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SOBRE USOS POPULARES DOS ESPAÇOS PÚBLICOS, por Heitor Frúgoli Jr.

Sobre usos populares dos espaços públicos


Na Cidade do México e em Buenos Aires, tivemos recentemente a implantação, pelo poder local, de leis de controle e punição de uma gama variada de atores sociais das ruas: vendedores não autorizados, limpadores de pára-brisas, guardadores de carros, malabaristas, engolidores de fogo, cambistas, grafiteiros, prostitutas e travestis. Na capital mexicana, tal lei se inspirou na consultoria da Giuliani Group – do ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani (1994-2002), responsável por uma política de redução de criminalidade, conhecida como “tolerância zero” –, contratada pelo empresário mexicano Carlos Slim, dono da Telmex (que há pouco adquiriu a Embratel), proprietário de vários empreendimentos imobiliários na cidade e que encabeça um projeto de recuperação da área central. Em Buenos Aires, tais regras – nomeadas “Código de Convivência” – atingem também piqueteiros, manifestantes que usualmente interrompem o trânsito. Em ambos os contextos, tem havido pronunciamentos contrários, apontando uma nova modalidade de criminalização da pobreza. No caso argentino, há também denúncias quanto a essa estranha tentativa de controle de manifestações políticas, tendo ocorrido inclusive invasão popular e destruição parcial da Assembléia Legislativa, responsável pela aprovação do novo código. [2]

Como toda grande metrópole latino-americana, em São Paulo ruas, calçadas e cruzamentos são também, há muito tempo, ocupadas cotidianamente por uma diversidade de grupos sociais, voltados à sobrevivência. É impossível dar conta neste artigo dos meandros da enorme variedade constitutiva de práticas e significados – que leis como as acima mencionadas procuram padronizar para controlar, colocando todas no “mesmo saco” da ilegalidade. Pode-se, de todo modo, abordar parcialmente esse tema através de rápidas considerações sobre certos personagens do setor informal, como camelôs, perueiros e motoboys, cujos usos evidenciam dilemas presentes em nossos espaços públicos.

Os camelôs ocupam há muitas décadas nossas ruas, sendo que algumas de suas características centrais exemplificam traços encontrados em outros grupos que utilizam a cidade para o trabalho informal: partilham de regras conhecidas apenas por seus integrantes, dentro de dinâmicas que combinam princípios de solidariedade com outros de hierarquia, cujo “chefe” atua, na maior parte das vezes em moldes clientelistas, como intermediário dos interesses do grupo com a sociedade mais ampla; com exceção de uma minoria legalizada, suas práticas dependem de um certo tipo de “apropriação privada” do espaço público, com a formação de “pontos” combinada, em vários casos, com a itinerância por outros espaços; boa parte dos integrantes dessas redes é de origem nordestina (cujas referências do mundo rural valorizam bastante o “trabalho por conta própria”), embora isso venha se relativizando com o crescente desemprego; seus canais de representação institucionais são muito frágeis e fragmentados, o que praticamente obstrui o diálogo com o poder público (mesmo quando o último está, de algum modo, aberto a alguma interlocução); articulam-se e são ao mesmo tempo vítimas de esquemas de corrupção na fiscalização, e em muitos casos envolvem-se com a venda de mercadorias contrabandeadas ou pirateadas. [3]

Há alguns anos, outra modalidade do setor informal que cresceu significativamente foi a dos perueiros, cujos serviços também interessam bastante às classes populares, já que muitas vezes percorrem áreas precárias e longínquas, não abrangidas ou pouco atendidas pelo transporte coletivo. Invadindo, muitas vezes com veículos precários, rotas cobertas por empresas de ônibus, estabelecem-se vários conflitos violentos, que vêm exigindo inúmeras intervenções do poder público. Apesar de muitos problemas pendentes, parte desse setor tem logrado um grau de organização mais satisfatório, em cooperativas, possibilitando-lhes sair da clandestinidade e obter um espaço razoável no sistema de transporte formal da cidade.

Outro agrupamento do setor informal com crescente visibilidade em São Paulo são os motoboys – espécies de sucedâneos motorizados dos office-boys –, que prestam serviços indispensáveis, dada a rapidez de entrega numa metrópole marcada por enormes congestionamentos. Isso obviamente se dá porque burlam sistematicamente inúmeras regras básicas de trânsito – certamente não são os únicos a fazê-lo no nosso tráfego raivoso –, em parte por serem submetidos pelas empresas para as quais trabalham a um desempenho brutal, cujas principais vítimas são eles próprios, com ocorrências quase que cotidianas de acidentes fatais, além dos pedestres (não obstante muitos motoristas se queixem deles). São também ainda muito resistentes a um maior controle do ponto de vista público.  Recentemente a Prefeitura tentou criar um sistema de registro obrigatório onde pagassem uma taxa anual e tivessem, entre outras coisas, de obter seguro de vida, respeitar normas de segurança, utilizar motos em bom estado etc., mas não houve uma adesão significativa. [4]

            Levando em conta os casos já apontados, parece cada vez mais difícil lidar com os desafios da construção de espaços públicos democráticos, tendo em vista, de um lado, a responsabilidade do poder público de planejar, promover e fiscalizar os usos da cidade, e de outro, a inserção de um grande contingente de grupos sociais cujas atividades profissionais são marcadas pela informalidade, nas quais várias dinâmicas se pautam por certa aspereza com a esfera pública.

Apesar do caráter utópico que marca tal tarefa, dada sua complexidade, talvez um passo esteja no incentivo para que tais grupos busquem se fazer representar além da esfera de poder controlada pelos chamados “intermediários”, já que estes tendem a manter um certo tipo de controle sobre aqueles que representam, reforçando a fragmentação, além de um tipo de “semi-clandestinidade” que lhes propicia o exercício continuado de poder. Diversos participantes do setor informal, entretanto, são refratários à formação de associações políticas mais sólidas, em parte porque muitas vezes se concebem como micro- empresários ou empreendedores, recusando uma identidade política clássica de trabalhadores.

Nas reflexões sobre os espaços públicos, tais atores sociais introduzem dissonâncias à idéia clássica de que são espaços utilizados por indivíduos anônimos, que usam as ruas apenas para circulação ou lazer, norteados por um imaginário comum de cidadania e civilidade. Sem abrir mão de referências centrais de tais representações enquanto horizonte político, é também preciso compreender as lógicas territoriais turbulentas trazidas por esses grupos – embasadas pela necessidade de trabalho – e tentar desenvolver formas de interlocução com os mesmos, a despeito das inúmeras dificuldades envolvidas.

É preciso enfim buscar enfrentar de modo criativo tais dilemas, antes que aqui aporte, por caminhos tortuosos, uma nova versão da “tolerância zero”, que tenta apenas criminalizar e banir inúmeras práticas populares nos espaços públicos, cujo desdobramento certamente seria o acirramento da crise hoje em curso em metrópoles como São Paulo.

                                                                                                                               

                                                                                                                                            Heitor Frúgoli Jr.[1]



[1] Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
[2] Ver Canzian, F. “Cidade do México adota ‘tolerância zero’ ”. Folha de São Paulo, São Paulo, 4 mai. 2004, p. A-10 e Dianni, C. “Protesto amplia tensão da Argentina”. Folha de São Paulo, São Paulo, 17jul. 2004, p. A-12.
[3] Ver Frúgoli Jr., H. São Paulo: espaços públicos e interação social. São Paulo, Marco Zero, 1995.
[4]Ver Seabra, C. "Contra Marta, 'exército' de 200 mil motoboys vira alvo de Maluf e Serra". Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 ago. 2004, p.A-12