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Ilya e Emilia Kabakov

Vertices/Vetores: diálogos

Ilya e Emilia Kabakov: do vazio à experiência

etrange cite

L’étrange Cité, 2014

Em 2014, retornei ao Louvre, lugar que já colocou muitas questões para meu trabalho. Dessa vez, fui acompanhada de uma amiga que passara por lá havia 14 anos, tendo também uma experiência marcante..

Começamos o percurso juntas e, logo em seguida, nos perdemos. Combinamos de fazer o mesmo trajeto rumo à Mona Lisa e, caso não nos encontrássemos, cada uma voltaria para casa sozinha. O Louvre é mesmo um lugar para degustar aos poucos e por tempos indeterminados, assim como suas particulares. É um museu para se retornar e rever ou redescobrir cada uma de suas partes.

Para ela, sobretudo, era importante retornar à experiência que tinha marcado seu encontro com as madonnas italianas. Para mim, era mais um dia em que circularia pela história com as obras e me perderia pelos corredores e pelo público. Depois de algumas horas, eu já havia decidido seguir com o plano de retornar para casa, mas, enquanto recuperava o fôlego em um dos sofás, ela me encontrou. Estávamos ambas exaustas. E vazias.

Esse lugar cheio de referências, cheio de história, cheio de pessoas, cheio, cheio..., paradoxalmente, parece ter nos esvaziado. Quando não se tem a possibilidade de acessar nas obras expostas um sentido válido para o presente, corre-se o risco de sair de lá apenas levando um conjunto de superficialidades, um ímã de geladeira e o atestado da nossa presença diante das obras: eu fui, eu vi!

Nós nos perguntávamos como um museu tão preenchido em diversos aspectos, seja na estrutura e na memória que carrega, seja de obras ou de público, pôde nos proporcionar uma sensação de esvaziamento ao passarmos algumas horas ali, lutando contra o excesso de estímulos e de ações exaltadas dos visitantes.

Curiosamente, fomos surpreendidas no dia seguinte por uma das exposições do Grand Palais, que sequer estava nos nossos planos. Sem saber exatamente do que se tratava, entramos na exposição L’étrange Cité, da dupla russa Ilya e Emilia Kabakov. A exposição é parte do projeto Monumenta, uma iniciativa do museu que oferece seus 13,5 mil m2 de impecável construção art nouveau para que um artista os ocupe com uma obra inédita, lidando com a constante alteração da iluminação natural que invade o espaço, resultado do projeto arquitetônico composto por estrutura de ferro e cúpulas de vidro.

Os artistas propuseram a criação de uma cidade utópica e misteriosa que se espalha muito discretamente pela nave do Grand Palais. A exposição se constitui de um conjunto de pavilhões-instalações que, somados, constroem uma narrativa fantástica sobre essa cidade. Um leve estranhamento nos acompanhou nos primeiros passos enquanto avançávamos num lugar relativamente desocupado, onírico, predominantemente branco. No próprio tempo que a extensão dessa caminhada exige, começamos a desvelar um lugar surpreendente.

Mais do que sugerir certa liberdade de trajetos, a configuração dessa cidade impõe ao espectador que ele se perca. Uma vez dentro dela, o que se enxerga é um entorno de paredes brancas que quase se fundem pela quantidade de luz que entra pelas cúpulas de vidro, ofuscando o olhar.

Um espaço como o Louvre é carregado de referências impostas por sua arquitetura, sua história e sua estratégia expositiva. O Grand Palais é em si um espaço vazio. O que resta de referência arquitetônica é agora relativizado pela intervenção das paredes brancas dessa exposição.

Toda essa interpretação foi de alguma maneira determinada pelo primeiro pavilhão em que entramos. Intitulado Le Musée vide (O museu vazio), trata-se de uma grande sala constituída como um museu clássico, cujas paredes são pintadas numa cor tautológica, um bordô-museu, com frisos adornados e lambris em madeira. No centro da sala, um grande sofá confortável que permite contemplar os fachos de luz artificial que demarcam o estatuto das obras nas paredes. Mas que obras? O que temos a contemplar ali não é mais do que uma parede, sem nenhuma pintura propriamente, ou qualquer outra imagem que ocupe esse espaço idealizado demarcado pela iluminação. Ao construir a condição solene do museu sem que haja um objeto a celebrar, Le Musée vide denuncia o quanto a própria configuração do espaço já é em si sacralizante, independentemente daquilo que se cultua.

Na mesma proporção em que o espaço se mantém comedido, ele nos oferece possibilidades de criação. O desejo de permanecer nesse lugar proporciona uma experiência significativa que permite recriar ali muitos museus e obras que vão além do vazio sugerido no título.

Dentro dessa sala ouvimos o som de Passacaille, de Bach, que completa o desenho do espaço nos conduzindo definitivamente a outro tempo, a outra cidade, a um lugar outro. Restou-nos permanecer ali diante das paredes preenchidas pela luz até que nos perdêssemos num tempo que não podia mais ser medido, e num espaço que se modificava.

Nossa experiência foi supostamente intensificada pelo sentimento trazido do museu que visitamos na véspera. O Louvre se configurou naquele dia como um lugar excessivo e cansativo, onde obra, espectador e olhar se corrompiam: é impossível pensar o museu sem esses agentes, mas naquela escala eles se atrapalham uns aos outros. Paradoxalmente, um lugar te esgota ao te oferecer demais e retém tudo o que se leva para lá; o outro te proporciona espaços a ocupar, com uma única demanda que talvez seja a construção de experiências.