Você está aqui: Página Inicial / Rede / Revista Número / numero Seis / ENTREVISTA com VLADIMIR SAFATLE, por Juliano Gentile e Thais Rivitti

ENTREVISTA com VLADIMIR SAFATLE, por Juliano Gentile e Thais Rivitti

O ENVELHECIMENTO DO MODERNO - entrevista com VLADIMIR SAFATLE

por Juliano Gentile e Thais Rivitti


Vladimir Safatle é professor do Departamento de Filosofia da USP. Com forte atuação no debate público, tanto na imprensa quanto no meio universitário, busca pensar a interface entre filosofia e temas das ciências humanas, como a crítica à cultura de Adorno e a psicanálise lacaniana. Em sua opinião, esse modo de abordagem tem uma longa tradição no Brasil. Ele lembra o debate pioneiro de Bento Prado Júnior sobre as articulações entre psicanálise e filosofia, o estudo sobre ideologia francesa de Paulo Arantes e alguns escritos de Ruy Fausto (todos professores com passagem pelo departamento de Filosofia da USP). Em entrevista a Seis, ele fala sobre artes visuais, música e o esgotamento da crítica modernista e afirma que a reflexão estética pode contribuir para pensar os principais impasses da contemporaneidade.

  

Numero: Em que medida é possível pensar a produção estética na mídia?

V.Safatle: Esta questão é mais complicada do que aparenta. Gostaria de abordar apenas um aspecto dela que diz respeito à produção estética através da mídia. Trata-se de um problema bem exemplificado na dinâmica destas tendências das artes plásticas, nos últimos 30 anos, que utilizam materiais que vêm da comunicação de massa, dos domínios mais fetichizados da cultura, como publicidade, moda, pornografia e estereótipos de cinema. Poderia lembrar aqui de uma série de trabalhos de artistas como Cindy Sherman (1954), Jeff Koons (1955), Andreas Gursky (1955). Cada um a sua maneira, coloca o problema nos seguintes termos: a comunicação de massas e seus produtos derivados compõem um processo de mediação universal, pois ela é sistema hegemônico de socialização dos sujeitos. Isto vale principalmente a partir da geração dos que hoje têm trinta anos. A família e outras esferas de interação acabaram, em larga medida, se articulando com a comunicação de massa, já que a mera contraposição é hoje praticamente impossível. Tal posição da comunicação de massa como mediador universal traz uma série de conseqüência para a reflexão sobre a produção estética. Pois o fato central para o estabelecimento de um programa estético que ainda tenha uma expectativa crítica é pensar como é possível, a partir da posição da centralidade desta mediação, operar modos de crítica do fetichismo. De uma certa forma, poderia dizer que se trata do inverso de uma certa tendência no modernismo clássico, que acreditava que você podia tomar distância, livrar-se de todo material fetichizado. Como se a modernidade das obras fosse função da modernidade de seus materiais

 

N: Nesse sentido, ainda é possível exercer a crítica tal como foi pensada no modernismo?

VS: Sobre esta questão, podemos partir de Walter Benjamin, quando diz que crítica é uma questão de tomar a distância correta. Esse distanciamento significa, entre outras coisas, que a forma estética não será mais uma entificação da aparência de totalidade funcional, mas tentará ser a narrativa do desvelamento do seu próprio modo de produção. Uma crítica da aparência no interior da própria obra. Algumas peças clássicas da fase dodecafônica[1] estrita de Schoenberg (1874-1951) são bons exemplos deste protocolo de crítica como distância correta. Pois se trata aqui de transformar a estrutura de produção da obra em motivo central para a audição. De uma certa forma, o verdadeiro tema da obra é a posição de sua estrutura serial.


N: Então é como se a própria obra já cumprisse a função crítica?

VS: Exatamente. A função crítica é cumprida pela forma da obra. Eu diria que este protocolo de crítica foi "hegemônico" no século 20 pelo menos até o minimalismo, embora exista uma outra história da crítica da forma estética muitas vezes menosprezada. De qualquer maneira, por mais que estejamos em registros totalmente distintos, existe algo deste impulso crítico serial animando, por exemplo, as primeiras obras de Steve Reich (1936) nos anos 1960. Ao pensar a música como um processo gradual, Reich insiste que o verdadeiro acontecimento musical é o processo de constituição da forma musical. Claro que não se trata mais aqui da posição de estruturas seriais que sustentariam a organização funcional das obras. Ao centrar o fato musical na repetição de deslocamentos e na saturação de pequenos motivos tonais (como em Piano Phase), Reich faz algo como uma crítica da aparência estética que não se orienta a partir da posição de um plano positivo de determinação de sentido, como no caso dos usos da série. Mas ainda há algo que guarda essa noção de crítica como desvelamento dos modos de produção da obra. Acho que isso tem a ver com a posição particular do minimalismo no sentido mais amplo, não só na música, mas também nas artes. Há uma frase de Sol LeWitt (1928) muito ilustrativa sobre o processo de constituição de sua série de cubos brancos: “Eu retirei a pele dos objetos para que a estrutura pudesse ser apresentada”. Essa é a definição perfeita de um protocolo de crítica que nasce com uma certa vertente do modernismo estético.


N: Essa situação se mantém na produção artística atual?

VS: Há um momento em que esse processo de crítica interno à própria constituição da forma estética se esgota. Isso está vinculado à compreensão de que agora é impossível fazer uma crítica integral ao fetichismo e estabelecer para a obra de arte um espaço de completa autonomia. Não apenas impossível, mas também problemático. Esse é um dos pontos privilegiados da crítica estética adorniana. Adorno insiste em que a autonomização das obras foi fundamental para que pudessem absorver ainda alguma capacidade de posição da forma crítica. A hipóstase da autonomização, no entanto, gera um outro tipo de fetichismo, uma espécie de fetichismo da totalidade, em que o sentido de todo material já é previamente significado, a partir da constituição da própria estrutura. A dialética entre forma e material se esvai.

