Você está aqui: Página Inicial / Rede / Revista Número / numero Dois / DIRETO DE VENEZA: a tortuosa retórica de Francesco Bonami, por Regina Teixeira de Barros

DIRETO DE VENEZA: a tortuosa retórica de Francesco Bonami, por Regina Teixeira de Barros

O subtítulo da Bienal de Veneza, A Ditadura do Espectador, revela-se uma frase de efeito cujo sentido não reflete as atuais escolhas dos artistas nem o papel reservado ao público pelo curador Francesco Bonami, cuja intenção declarada é investir nas múltiplas possibilidades da experiência pessoal

por Regina Teixeira de Barros

A sensação que se tem ao percorrer as exposições da 50a Bienal de Veneza é de que a grande maioria das obras apresentadas é resultado da interface da arte com vivências extra-artísticas. Longe do purismo moderno da arte pela arte, hoje a maioria dos artistas parece fazer questão de se posicionar frente a conflitos sobretudo éticos e políticos.

O trabalho do veterano Michelangelo Pistoletto é um exemplo significativo: Love difference: Artistic Movement for an InterMediterranean Politic é um ponto de encontro aberto a todos os interessados em trocar idéias e informações sobre diferentes expressões culturais, étnicas, artísticas, sociais e políticas que reflitam a tensão vivenciada pelo mundo atual. O símbolo de Love Difference é o mapa do Mar Mediterrâneo, reproduzido tanto na bandeira do movimento quanto na forma da mesa espelhada, instalada no módulo Estação Utopia. As cadeiras à volta, diferentes entre si, são provenientes dos países banhados pelo Mediterrâneo. Yoko Ono também contribui na Estação Utopia: uma sala revestida de mapas mundi, com uma pequena mesa ao centro, sobre a qual encontramos carimbos e almofadas de tinta colorida. O visitante é convidado a carimbar qualquer região do planeta com os dizeres “Imagine Peace”.

Imagine a paz, por exemplo, nas favelas cariocas: na seção dedicada à mostra no catálogo geral da Bienal, Estrutura da Sobrevivência, Cildo Meireles realiza a intervenção Ética como Estética / Estética como Ética. Trata-se de uma série de fotografias, p&b, de uma chacina ocorrida no Rio de Janeiro no verão de 1996. A primeira imagem reproduz a capa do jornal A Notícia, onde se lê em letras vermelhas garrafais o ambíguo título Exposição Macabra. Seguem mais oito imagens dos cadáveres de cinco traficantes fuzilados, equilibrados em manilhas abandonadas no meio da rua, que ficaram expostos durante horas antes de serem recolhidos.

No estreito corredor de entrada da exposição Zona de Urgência o visitante depara com a videoinstalação Let’s Puff, da chinesa Yang Zhenzhong. Na parede da esquerda, a projeção uma jovem oriental tomando fôlego e assoprando; do lado oposto, a projeção de uma multidão caminhando apressadamente na avenida de uma metrópole. Quando a jovem assopra, a multidão se “afasta” em câmara rápida. O medo da Sars não é apenas um comentário, mas um fato: o envio oficial da China foi cancelado dias antes da abertura da Bienal.

A ultrapassada divisão de representações nacionais em pavilhões implantados nos Giardini da Bienal se prestou, ao menos desta vez, a eloqüentes manifestações. No caso da Palestina, a falta de um pavilhão serviu como metáfora para os artistas Sandi Hilal e Alessandro Petti, que espalharam pelos jardins dez passaportes gigantes de palestinos e batizaram o projeto de Stateless Nation.

Doses mais elevadas de senso de humor foram empregadas para nos fazer lembrar da não menos trágica situação do Iraque: algumas pessoas circulavam por Veneza usando uma camiseta amarelo-ouro com a inscrição “I am the Iraq Pavillion”.

Estes são apenas alguns dos trabalhos representativos da 50a Bienal, que questionam o lugar e o papel da arte no mundo globalizado, onde a discriminação e a exclusão evidenciam uma insolúvel contradição. Neste contexto, um detalhe chama atenção: entre tantas e tão intensas manifestações a favor da tolerância e do respeito às diferenças, é curioso que o subtítulo do tema geral da Bienal seja A Ditadura do Espectador. Vale lembrar que Francesco Bonami decretou o fim da era do curador onipotente, absolutista, alegando que as grandes mostras não podem mais ser fruto da experiência de um único olhar. Além disso, procurou individualizar o espectador, convidando-o a percorrer as mostras e construir, a partir da sua experiência pessoal, uma leitura das possibilidades de transformação do mundo por meio da arte. Diante desta postura curatorial – e dos trabalhos apresentados – , que sentido faz tal subtítulo? A Ditadura do Espectador foi uma escolha que, fruto de uma retórica infeliz, vem na contra-mão de tudo o que se vê na Bienal.