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ENTREVISTA com Luiz Renato Martins


Número: Em debate recente sobre o Panorama da Arte Brasileira do MAM, promovido pela revista eletrônica Trópico, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, você fez uma intervenção a partir da fala do José Resende em que ele se referia ao curador como o grande agente da mobilidade da arte pelo mundo versus a permanência. Você dizia sobre como a financeirização do capital e a globalização aceleraram esse processo de circulação da mercadoria e sobre como a arte acompanha os fluxos internacionais destas transações. Até que ponto a arte atual é refém da circulação do capital e o trabalho do artista, mais uma mercadoria nesse sistema?

LRM: Não acho que tenha mais pertinência ou precisão falar em arte. Este é um termo que foi constituído historicamente entre o século 15 e meados do século 19. Depois, o alcance do termo, tal como foi formulado – dentro desse paradigma da arte como uma atividade desinteressada e como uma experiência ontologicamente diferente das outras experiências do trabalho –, não tem mais vigência. Ou seja, a arte moderna já se faz contra esse paradigma e não é mais a partir dele que se pode entender a arte moderna, quanto mais na situação de hoje, que já é uma ultrapassagem do fato próprio da arte moderna.

N: Então a arte não tem uma especificidade própria, nem como experiência? Que termo deve-se usar para designar os objetos de arte, depois do período moderno?

LRM: Hoje em dia o termo abriga atividades tão díspares, que só de uma maneira imprecisa você pode ainda falar em arte. Se você se refere aos exemplos que acontecem no contexto das bienais e dessas grandes mostras, a diversidade é muito grande. Eu acho que não tem mais cabimento a gente falar em arte quando se pensa em arte por oposição a trabalho, por oposição a comércio ou conceito. Eu acho que não existe mais espaço social em disponibilidade para alguma coisa que seja ontológica e intrinsecamente diferente da mercadoria. É claro que há uma porção de gente que está pensando e está trabalhando, mas isso não hoje tem a força de um paradigma, são como náufragos sobreviventes.

N: Essa recente constatação de que muitos artistas jovens estão se juntando em coletivos e grupos pode ser o início de uma organização de resistência?

LRM: Eu espero que sim. Não vou dizer que não, mas estou bastante pessimista. Não vou dizer nada antes de a coisa acontecer, mas acho muito melhores as articulações coletivas e de grupo, que tentem jogar para além dos limites do mercado das galerias, do panorama que tínhamos há seis anos, aquele do jovem artista tentando conseguir sua galeria e seu espaço no mercado. A noção de autoria individual foi engolida pela industria cultural. Não acho que exista alguma possibilidade de um trabalho individual no campo do pensamento. Essa idéia de que existem autorias individuais, desde sempre, é uma mitificação, é algo que interessou ao capitalismo e à burguesia promover. No campo do pensamento, no campo da arte ou da política, isso sempre foi coletivo. As pessoas produzem em determinados contextos, com determinados diálogos. Interessa para a burguesia dizer que o trabalho está concentrado e resumido ali no objeto físico que se apresenta diante dos olhos. Eu acho que se há alguma coisa que caracteriza a arte moderna é que ela foi formada por processos de trabalho. O que aparece ali na frente e que pode valer milhões de dólares é um mero resultado, vestígio ou documento.

N: Então, como é possível pensar nessa pretensão de autonomia da arte moderna, ligado a um sujeito livre e um olhar desinteressado, se ela é apenas um vestígio e está, se não determinada, ao menos envolvida na constituição de um processo histórico. Que autonomia é essa?

LRM: Acho que, aí, há muita confusão e contra-senso. Porque, de fato, esse sonho de autonomia foi forjado no século 15, 16, por oposição ao trabalho. Isso é uma idéia que vem do neo-platonismo, a do desinteresse em oposição à mercadoria. Há uma determinada proximidade disso, do ponto de vista do trabalho das idéias, no final do século 18, quando Kant fala de autonomia e desinteresse ao mesmo tempo. A idéia de autonomia no Iluminismo é, na verdade, de autonomia política, de você poder julgar a partir de sua própria consciência, sem nenhuma tutela de um poder exterior. A consciência é fundada na liberdade de emitir o seu juízo. Agora, essa idéia de autonomia política, em meados do século 19, passou por um processo de positivação geral da sociedade e adquiriu uma feição positivista que quer dizer que a autonomia da arte é a arte de ser absolutamente específica e diferente das outras coisas. Falou-se muito, no campo do formalismo, em autonomia da obra de arte nesses termos. Autonomia da obra de arte quer dizer que a obra que não tem nada a ver com o trabalho.

N: As leis que regem a obra de arte são diferentes das leis de produção, nesse sentido.

