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DÉCADA DE 1980: MAIS ALGUMAS OBSERVAÇÕES CRÍTICAS*, por Thais Rivitti

“Também sinto a arte em estreita ligação com a vida: tenho descoberto novas linhas de ônibus”, diz o artista Ricardo Basbaum num supermercado, colocando compras num carrinho. Esta é uma cena de Egoclip, de Sandra Kogut (1985), filme que mostra performances da Dupla Especializada, formada por Basbaum e Alexandre Dacosta. A frase bem-humorada diz respeito a um tema que estava bastante em voga nos anos 1980: a relação arte e vida.

Com Egoclip nos damos conta de que o discurso que entrou para a História da arte brasileira, na década de 80, como o momento “da volta da pintura”, já era ironizado desde dentro. Difícil não ver a palavra ego, presente no título do trabalho, como uma crítica à produção artística do período. Sem deixar de reconhecer o valor de importantes trabalhos realizados na época, muitos deles pinturas, é possível localizar no discurso que legitimou esta produção uma supervalorização da “subjetividade do artista”, numa espécie de adaptação local (frágil, pois se furta ao contato direto com as obras) de idéias em voga no circuito internacional. “Pintura é emoção, tem que nascer dentro das pessoas, no estômago”, explica Frederico Morais num texto da época. Talvez por isso a Dupla tenha construído uma cena no supermercado... A caixa do estabelecimento esclarece: “O que vende mais é maionese”.

A analogia da pintura com a maionese não pára por aí. Numa outra cena, os artistas sentados, presumo, num dos restaurantes em frente à praia de Copacabana são servidos por garçons que trazem tinta e pincel. Fome de pintura! Cena após cena, a pintura é tratada com extremo sarcasmo: um laranjinha aqui, um verdinho ali e está feita uma pintura de grandes dimensões. Há até um concurso num programa de TV em que os envelopes eram “pinturinhas portáteis”. “Bonita...” avalia o artista que faz as vezes de apresentador televisivo.

Mas Egoclip é também o clipe da música Impresso, composição da dupla, em plena sintonia com o boom dos videoclipes no Brasil. Não menos sarcásticos com a linguagem televisiva do que com a pintura, os artistas macaqueiam programas populares da TV. Seriados americanos de espionagem e ação, filmes dos Beatles, Poltergeist e uma série de outros clichês entram na jogada. A própria forma clip, uma produção que visa ilustrar uma música, diz muito a respeito da necessidade visual acentuada na época, entre outras coisas, pela massificação da televisão. Algo que sempre me pergunto é se, afinal, além de enormes avanços mercadológicos, o surgimento do clip rendeu algo para música...   

Mas se por um lado, a experiência que mobiliza as pessoas não é mais da ordem da pintura vista como “expressão da subjetividade” o que se apresenta em seu lugar são imagens pobres repetidas à exaustão. A letra de Impresso diz: “Contra a morte, se infiltre / Nas redações dos jornais / Seu nome publicado / Vale muito mais”. Ela zomba do suposto valor conferido a tudo aquilo que foi impresso, veiculado, transmitido e publicado, bem como das pessoas bem-sucedidas e famosas. O trabalho aborda com ironia a idéia de “imagem pública” e coleciona depoimentos de figuras notórias como Chico Buarque e Caetano Veloso. Basbaum e Dacosta são, ao mesmo tempo, artistas de Hollywood, apresentadores de TV, transeuntes, passageiros...e artistas plásticos! "Dupla especializada? Especializada em quê?" – pergunta uma senhora quando questionada se os conhecia. Com raras exceções do meio, ninguém conhece a Dupla Especializada, ainda que eles tenham se esforçado para alçar o sucesso. Num anúncio publicado nos classificados de um jornal, escreveram “Dupla Especializada procura empresário ou mecenas disposto a compartilhar carreira repleta de grandes sucessos”. Não houve candidatos à vaga.

Um modo de ver as atividades da Dupla é justamente pensar que colocam em evidência a transformação das relações entre as pessoas e das pessoas com o mundo numa relação entre imagens (e pensar as artes plásticas em relação a essa mudança). A noção de espetáculo formulada por Guy Debord tem algo a ver com isso: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediada por imagens”. O espetáculo não é produto dos avanços tecnológicos da difusão das imagens nem um certo privilégio da visão, “ele constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade”. Sendo assim, de certo modo, a própria realidade é espetacularizada, as relações entre imagens são a base das demais relações.

A questão que move uma parte significativa da produção da artista Márcia X também parece tocar nessa questão. De uma outra forma, a artista tenta resgatar dos materiais mais desgastados, que se tornaram quase pura imagem, sua materialidade. Difícil voltar a olhar com os mesmos olhos para a coca-cola depois de assistir a performance Lavou a alma com coca-cola (2003), em que a artista passa uma hora deitada num tanque com o refrigerante. Numa situação pouco usual, como essa proposta por Márcia, a bebida sai de seu invólucro habitual e mostra-se de forma totalmente diferente. Lembramos de que é um líquido corrosivo, popularmente usado para desentupir pias. Melado, seu cheiro doce torna-se enjoativo. Sua cor escura lhe confere um caráter sujo. Passa a ser repugnante quando olhamos para ele novamente embalado, ao final da performance.

Um outro exemplo seria o trabalho Chuva de dinheiro (1983), no qual Márcia X, juntamente com Ana Cavalcanti, atira cédulas gigantes do alto de edifícios na Av. Rio Branco no centro do Rio de Janeiro. Não custa lembrar a inflação galopante do período. De certa forma, o agigantamento das notas expunha, de um modo infantil, a sensação de irrealidade e absurdo que as pessoas tinham com a estrondosa desvalorização da moeda. Como se o dinheiro - mercadoria das mercadorias, pois serve como equivalente -, para adquirir uma dimensão um pouco mais sólida e concreta tivesse que literalmente cair na cabeça das pessoas.

Sem dúvida, a poética de Márcia X envereda por outros caminhos. E a idéia da "conversão da realidade em imagem (e vice-versa)", embora esteja presente em seu trabalho, talvez não constitua um eixo de leitura fundamental. Mas ainda assim é curioso observar que muito pouco foi escrito sobre artistas que emergem na década de 1980 e continuaram produzindo trabalhos importantes, questionando exatamente a (nova) natureza da imagem, como Basbaum, Dacosta e Márcia X. A leitura hegemônica do período ainda caminha junto com a (falta de) crítica feita no calor da hora. É tempo de criar outras linhas para se pensar nossa história recente.   

* o título faz referência ao texto de Ricardo Basbaum Pintura dos anos 1980: algumas observações críticas, publicado na revista Gávea, número 6, 1988.