No interior desse debate, Adorno é alguém mal lembrado. Sua teoria estética é a única no século 20 que insiste na centralidade de um conceito como o de mimese, o que aparentemente é um contra-senso se pensarmos em autores como Greenberg e Fried (para os quais a grande crítica da obra é contra o conceito de mimese). Essa inversão adorniana coloca sua teoria estética já fora de um certo quadro tradicional de recepção vinculado ao modernismo. Quando falamos que a interface fundamental da obra de arte hoje é sua confrontação com os domínios fetichizados da cultura, estamos falando que o processo de construção da obra de arte passa pela repetição mimética de materiais que vêm da realidade social fetichizada. Há uma complexificação do problema da forma crítica que deixa de ser pensada como distância correta. Uma das frases mais claras de Adorno neste sentido é a idéia de que a obra de arte deve se identificar com aquilo contra o qual ela luta. Note-se aqui que a mimese não é recuperação de uma promessa de retorno à positividade da natureza ou ao arcaico. A obra de arte fiel ao seu conteúdo de verdade não deve se identificar com a imagem positiva da natureza, mas com a realidade social mutilada. Isto faz uma grande diferença.

 
N: É aí que entra a idéia de ruína como material para a obra de arte?

VS: Eu acho a metáfora da ruína nos textos do Adorno tende a dar conta desse tipo de situação. Neste sentido, lembremos como suas monografias na década de 1960 sobre Mahler (1860-1911) e Berg (1885 - 1935) são absolutamente estranhas ao debate musical da época, marcado pela polaridade entre o serialismo integral de Boulez (1925) e Stockhausen (1928) e uma certa música da aleatoriedade de Cage (1912 -1992) e Morton Feldman (1926-1987). Adorno está inserido no debate, mas parece extemporâneo ao escrever sobre dois compositores considerados regressivos por recuperarem a tonalidade e usarem materiais gastos. Ele estava buscando uma terceira via: não ligar mais a modernidade das obras à modernidade dos materiais. Pensar, ao contrário, que a obra moderna é aquela capaz de se confrontar com materiais arcaicos a fim de revelar seu estranhamento. Tanto Mahler quanto Berg, para o Adorno, são compositores que trabalham com ruínas.

 
N: Poderíamos falar em procedimentos como apropriação e citação?

VS: De uma certa maneira sim. No entanto, eu insistiria na existência de, ao menos, dois modos de compor a partir de citações e apropriações. Uma parte do pressuposto de que o compositor tem diante de si a multiplicidade de tradições e formas disponibilizadas, como se nada mais lhe opusesse resistências. Ele poderia assim dispor ironicamente de tudo e não se vincular a nenhuma determinidade fixa. Mas creio que esta utopia pós-moderna da disponibilização integral dos materiais perde o que há de mais importante, ou seja, a tensão irredutível entre expectativas de construção formal e resistência dos materiais. Neste sentido, eu diria que as verdadeiras obras de arte são fracassadas, pois não conseguem anular esta tensão.

 
N: Se o material é extraído dos domínios mais fetichizados, como entender a dificuldade que o público tem em se relacionar com a arte contemporânea?

VS: Essa pergunta é uma grande incógnita pra mim também. Algumas obras exigem uma reflexão prévia da tradição em que se inserem, mas há toda uma leva de trabalhos da arte contemporânea que prescinde dessa reconstituição de contexto, que usa a fascinação imediata como um de seus elementos constitutivos. 

Algo a se levar em conta é que o discurso que diz que há hoje um processo mais amplo de circulação de obras e produtos culturais é uma falácia. Ao contrário, é impressionante a dificuldade de circulação da produção cultural. Existe uma disponibilização enorme do mesmo em escala massiva, que absorve a possibilidade se ter uma miríade de pequenas produções.

 
N: É possível pensar num programa estético crítico hoje?

VS: Para uma reformulação do pensamento no campo das artes, deve-se partir do pressuposto de que há uma forma crítica que esgotou sua função porque a realidade social a ultrapassou. A forma crítica do modernismo clássico se baseava numa certa dinâmica de desvelamento. O fato é que a própria realidade social já opera esse desvelamento, pois é auto-irônica. A ideologia ironiza os conteúdos que ela mesma põe. Essa é a dificuldade que se apresenta.

O primeiro passo é reconstituir a forma da ideologia na contemporaneidade. Ideologia não é um termo que deva ser abandonado, mas tem uma forma muito particular de operar hoje. O segundo passo seria não estabelecer de forma programática o que deve ser feito, quais devem ser as formas da crítica. Temos que nos voltar à produção estética contemporânea, acostumarmos a fazer análises de obras, até encontrar na particularidade da obra algo que possa ser modelo para a constituição de um programa crítico. Neste sentido, eu diria, no sentido mais forte do termo, que a arte pensa. Cabe à reflexão filosófica apenas uma análise imanente, ou seja, pensar as obras através dos dispositivos que elas próprias sintetizam. Ou seja, sua pergunta só pode ser respondida pelo estado das obras, e não pela articulação prévia de programas.



[1] A grosso modo, o dodecafonismo pode ser entendido como um sistema de composição que abole a hierarquia entre notas, tão característica da música no Ocidente até o início do século 20. (Nota dos entrevistadores)