LRM: Houve esse discurso, esse ideário de muitos historiadores da arte falando isso, mas se você acompanha em detalhe o trabalho dos próprios artistas, eu acho que maior parte deles, ou o veio mais consistente, procura reformular a noção de obra de arte encostando-a na idéia de trabalho. Portanto, não estão lidando com essa noção de autonomia no sentido de ela ser desinteressada. Alguma coisa que caracteriza o corte do que eu chamaria de época moderna, em relação ao antigo regime, é que ela está fundada na liberdade. O que quer dizer isso? Liberdade é o artista ser capaz de escolher os seus materiais, os seus procedimentos, os seus temas, independente de qualquer academia, de qualquer poder da igreja ou independente do poder real. Os artistas produziam fundados na liberdade e, depois, isso vinha para o mercado. Uma coisa que é diferente nos dias de hoje é que a chamada arte não é mais fundada na liberdade, mas no mercado. Ela é produzida a partir do mercado. Aquela esperança de que um trabalho, por ser produzido num outro campo que não o do museu, tivesse uma determinada eficácia crítica não tem mais cabimento. Todos os espaços estão administrados. A rua também faz parte do mesmo espaço que o museu faz, que é o espaço do mercado. Tudo é mercado hoje em dia. Eu acho que a situação é extremamente difícil e as pessoas têm que ficar tentando. Em algum momento, a somatória das quantidades que se pretendem dissonantes pode dar em alguma coisa diferente. O problema é que a situação está criada de uma tal maneira que em todos os campos não existe mais reflexão e a arte era fundamentalmente reflexiva desde de que ela estava fundada na liberdade. Desapareceu a capacidade de totalização. As pessoas fazem performances empíricas e pontuais.

N: Por que as artes ditas visuais têm um alcance social tão pequeno, quando tudo parece ser um produto imagético na nossa sociedade e a imagem, um produto tão valorizado?

LRM: Eu nunca vi tanto espaço na mídia para a chamada produção artística nem tanta gente indo a museu. Se você pega essas mega-exposições na Oca... O espaço das artes visuais, hoje, não tem nada a ver com o que era o espaço das artes visuais 30 anos atrás. Fundamentalmente eu não vejo mais diferença com o espaço do cinema ou da MPB. Talvez aqui a coisa seja ainda mais desorganizada ou mais insipiente, mas, em Paris ou nos Estados Unidos, as filas para essas grandes mostras são um negócio absolutamente brutal. Essa dificuldade de diálogo com a arte é uma coisa residual e provinciana que vai rapidamente ser superada. A atitude de fetichização é muito maior que a de resistência. Ninguém mais resiste. Você pode mostrar qualquer coisa, que também não se cria problema.

N: Qual o papel da crítica de arte hoje em dia? Por onde começar?

LRM: Eu não vejo que exista crítica de arte hoje em dia. Isso é um espaço que desapareceu, não tem mais espaço social para isso. O que você tem naquele espaço em que antigamente se exercia a crítica, que são as páginas dos jornais, você tem press release, é uma cultura de release. Uma outra coisa que envolvia tensão, que era fazer catálogos com reflexão histórica, com a necessidade de explicar alguma coisa problemática contra a qual havia resistência, envolvia também a necessidade de um debate. Hoje em dia não tem mais resistência a nada, tudo é possível no campo simbólico. A permissividade é total. A grade do texto serve para marcar a individualidade do rapaz ou da moça em meio uma multidão de outros. São protocolos de venda de produtos. Agora, embora o espaço institucional seja pífio, há todo um trabalho para ser feito. Em alguns lugares, há espaço institucional para isso, espaço para rever toda a história da arte moderna, porque ela foi totalmente barateada e fetichizada pela leitura formalista. E os trabalhos, as polêmicas, os debates, as pesquisas, estão no escuro total, prontos para serem descobertos.

N: E sobre a arte contemporânea, não há possibilidade de refletir?

LRM: Sim, refletir é muito importante, e combater. Refletir e combater. Agora, a pessoa que vai fazer uma performance na calçada e acha que essa performance é mais importante do que a performance que o outro está fazendo dentro do museu, isso é só falta de reflexão. É preciso pensar, não atuar em termos individuais e ter consciência de combate. Nós estamos numa ocupação. Não existe mais espaço para a humanidade no mundo. Está todo mundo tragado pelo mercado, que dita as regras ou as instituições, e as pessoas embarcam nessa. A urgência da experiência local, do que cada um sofre e vive, é fundamental para todo mundo retomar a sua própria vida. Coletivamente, todo mundo tem a possibilidade de resistir. Um evento, uma obra ou uma ação isolada não resiste.

N: Já que tudo é mercadoria, de onde vem o interesse e o potencial reflexivo?

LRM: Nem tudo se reduz a isso. Existe vida aí! Não só nos filmes ou nas obras, mas nos movimentos pelo mundo. O que eu estou falando é do desaparecimento de um paradigma, que era o da arte moderna. Hoje em dia você não tem um paradigma. As coisas acontecem, mas elas estão débeis diante do estado geral das coisas. No momento da arte moderna, você tem uma espécie de otimismo de que aquele negócio vai produzir resultados e de que você está num avanço. Aquilo é uma vanguarda de um outro movimento, de um movimento de transformação da humanidade inteira. O que lembra a frase do Mário Pedrosa, “exercício experimental da liberdade”. Porque se pensa que a liberdade vai ali, naquele processo histórico, ser dali a pouco exercida por todo mundo. Mas hoje em dia a situação é de pessimismo. A gente está perdendo de uns 3 a 0  ou de 4 a 1... É preciso reconhecer que entre “socialismo ou barbárie”, deu barbárie. É trágico. Estamos afundados nisso. Mas algo já está mudando, porque mais e mais pessoas vêm percebendo isso...