujeito contemporâneo está submetido. Como a especulação financeira não poderia faltar, a artista foi visitar a Bolsa de Mercados e Futuros. "Eu entrei lá e parecia uma obra feita por mim, com amparos para o corpo e as pessoas negociando o futuro. O trabalho fala do quanto nós somos dependentes dessa estrutura capitalista e cooptados por isso; fala das pressões da vida contemporânea, e das senhas que nós criamos para nos sedar."


Estes trabalhos reverberam conceitos sobre participação desenvolvidos pela curadora e crítica de arte Martina Weinhart, que assina um dos textos no catálogo de "At Your Own Risk": "Ativar o espectador tornou-se uma preocupação central da produção contemporânea. (...) A relação antes linear entre artista e obra tornou-se um campo de inumeráveis referências. O significado nasce como ocorrência inter-subjetiva que destrói a hierarquia artista-receptor. O espectador não mais pode ser considerado um consumidor da obra, mas, como o artista, uma parte dela. (...) A obra compele o espectador a uma postura performática."


É a partir desta colaboração entre artista e espectador que a produção de Ana Tavares se configura desde o início deste século e é da ampliação deste campo de debate que a crítica de arte depende para abarcar o que há de relevante na arte contemporânea.

                                                                                                                                                                                                                                    Juliana Monachesi